segunda-feira, julho 31, 2006

Mão Morta "Revisitada" (1995)


Bem-vindos ao sórdido universo Mão Morta. Um excelente aperitivo é a mão decepada da cover do álbum.
Este foi um projecto pioneiro ao nível do Rock português (e mundial?). Hoje parece comum ouvirmos falar em “revisitação” de temas, mesmo com outras bandas a prestarem tributos. Naquela altura, nem tanto.
Os Mão Morta inovaram mais uma vez, partindo de algo antigo – todas as faixas compreendem o período 1982 – 1991. Como? Simples: tocando as mesmas músicas com arranjos diferentes.
Desde a fúria punk de “Quero Morder-te As Mãos”, passando pelo assomo metal de “Anarquista Duval”, faixas onde a voz cavernosa do causídico Adolfo Luxúria Canibal assume o papel de barra de dinamite que explode toda a perversidade e raiva que está dentro de si, puxando para ele o papel óbvio do papão sanguinário e horroroso proveniente da cidade dos arcebispos; até às nítidas desacelerações de “Facas Em Sangue” e “Charles Manson”, onde o assassino decrépito murmura-nos palavras de fascinação negra ou exorta-nos delicadamente à idolatração do verdadeiro serial-killer americano; não esquecendo a sensualidade sofrida de “Chabala”, o delírio urbano-decadente de “Até Cair” e o coro de desgraça em “1º de Novembro” – o álbum tem múltiplos pontos de interesse.
Em qualquer das situações, e tendo em mente as gravações originais, nota-se que os Mão Morta prosseguiram uma longa caminhada até atingirem a desenvoltura técnica aqui ostentada. Talvez a banda, na qual o baterista multi-instrumental Miguel Pedro, o guitarrista/ teclista António Rafael e os repescados guitarristas Zé dos Eclipses e Carlos Fortes (já fora da banda por estas alturas) retêm igualmente um papel de relevo, se tenha apercebido que o forte potencial das canções escritas no dealbar da carreira poderia receber uma nova injecção de vitalidade, naquela altura em que o calo de anos de estrada e de estúdio já era perceptível e em que as condições técnicas dos próprios locais de gravação e conhecimentos de produção tinham evoluído consideravelmente. Depois, a banda mostrou quebrar tabus e barreiras pré-concebidas ao assumir um best-of (que é quase o que aqui se trata – falarei sobre esta questão mais à frente) de uma forma menos fácil do que seria expectável, que seria pura e simplesmente reempacotar as mesmas faixas num CD, apenas ganhando em termos de qualidade sonora. Louve-se o esforço que foi feito e que conduziu a excelentes resultados.
E porque não é este, em rigor, um best-of? Essencialmente, por dois motivos: o primeiro é a evidente desconstrução (no bom sentido, embora esta seja uma perspectiva assaz subjectiva) dos próprios originais; o segundo, porque a banda, sempre subversiva aos cânones editoriais, prescindiu de apresentar “revisitações” dos álbuns que, ao tempo, mais visibilidade tinham: “Mutantes S-21” (1992), com temas inesquecíveis como “Amsterdão”, “Barcelona” ou o faixa-gatilho que projectou o nome Mão Morta para os ouvidos do grande público “Budapeste”; e “Vénus em Chamas” (1994), um álbum conceptual demasiadamente desenfocado a nível musical (passe o paradoxo), que ainda assim produziu semi-hits alternativos com “Anjos Marotos”, “Escravos do Desejo” e “Velocidade Escaldante”. A banda podia sempre argumentar que esses temas eram demasiado recentes para merecerem “revisitação”, mas acabou por incluir “Budapeste” e “Velocidade Escaldante” como faixa escondida e sem alterações face aos originais. Portanto, este é um best-of tão distorcido como são os Mão Morta na sua atitude divergente para com o mundo que os rodeia.
Não é fácil entrar no mundo Mão Morta. Demasiado literários, amantes de Sade, Luiz Pacheco e de outros escritores libertinários, respeitadores da anarquia e sedentos de sangue, remanescentes musicais do gótico da década de 80, os Mão Morta nunca conseguiriam abraçar uma massa significativa da juventude que ia evoluindo nos seus gostos se não preferissem uma abordagem mais dimensionada ao rock-pop e menos presa ao tradicional minimalismo, temperado com pozinhos industriais, subjugado aos poemas diabólicos, narrativos e com a sua carga de voyeurismo de Adolfo Luxúria Canibal. Isto é, mais atitude rebelde também a nível do som. A inflexão ocorreu notoriamente em “Mutantes S-21”, se bem que o maldito “O.D., Rainha do Rock & Crawl” (1990) fosse já uma indicação do futuro mais pujante musicalmente, incluindo piscares de olho ao noise-rock (embora neste álbum se encontrasse o épico fundamental para a compreensão do espírito da banda “O Divino Marquês”, que não figura na “revisitação”). Daí eu aceitar que alguns fãs da “velha guarda” poderão ver as suas expectativas defraudadas ao ver estes velhos temas vestidos em roupagens menos negras e mais jovens, embora continue a pensar que muito da essência dos originais não se perdeu, apenas se transformou, nalguns casos mais que noutros.
Hoje em dia, assistimos ao natural amadurecimento da banda, quer a nível musical, onde os laivos industriais deram lugar com mais frequência a pianos e melodias, quer a nível lírico, onde as letras sobre caos e dor abriram espaço a palavras sobre a situação social dos tempos modernos, girando sobre a aparente loucura à qual estamos destinados com o rebuliço à volta do “big brother” que espreita de qualquer lado. Nenhum outro álbum, contudo, conseguiu sintetizar de forma tão crucial a alma da banda como este (note-se que “Müller no Hotel Hessischer Hof” (1997) é igualmente um espectacular exercício de conjugação entre som-poesia-drama e é, com justiça, o melhor álbum da última década destes bracarenses – embora assente sobre um autor exógeno à banda, o dramaturgo alemão Heiner Müller).
É, decididamente, essencial a qualquer apreciador do rock moderno português possuir este álbum. Ousem abraçar estes demónios e sentir a voracidade maléfica de Adolfo, Luxúria por parte da mãe, Canibal por parte do pai. O fado é somente português, sim senhor; mas os Mão Morta também não pedem meças a ninguém no que a originalidade concerne. Alguém alguma vez arriscou glorificar a morte na estrada de uma forma tão mórbida como em “Sangue no Asfalto” ou incentivou alguém a roubar quem lhe quer mal e quem lhe quer bem, como se escuta de uma forma perfeitamente distorcida em “Oub’lá”? Duvido.
Classificação: 8,5/10
Faixas a reter:
"Sangue no Asfalto";
"Chabala";
"Anarquista Duval"

