
- Ainda me resta um carneiro, que se conseguiu safar sabe-se lá como…
- Então? Você não tinha perdido tudo?
- Não, eu não disse isso…
- E você não se encontra deprimido?
- Bem, eu… realmente, não é uma situação fácil…
- Quando digo “deprimido” estou a querer dizer “angustiado”, “com aquela sensação que o mundo inteiro está de costas voltadas para si”, “naqueles dias em que parece que um anjo negro está a menstruar-se abundantemente sobre o seu corpo”… você está assim, ou não?
- Pois… estou um pouco…
- Sente a dor dentro de si, não sente? Assim como se ela estivesse alojada dentro do estômago e pronta a subir pelo esófago acima para ser vomitada?
- Há alguma dor, sim…
- Boa, boa, você está a entrar dentro do espírito! Agora, concentre-se na sua dor… pegue neste microfone e grite “FUCK JEEEEEESUUUUUUUUUUS!!!”, como se tivesse sido perfurado com várias agulhas a ferver simultaneamente… um voz cavernosa, cá do fundo; não é “fuck Jesus, sra. professora”, à moda da pré-primária; é “FUCK JEEEEEESUUUUUUUUUUS!!!”, como se fosse um Morbid Angel.
- O quê? “Fâque djiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiizââââââââââs”? O que é isso?
- Vai-lhe ajudar, prometo. Não lhe vai recuperar a casa nem as galinhas, mas é um paliativo espectacular, garanto-lhe.
- Acho que não consigo, não sei…
- Pronto… É timidez, não é? Então gritamos os dois, pode ser? Vamos gritar uma coisa mais fácil. Quando eu contar até três, gritamos os dois: “PAAAAAAAAAAAAAIIIIIIN!”
- “Peine”?
- Sem o “e” no fim.
- “Pein”?
- Isso! Mas forte, homem! Mesmo como um demónio das trevas! Lembre-se da sua agonia interior! Pense neste fogo que lhe estragou a vida! Raiva nesse grito, hã? Vamos lá… um…
- Peeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeein.
- Então? Que é isso? Só contei até um…
- Só sei contar até um.
- Ah… bom, mas não foi satisfatório, você não estava com a dor toda. Vamos lá repetir…
- Não me parece boa ideia. Isso não me está a ajudar por aí além…
- Bolas, homem! Satanás estabeleceu um contacto directo consigo! Destruiu-lhe a vida! Você sabe o privilégio que teve? Eu sonho com o dia em que Satanás venha ter comigo e me tatue um crucifixo invertido na testa com um ferro em brasa… e tenho que andar a dar cabeçadas na parede em incessantes headbangings enquanto ouço speed metal para sentir a verdadeira dor, à espera do toque do Diabo! Você não sabe a sorte que teve! O Diabo dá dentes a quem não tem nozes!
- Não foi Satanás. Foi o Zé Padeiro.
- O Zé Padeiro?
- Sim, foi ele que começou o fogo. Fez uma queimada de mato no quintal, deu-lhe o vento e… pronto, foi o que se sabe.
- E não sente a vingança da besta dentro de si?
- Não... O Zé Padeiro é bom rapaz… aconteceu-lhe desta vez, dantes já tinha acontecido a mim… Paciência.
- Não equaciona torturar-lhe um bocadinho…
- Hmmm… Talvez não lhe dê mais aguardente durante uns tempos… Mas, fora isso, não.
- Ou ler o livro de S.Cipriano assim só para distrair as ideias…
- Eu não sou muito católico, nem de igrejas nem dessas coisas todas…
- Nem um ritual com velas e animais mortos no meio da Serra de Sintra à noite…
- Não… Você sabe o que é uma queimada?
- O que eu sei é o alinhamento do novo álbum dos Manowar.
- Manowar? É uma debulhadeira?
- Não. São os reis do power-metal!
- Ah…
- Aqui vai: “Steel Hell “, “Powerking”, “Wheels Of Fire”, “Metal Lord”, “Fists & Iron”, “The Axes Of The Damned”, “Blade Machine”, “The Old Curse Of God's Hammer”, “Fight For Power And Fire (And Steel)”, “Hell Last Burning”, “Slave No Power” e “My Cute Little Pony”, que é uma faixa de bónus gravada em cima de uma Harley Davidson a caminho da Disneyland. Digo-lhe uma coisa: é BRUTAL!! METAL!!!! YEAH!!!!
- Ah…
- Saquei os mp3 na net. Já não compro cds.
- Está bem…
- Mas tenho uma t-shirt oficial deles.
- Pois…
- E você não tem nada, não é, sr. Barquinho?
