sexta-feira, novembro 20, 2009

O Arguido

- Olha quem é ele… o Frederico. Estás bom?
- Na maior, pá. Estou mesmo na boa.
- Ah é? Então?
- Eh pá, fui constituído arguido outra vez.
- Arguido?
- Sim, é a quarta vez esta semana.
- Ena pá!...
- Sabes como é que é… eu não sou gajo de ficar quieto.
- E como é que é isso de ser arguido tantas vezes, pá? Deve ser tramado…
- É… é um bocado… ficamos logo bastante famosos, temos as câmaras sempre à nossa espera no tribunal… apesar de tudo, eu acho que não nasci para ser famoso. Eu só queria usufruir com notoriedade moderada dos rendimentos e méritos que fraudulentamente obtive. A fama junto das massas é de facto complicada. Mas se somos mesmo bons numa coisa qualquer, temos de saber viver com isso, não é? E eu tenho este dom natural de ser arguido, sou o maior nessas coisas de ir a tribunal.
- Então e não tens medo de ir preso?
- Medo? Bah! Quem tem medo compra um cão!...
- Quer dizer que não tens medo?
- Não, pá. E para te mostrar que não, vou largar o meu cão.
- Lá vai ele… eh pá, ó Frederico, o teu cão está ali a atacar um menor…
- Pois é… ele é um bocado para o atiradiço… sabes como é que são estas raças perigosas…
- Acho que há uma lei qualquer sobre os donos de animais de raças perigosas…
- É verdade, pá! Com sorte, vou ser arguido mais uma vez! Bem lembrado!
- E isso não te perturba?
- Pelo contrário, pá! Vou bater um novo recorde! Vou ser mais vezes arguido que o Isaltino Morais, o Valentim Loureiro, o Pinto da Costa e toda essa corja de gente idónea…
- Mas… quer dizer, para tu estares assim tão confiante, é porque estás inocente, não é?
- Isso não me importa muito. Às vezes sou, às vezes não. O que interessa é ser constituído arguido – é uma espécie de estatuto privilegiado, ‘tás a ver? Nem toda a gente é arguida, pá.
- Então podes ir preso, não? Como podes estar tão tranquilo?
- Simples, pá: aqui ninguém vai preso. E se for, só daqui a 70 ou 80 anos e nessa altura já cá não devo estar. Entretanto, vendo o exclusivo das minhas chegadas ao tribunal às revistas cor-de-rosa, sou convidado para palestras, tenho eventos em minha homenagem, constroem-me monumentos, atribuem-me títulos nobiliárquicos e coisas assim e facturo um dinheirão. Ir a tribunal é como se fosse um daqueles casamentos das celebridades, ‘tás a ver?
- Ainda mais dinheiro do que aquele esquema de facturas falsas que me contaste?
- Ainda mais, pá. Vê lá bem a mina de ouro que isto de ser arguido é.
- Também foste constituído arguido por esse esquema, aposto…
- Por acaso… não. Já fui arguido num caso de tráfico de balões de água e por ter abusado de um tatu bebé, mas por causa desse não. Pá, nem tudo corre bem…
- Mas… mas… esse caso das facturas ficou nos anais da História por ter levado “n” empresas à falência e centenas de pessoas ao desemprego… e em consequência disso, mergulhou cidades inteiras na criminalidade, levando todo um tecido social à degradação…
- Pois é, pois é, foi um esquema muito bonito e lucrativo… mas não consegui que me constituíssem arguido, mesmo com todas as provas que forneci… paciência. Outras oportunidades surgirão.
- Por acaso, estava aqui a ler o jornal e pensei logo que serias tu o Frederico que aqui vem mencionado… está aqui escrito que “Frederico A, conhecido ex-deputado pelo PSDSP e ex-administrador da REFCP, foi constituído arguido por suspeitas de peculato, tráfico de influências, vigarice pura e caspa, ao que apurou o nosso jornal, em primeira mão”…
- Ah pois, fui eu! Eu conheço bem a directora desse jornal. Grande amiga minha. E tem um corpinho… ui!, nem te conto. Já estivemos lá quase… ‘tás a ver?… mesmo quase… mas acabou por não dar. Agora com o destaque que ela me está a dar, quem sabe se não temos mais um jantarzinho ao lusco-fusco um dia destes… eheheh, isto só está ao alcance dos grandes arguidos, pá… era este o estatuto que te falava.
- … mas a fotografia que aqui vem é de outro Frederico… parece-me o Frederico B…
- Quê? Mostra-me aí… Pôrra, queres ver que há gajos a concorrerem comigo para serem arguidos?!?
- Então, é a tua fotografia ou não?
- Não sou eu que aqui estou, pá! Esta foto não é minha! Que merda é esta?!
- Estou a ver que a tua amiga trocou-se toda…
- A puta! Aquela bola de banha que tem o cu a cair aos trambolhões pelas costas abaixo! Tenho de lhe ir pôr os pontos nos ii’s! O que vem a ser isto? Andam a querer sacar os meus méritos na sacanice? Mas onde é que estamos? África, queres ver? Bah!
- Tem calma, Frederico…
- Estas merdas deixam-me lixado, pá! Anda um gajo a esforçar-se na sua actividade ilegal, dia após dia, suborno após suborno, e depois acontece isto!... Diz-me lá se não achas que andam a gozar com a tua cara?!
- Eu compreendo-te, eu compreendo-te…
- “Frederico B”… Bah!, “B” de “Besta”, só pode! Não lhe reconheço autoridade nenhuma no campo do favoritismo ou do bullying!... É um aprendiz, quanto muito! A directora vai ouvir das boas, ah vai, vai!
- Porque é que não lhe insultas verbalmente e fisicamente?
- A ela? Bater em gajas? Porquê?
- Então… ela processava-te logo, aposto. Era mais um processo para a tua conta.
- Eh pá, é melhor não… Ela não me iria processar… Eu sei de umas coisas sobre ela, de maneiras que… Ela não me faz dessas coisas. Por muito que eu desejasse. Isto foi uma miserável distracção, acho eu.
- Olha, vou trabalhar, tenho de picar o ponto. Infelizmente, não tenho os teus dotes burlões… Mas gostei de te ver, Frederico. Continuas em grande forma! Espero que resolvas esta confusão a contento.
- Vai lá, pá. E obrigadinho. Preciso de papalvos como tu para continuar a viver à grande.
- Como?
- Nada. O prazer foi todo meu, pá.