sexta-feira, julho 28, 2006

O Rico Pobre



(Quadro de Henri Rousseau - 1907)


Ainda consigo lembrar-me de algumas coisas engraçadas. Dei uma vez com ela toda nua, apenas com a toalha embrulhada na cabeça, a perguntar-me se tinha os números do Totoloto. Não lhe disse para se vestir, porque gostava do que via, e também não fui capaz de lhe dar os números – porque me eram totalmente indiferentes perante tal paisagem. Ela fechou a porta na minha cara deslumbrada, patética de tanto deleite visual. Sangrei fascinado do nariz.
Apanhei o autocarro para a praia. Ao meu lado, desfiles de cabriolets e todo-o-terrenos cheios de criançada feliz e um adulto bronzeado a conduzir, com os imprescindíveis óculos escuros da moda. Ela, debaixo de uma axila brasileira, beliscada pelo calor, bem me recordou, de cabeça quente como o tempo:
- Tu já viste o tempo que perdemos nesta porcaria de viagem? Já reparaste que me doem as costas de andar a carregar o chapéu de sol para trás e para a frente? Tens de arranjar um carro!
Não podia arranjar um carro. Tinha de comer primeiro e a fabriqueta faliu. O subsídio pecava por escasso.
Eu não queria saber de Totolotos. Ainda hoje borrifo-me no Euromilhões, a evolução globalizada desse vulcão de ilusões. Há quem faça disso uma procissão de fé, aquela romaria fanática de sexta-feira à tabacaria mais próxima, as cruzinhas no papel de uma forma que todos julgam programada. Acreditam no sistema que o vizinho lhes transmitiu, mesmo que o vizinho esteja ainda na penúria. Entregam-se com devoção àquilo que julgam ser o caminho mais fácil para a felicidade.
Fácil, fácil, é ficar aqui à beira-mar, bebendo o sol, recebendo o fresco da água, cativando o iodo que tanta falta nos faz. Não me preocupo quando chega o odor do chouriço da velhota de preto ao lado, ou mesmo quando a criança despida da frente urina na areia no meio dos meus pés, sem que os pais, distraídos a despejar beatas na areia, reparem na menina. Mas ela preocupava-se. Demais.
- Que horror, que gente sem educação nenhuma! Quando é que vamos a uma praia como deve ser? Quando é que saímos da Caparica?
Nós sair, até podíamos sair; mas não para o Algarve, fazendo companhia a craques de futebol, muito menos para o Brasil, que apenas provamos via telenovelas. Queria levá-la a conhecer a natureza.
- Um safari no Quénia?
Não, uma aventura pelos parque nacionais. Até o Gerês estava acima donde poderia ir, mas podíamos visitar a Serra de Sintra ou o Vimeiro. Que tal um Jardim Zoológico para começar?
- Estou farta! Vai dar amendoins ao elefante sozinho!!!!