- Ah, ainda vou tendo alguma coisinha… Como o carneiro.
- O carneiro… Ena pá, é isso mesmo!
- O quê?
- O carneiro é espectacular para o sacrifício!
- O quê? Chanfana?
- Bute lá sacrificar o carneiro! Não, não, espere: deixe-me ir buscar as facas góticas ao carro. E o manto negro.
- Mas… Mau, assim já não dá!…
- Tem toda a razão: falta um som à maneira. Exodus, pode ser? Também tenho Odious Mortem.
- Não, não, pare lá com isso, ninguém vai matar o bicho! Mas o que é que é isto, afinal?!
- Eu preciso de dor para me sentir realizado. Satanás está comigo.
- E ele quer um queijinho?
- Um queijinho?
- Destes queijinhos frescos que se safaram ao fogo.
- Mostre lá.
- Olhe aqui. Hã, maravilha, não é? Nós aqui na terra temos que ter algo para as visitas, mesmo que seja o Senhor Doutor do Mal.
- Por acaso Satanás é engenheiro. E esses queijos estão muito brancos.
- Como assim?
- Satanás não gosta de coisas brancas.
- Ele que imagine que isto é tipo… uma sobremesa esbranquiçada, vá lá…
- Satanás não come sobremesas. Só Suissinhos de framboesa. Têm muito cálcio.
- Vá, eu sujo o queijinho com…pode ser estrume?
- Não tem chocolate negro?
- O carneiro comeu todo o chocolate negro que tinha quando viu o fogo chegar.
- Seja estrume.
- Muito bem. Ora cá vai disto… pronto, e agora?
- Satanás agradece mas diz que já comeu.
- Ora bolas, e agora?
- Satanás aceita dinheiro.
- Dinheiro? Bem, não tenho assim muito aqui à mão… mas tenho ali umas poupanças que posso desenterrar debaixo da laranjeira queimada… Assim de quanto é que ele precisa?
- Quanto é a viagem de volta para a Reboleira?
- Para aí uns… sei lá, 20 euros.
- Então Satanás quer 80.
- Então mas…
- Despesas de representação. Está no contrato.
- Se é assim… Espere aí um bocadinho…
- Fico dolorosamente à espera. Já sinto o fogo a trepidar nas minhas veias… o sangue está a ferver… ah!, que espantosa agonia! DARKNESS IS MY MOTHER, BEAST IS WITHIN, UUUUUUUUUUUUUUUUH! FALLEN CHRIST EVERYWHERE, CRAWL IN PAIN! PROFANE MYYYYYYYYYYYYYYYYY SOOOOOOOOOOOOOOUUUUUUUUUUL!!! UUUUUUUUUUH! CRAAAAAAAAAAAAAAWWWWWWWWWWWWWWWLLLLLLLL IIIIIIIIIIIIIIIIIIINNNNNNNNNNNN PAAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIINNNNN!!!!!! UUUUUUUH!
- Cá está.
- AHAHAHAHAH!, o mal triunfou outra vez! Mais uma ajuda para Satanás comprar um iPod! E você, sr. Branquinho, como é que vai sobreviver à catástrofe?
- Pronto, ainda tenho umas coisitas… mas vai ser quase como refazer a minha vida do um…
- Do zero, quer dizer…
- Não, mesmo só do um… porque eu só sei contar até um, já tinha dito.
- É verdade.
- Mas fiquei contente.
- É isso, também sentiu no fundo um prazer intenso por sentir a dor e a desolação da enorme perda, não é? Eu sei o que isso é.
- Pois… Não é bem isso; gostei de ter a imprensa por aqui a tentar manipular os meus sentimentos e a extorquir-me o pouco que me restava… Quero dizer… Isto é só para gente importante, não é?… Acho eu…

- Não, o senhor está a brincar!... Você está é dentro do espírito da dor! Você sentiu o chamamento das trevas! Eu estou a ler isso nos seus olhos!
- Eh pá, eu acho que é outra coisa… mas você é que é a da cidade…
- Quer ir ver o concerto dos Torsofuck ao Santiago Alquimista? Pago eu.
- E depois quem cuida do carneiro?
- Sacrificamo-lo na volta.
- Mas…
- DECEASED FAITH, ATROCIOUS SUICIDE! PROFANE MYYYYYYYYYYYYYYYYY SOOOOOOOOOOOOOOUUUUUUUUUUL!!! UUUUUUUUUH! UH! UH! UH! CRAAAAAAAAAAAAAAWWWWWWWWWWWWWWWLLLLLLLL IIIIIIIIIIIIIIIIIIINNNNNNNNNNNN PAAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIINNNNN!!!!!!
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