Foi muito giro. Ela voltou para a Praça de Espanha sem eu saber como nem quando. Eu fui para um parque qualquer ao anoitecer. Havia água, apetecia-me fechar os olhos. Comi uma bifana numa roulotte e arrotei mostarda. Bebi uns copos de carrascão barato. Ela voltou. Vejam como: envolta pelas sombras, evasiva, misteriosa. Delicada. Sussurrou-me:
- Este parque é todo nosso. Para todo o sempre. Ganhei o Totoloto.
Ouvi melodias que deviam provir de uma flauta por detrás dos arbustos. Disse-lhe que não queria saber de dinheiro, de ter parques; quis sentir a música a aliviar-me a azia no estômago e ela a falar-me num registo não resmungão. Fazia muito tempo que ela não se dirigia a mim assim. Tranquilizei-me com a penumbra, não com o pensamento dos bolsos cheios. Até aves estranhas e coloridas surgiram do nada para me felicitar, as plantas eriçaram-se numa festividade boçal. Eu só queria ver a silhueta dela. Imaginei que se tinha desnudado novamente. Só para mim. Isto vale por todas as riquezas monetárias.
Mas houve um guarda que me picou no peito. Estava deitado num sujo passeio desconhecido, debaixo dum poste de iluminação ferrugento e com uma garrafa de vinho partida ao lado.
- Levanta-te, vagabundo! Põe-te a andar ou vais dentro!
Levantei-me. E fui para dentro, mas da minha casa. Tinha mais um graffitti na porta. Ela desaparecera.
Ainda hoje as aves aquáticas parecem gostar de mim. Ela deve ter continuado a jogar no Totoloto, Euromilhões e Raspadinhas. Deve responder a todas as perguntas dos concursos televisivos. Deve sobreviver com expedientes, sonhando com o luxo. Deve perseguir o seu Rei Midas. E eu vou ao Jardim Zoológico dar amendoins ao elefante, enquanto não chega o Verão para um salto à Caparica.

quarta-feira, julho 26, 2006

Suecada


(Quadro de Paul Cézanne - 1890/95)


Estou farto daquele gajo. Não aguento a sua mania de superioridade. Olhem para isto, para a displicência com que lançou a dama de copas que cortou o meu ás de paus, a forma desleixada como recolheu os 16 pontos em jogo e o modo irritante como ajeitou as 4 cartas no seu monte de jogadas ganhas.
Ele nem sequer sorri. Ele não se gaba de nada. Ele apenas olha as cartas de soslaio e destrói-nos os sonhos com ténues e insolentes movimentos de pulso. Ele deita por terra as nossas ambições com um carta ainda melhor. Ele ganha-nos os jogos todos assim, sem esforço, qualquer que seja o parceiro. Isto é psicologicamente devastador.
Parece que ele possui um desígnio qualquer concebido por alguma obscura divindade pagã. Ele faz-me sentir mal por não ser assim, filho escolhido da sorte.
Eu não sou especial. Quando me vejo com seis trunfos, começo a jogá-los de modo a secar os restantes. Quando tenho ases, saltam-me logo nas primeiras jogadas. Quando não tenho nada, queixo-me, desalentado, lamentando-me da minha sina para que o parceiro saiba e acorra em auxílio. Eu não tenho truques, sou previsível como todos os outros. Não despejo surpresas na mesa, por mais intrépido que seja meu sonoro bater de punho no tampo. Eu sou forma, ele é conteúdo.
Nunca sabemos donde ele lançará o perigo; se daquele inocente terno jogado logo ao início, se daquele trunfo que julgávamos ter sido disparatado ou daquela manilha aparentemente seca. A ameaça vem de todo o lado, em forma de qualquer naipe. Nós não escapamos. Ele é um fantástico predador furtivo e, para além disso, utiliza tácticas de distracção, lança cantos de sereia quando menos se espera. Ele é virtualmente imbatível com um jogo mediano. No fim do jogo, parece que as vítimas vieram implorar-lhe para que ele as derrotasse.
Ele é terrível. Mantém-se impassível, mesmo quando, por algum acaso, perde algum jogo. Eu sei que ele não gosta de perder, mas ele não o mostra. Ele regressa em força no jogo seguinte, com mais sede de vencer. Mas sempre calmo. E eu, nervoso, ansioso que nem um passarinho que vê a porta da gaiola aberta, exulto, gozo com ele, zombo com a sua divindade, gracejo com a minha fugaz vitória. E faço-o enquanto posso, porque sei que, feitas as contas, ganharei uma mísera batalha numa guerra sangrenta.
Gostava que ele sentisse a humilhação da derrota, o vazio de um desejo destronado sem complacências, sem a mínima misericórdia. Porque eu não lhe dou hipóteses, sou cruel. E, contra ele, tento batota sempre que posso. Que mais podiam exigir a um pobre coitado como eu? Tenho de fugir do meu destino da maneira que posso. Raramente consigo.
Ele pura e simplesmente não se exprime. Raios!, mas ele não terá sangue a correr dentro de si?! Sente a derrota, cabrão! Fica pelo menos feliz por me ganhares, pôrra! Perde com desilusão! Sê humano! Dá-me esse prazer de te ver em angústia!
Nada… O silêncio que lhe compõe a figura na hora do massacre é o mesmo na hora da recolha. Parece que nada lhe move. Ganhar-me é apenas um piscar de olhos, é fácil e automático. Perder é insignificante.
No fim, são 61 pontos para ele. Fico a pensar porque guardei o rei de espadas até à última jogada. Foi graças a esses quatro pontos que ele ganhou outra vez. Sem um murmúrio. Acabámos de contar os pontos já ele baralhava as suas cartas, com aquela convicção enervante da vitória que tinha contado ponto a ponto.
- Jogamos outra vez? – perguntou de uma forma tão melodiosa que até me agoniei.
Jogo sim. Mas quero jogar com ele. Contra ele apenas sofro. Agora quero ser o cúmplice e sentir-me como a divindidade.

quarta-feira, julho 19, 2006

Rotundas


O vereador abre a porta do gabinete do presidente da câmara. Ao fundo, o autarca-mor brinca com carrinhos Matchbox e bonecos da Playmobil por cima da ampla secretária de carvalho, com a bandeira do município do seu lado esquerdo, a bandeira da nação do seu lado direito e a moldura com o retrato de presidente da República no meio de ambas. Uma planta enorme amarelece com os fumos do charuto mal apagado no cinzeiro em forma de tripé ao lado da cadeira. Na gaveta, sem os vereadores saberem, o presidente guarda estojos da Lego entre fotografias pornográficas e pins da campanha de Manuel Vilarinho. O presidente olhou com recriminação para o autarca.
- É bom que seja importante, Jonas. Estava quase a apanhar os ladrões – avisou, grave.
- Há uma manifestação na rotunda à porta do edifício exigindo que se acabe com os constantes acidentes na recta do matadouro, Sr. Presidente.
- O que disseste?
- Peço perdão. Excelentíssimo Senhor Presidente – rectificou, atrapalhado.
O presidente deitou um boneco que tinha na mão esquerda para cima duma viatura de brinquedo e apontou para Jonas.
- Constrói uma rotunda nesse lugar e contrata um escultor espanhol para colocar uns bonecos de cimento no meio dela. Quero que haja um repuxo com iluminação nocturna também. Ah, e tem que ter um diâmetro de… de… Ó Jonas, quantos metros de largura tem a última rotunda que mandámos fazer?
- Aquela na Avenida 25 de Abril tem para aí uns 25 metros de largura…
- Essa não foi a última, Jonas. A última não foi aquela no meio da escola secundária, na qual até houve um puto que ficou preso nos canteiros e começou a gritar por socorro?
- Ah, sim, pois, tem razão, Excelentíssimo – corroborou Jonas – Essa tem para aí 50 metros de largura… vai do pavilhão gimnodesportivo até à cantina…
- Bem me parecia… então esta deverá ter 100 metros de diâmetro. E não te esqueças dos outros pormenores todos – voltando a pegar no Playmobil, montando-o em cima do popó – Vruuuuum! “Vou-te apanhar, gatuno!” Vruuuuum!!
- Mas, Excelentíssimo, já esgotámos todo o orçamento camarário a aperaltar rotundas… até colocarmos relva nessa nova rotunda será pedir muito, quanto mais um escultor espanhol…
- Como? – abespinhou-se o presidente, erguendo o pescoço – Então como pensas decorar a rotunda, Jonas?
- E se mandarmos as crianças da escola primária pintar uns painéis com guache? Os pais delas ficariam satisfeitos…
- Isso é melhor que alguma obra de escultor espanhol? É mais arrojado que algum projecto do Santiago Calatrava? Dá azo a que ganhemos algum prémio?
- Não, Excelentíssimo, mas…
- Não serve! – berrou o presidente – Ou é a melhor rotunda do país ou nada! Podes sair que já me incomodaste o suficiente! – zangado, atirou o carrinho para o caixote do lixo que ladeava a secretária – O ladrão fugiu!
Jonas quis insistir. O irascível presidente fazia muitas birras, já era comum. O interesse público, contudo, falava mais forte. Cautelosamente, avançou:
- Excelentíssimo Senhor Presidente, a população já está farta de rotundas. Acho que eles preferem umas lombas e um semáforo limitador de velocidade desta vez.
- Cemáfro? – surpreendeu-se o presidente, soerguendo as sobrancelhas – Que disseste?
- Semáforo, Excelentíssimo, semáforo – esperando que o autarca compreendesse. Mas ele continuava de boca aberta, estampando uma expressão de desconhecimento na sua municipal cara – Aqueles postes de três cores que regulam o trânsito – disse, sem efeito visível na tromba do presidente, que apenas abanou ligeiramente o queixo, sem emitir som – Aquilo que o Excelentíssimo retirou da rua que passa aqui à frente, mal foi eleito.
- Ah, as luzinhas em pé! Já sei! – lembrou-se, dando uma leve palmada na testa – Não, nem pensar. Não gosto daquilo. Ninguém pára quando vê uma luz cinzenta ou abranda à luz azul – reiterou, convicto.
- Cinzento? Azul? – balbuciou Jonas, confuso – É vermelho, amarelo e verde, Excelentíssimo. Não será Vossa Excelência daltónica?
- Não te admito, Jonas! – insurgiu-se, de órbitas oculares abertas, levantando-se com um assomo raivoso da cadeira, agitando os punhos fechados no ar – Já aturei muitas coisas tuas, desde andares a dormir com a minha irmã na rotunda em frente ao mercado e teres escondido os meus peluches com guizos da Chicco na célebre reunião da Assembleia Municipal de Janeiro, aquela em que decidimos colocar uma rotunda no posto de abastecimento a seguir à rotunda que dá acesso ao centro da vila! Tudo bem que as cores não são o meu forte, mas agora isto…
- Mas, Excelentíssimo, “daltónico” é mesmo essa incapacidade de discernir cores, pode confirmar no dicionário… – tentou acalmar Jonas.
- Ah é? Mostra-me um dicionário! – olhou para o lado, mas não tinha nenhum livro nas estantes que vestiam as paredes. Apenas cubos do Noddy por entre algumas bonecas insufláveis com orifícios proeminentes e brindes dos pacotes de batatas fritas – Vai à biblioteca buscar um! – ordenou.
- Não posso, Excelentíssimo – penitenciou-se Jonas, cabisbaixo – Estão a construir uma rotunda no átrio central da biblioteca. Está fechada para obras.
- Hmmm… Está bem – desculpou o presidente, acalmado, dando o benefício da dúvida ao vereador – Então as luzinhas em pé são a melhor solução neste caso, dizes tu? – falou, de mãos apoiadas nas ancas em frente ao vereador.
- Sim, Sr. Doutor. Acreditamos que sim – respondeu Jonas, meio a medo.
- Eu não sou Doutor, Jonas! – corrigiu, sonoro – Devias saber que uma pessoa com este sentido de planificação rodoviária só pode ser Engenheiro, Jonas. Eu sou Engenheiro! Eu “engenho” “engenhocas” que “engenham” de felicidade a vida das pessoas, ‘tás a ver?!? – vociferou ao pobre Jonas.
- Sim, Excelentíssimo Senhor Engenheiro. Dizia eu que um semáforo seria bem vindo... só um pequeno semáforo erecto verticalmente… nem sequer seria preciso colocar um grande semáforo a arquear sobre a via… as pessoas passam a mais de 50 km/h e, pumba!, param logo ao sinal vermelho…
- Vermelho?
- Desculpe, Excelentíssimo… para si é cinzento… apenas desta vez… e resolveremos os problemas de velocidade e atropelamentos junto ao matadouro…
- Hmmm… – pensou ele, perigosamente perto de Jonas – Pode ser, convenceste-me – admitiu o presidente, apoiando a mão direita no ombro do assustado Jonas.
O vereador sorriu, satisfeito, elogiando o autarca pela sábia, e difícil, decisão. Mas o edil máximo, quando Jonas se preparava para sair do gabinete, limpando a testa com um lenço de seda, alertou:
- Olha lá, ó Jonas… Estive aqui a pensar com os meus botões e acho que precisamos de mais uma rotunda junto ao hospital, para que as ambulâncias não se percam às voltas à procura das urgências. Que tal?
- Hã… – Jonas fora apanhado. Não podia deitar todo o seu esforço a perder, por isso preferiu aceder com um gesto corporal de conivência – Porque não, Excelentíssimo, porque não? – sorrindo, nervoso – Vistas bem as coisas, oito rotundas à porta das urgências não são nada, fazem falta mais uma ou duas rotundas para meter as ambulâncias decididamente tontas… isto é, quero dizer – embaraçado com o seu descuido – as ambulâncias decididamente no caminho seguro e rodoviariamente adequado até ao destino que se quer directo. Muito bem, muito bem…
- Não te disse, grande malandro!... – sorriu o autarca, regozijando-se com a perspicácia enquanto se acostava novamente na cadeira – Agora vai lá à tua vida, que eu fico aqui na minha.
Enquanto Jonas fechava as portas do gabinete, coração em fanicos e ideias de enviar currículos para outros organismos públicos, o presidente dobrou-se sobre a sua secretária a brincar com os carrinhos, na larga e imponente mesa de madeira, criando rotundas de papel com os editais e decretos por assinar.
- Vruuuum! Vruuuum! “Apanho-te na próxima rotunda, seu assassino!” – dizia para si mesmo. Os bonecos, se sentissem, provavelmente vomitariam de tanto rodopio.

segunda-feira, julho 17, 2006

Descendência


No reino animal, não é frequente um comum bicho possuir a veleidade de “ter filhos”. Eles apenas se “reproduzem”. Nunca ninguém cobriu as férias da senhora melga com a sua prole pelas Caraíbas, nem nunca houve uma reportagem especial sobre o nascimento de mais 500 milhões de descendentes de um ácaro de carpetes, ou mesmo uma festa de homenagem aos papás pintassilgos pelo rebentamento de mais uma ninhada sua.
A característica de “ter filhos” é essencialmente humana. Revela um poder de decisão e de influência sobre o destino. Controlo absoluto sobre as suas necessidades fisiológicas e capacidade de definir o timing exacto para constituir os seus herdeiros. Já os animais irracionais, meros figurantes neste mundo, uns mais carinhosos que outros, alguns mais passíveis de serem convertidos em figuras de peluche atiradas para as prateleiras de um hipermercado, apenas têm o direito de se “reproduzir”. Não mantêm sequer uma relação duradoura com os seus filhos e, em muitas situações, os próprios filhos voltam para estabelecer relações reprodutivas com as próprias mães. Nos animais é perfeitamente natural, nos humanos é uma perfeita abjecção, incesto de primeiríssimo grau.
Os animais não escolhem. Quando chega a Primavera, o pólen das flores mistura-se com odores imperceptíveis aos humanos e lá o esquilo sente a necessidade inquestionável de se “reproduzir”. Não para mostrar fotografias aos seus amigos esquilos de quão belos são os seus esquilinhos, mas apenas porque lhe foi imposto pela Natureza, pelo instinto. Durante a infância dos pirralhos terá uma carga de trabalhos, que também não questionará, mas depois cada um seguirá a sua vida.
Nos humanos, já não será bem assim. “Reprodução” é um conceito um tanto ou quanto científico e frio demais, daí falar-se em “ter filhos”, que é uma expressão mais agradável e acolhedora. Regra geral, há uma preocupação perene pelos filhos. Existe mesmo a ansiedade de saber se o bebé que esta em incubação precoce na barriga da mãe será futuramente um viril homem, forte fisicamente e dotado intelectualmente, ou uma bela mulher, voluptuosa na juventude e mãe extremosa numa fase posterior. Durante os primeiros tempos, todos os papás julgam que o seu filho poderá ser a “next big thing” da Humanidade, que está ao seu alcance o encarreiramento do seu filho para que essa imortalidade surja, que está nas suas mãos a decisão do futuro dos povos. Basta que os papás, quais Mourinhos da vida, consigam captar os pequenos sinais e extrair o melhor rendimento dos diamantes em bruto que são os seus filhos.
Adelino observava com discrição o seu filho a entreter-se com uma consola de jogos na ombreira da porta. Abordou-o, mesmo sabendo que o jovem Adelino não iria desligar as atenções do ecrã.
- Ouve lá, filho, tu já pensaste no que fazer à tua vida?
BANG! PAF! ADUNKEN! HO-RYU-KEN! Ti-ri-riu-Ti-ri-riu… Game Over.
- O que estavas a dizer, pai? – enquanto reiniciava o jogo, levemente desiludido por ter perdido o combate anterior.
- Tu devias ser como este gajo – e revela a fotografia. Ao olhar para a fotografia, o filho replica:
- Então mas esta é a gaja que foi capa da Maxmen no mês passado, só que sem soutien…
- Eh, pá, não era essa fotografia – diz, embaraçado – É esta! – rectificando.
- Quem é este gajo? – estranha o filho, fazendo “pause” ao jogo.
- É o Robert de Niro n’ “O Padrinho II”.
- Que é isso? – aborrecido, recomeça a jogar.
- O Robert de Niro, a interpretar o papel do jovem Vito Corleone. Um jovem que venceu na vida começando do nada, sem nunca esquecer a sua família nem as suas origens. Como tu podes ser, filho… Um homem que impõe respeito pelos seus valores…
- Iá, iá… Merda!, voltei a avacalhar… - ouviu-se o cavernoso “Game Over” outra vez.
Ou então, Timóteo, que também abordou o seu filho enquanto este via um jogo de futebol.
- Filho, já te vi a fazeres um pontapé de bicicleta nos jogos com os teus amigos… tu podes ser o novo Rui Costa! – exultou.
- Mas eu chamo-me Possidónio Sebastião Rascunho dos Sapos, pai… e sou vesgo. Só quis acertar no meu colega que me estava a chatear… - e foi golo do Gil Vicente, contra a corrente de jogo.
Não interessa. Os humanos têm ambições desmedidas e sonhos infinitos. Os animais resignam-se com o que têm e mais não querem, seguem o relógio biológico de uma forma inexorável. Joana não. Joana é o exemplo da evolução humana. Joana procura status. E disse-o a Amílcar.
- Amílcar, a nossa vida não tem charme. Faz-nos falta algo.
- Acabámos de frequentar 4 festas das tuas amigas, fizemos um cruzeiro pelo Mediterrâneo, férias nas Maldivas e esquiámos na Suiça. Tens um todo-o-terreno topo de gama com zero quilómetros na garagem do apartamento de luxo no Parque das Nações e já foste à manicura 3 vezes hoje… o que te falta?
Joana ficou de certa forma indignada com a falta de perspectiva de Amílcar.
- Ó Amílcar, temos de fazer um puto! Quero emprenhar como a Cila Montepio Geral e a Caixa Amália dos Depósitos! Já viste como elas são felizes? Já viste as oportunidades que se podem abrir?
- Fraldas e mais fraldas e acordares sobressaltados a meio da noite? – respondeu Amílcar, secamente como o barulho de um cofre a fechar, de forma a irar Joana.
- Ai, Amílcar! – exaltou-se – Seremos convidados para as festas de anos dos filhos dos outros! É uma janela social que se abrirá! Quero ter um filho, pronto!
- Não te chega um cão? Já viste que ficarás mais gorda e provavelmente deformada depois do parto? As tuas mamas vão parecer balões descaídos e as tuas pernas ficarão cheias de varizes e celulite… - advertiu Amílcar. Joana reconsiderou.
- Visto dessa forma… a Marina Comercial Português ficou mesmo muito feia… e a Roberta Espírito Santo adoptou dois gémeos gaboneses… Um cão, disseste tu?
- Sim, um pequeno Poodle ou um Yorkshire Terrier… algo que seja facilmente abandonável quando formos de férias para o resort do Brasil…
- Não! – reagiu Joana, acordada do torpor que momentaneamente a afectara – Quero mesmo um puto! Vai sair de dentro de mim e vou ser elogiada por isso! O cão não sabe sequer falar! Amanhã trata de me fornicares a valer, ouviste?
Embora possamos encontrar uma situação com contornos animais – um humano apanhado desprevenido no rodopio da tentação carnal, envolto nas contrariedades fisiológicas inerentes às relações amorosas desmedidas e instintivas. E também sem planos de fundo destinados aos descendentes. Vânia será mãe pela 9ª vez. O seu parceiro, Gualter, fez apenas duas perguntas na visita da assistente social à sua casa na Reboleira:
- O que é um preservativo?
- O que é a masturbação?
Sobre o futuro deste filho, resposta pronta: “Para as obras, como os outros todos!”. Mesmo as filhas seguiriam esse horrível destino? “Filhas? Ah, as empregadas domésticas? Se quiserem, também podem ir, só lhes faz é bem!”.
Digamos que, nalguns casos, “reprodução” ainda é um conceito aplicável aos humanos. Mas, por favor, não o digam em público e reservem-no para quando visitarem algum bairro de lata perto de vós. Pois o mundo minimamente desenvolvido, o que interessa, o que enche de cor-de-rosa as nossas vidas e as páginas de múltiplas revistas, só fala em “ter filhos”, nunca em ninguém que virá por algum acaso e que não merecerá atenções especiais, mas sim em parir bebés banhados na luz da semi-perfeição. Filhos que irão salvar o mundo, deles e dos outros, bem entendido.

quinta-feira, julho 13, 2006

A Época Parva


Chegou o calor. Com ele, a época parva (aportuguesamento da expressão anglo-saxónica “silly season”), propensa a dislates da mais variada ordem.
No Parlamento, assistiu-se à demissão em bloco da oposição. “Está muito calor”, justificou o líder da bancada parlamentar do maior partido da oposição. “Eu não sei qual é a vossa opinião sobre este facto, mas nós estamos melhor no Algarve a ver as bifes em topless do que a discutir coisas menores, como o desemprego entre licenciados, numa sala sem ar-condicionado”, ajuntou esse mesmo responsável. “Quero é curtir!”, mencionou o líder parlamentar de outro partido da oposição, no espaço dos Passos Perdidos. “Ainda não fui à praia este ano e estou com uma corzinha de meter dó”, afiançou. Indagado sobre a moralidade desta tomada de decisão, que uniu num insólito consenso quase todo o hemiciclo, da esquerda à direita, o responsável argumentou que “ninguém se importa de ver o João de Deus Pinheiro a jogar golfe 360 dias por ano, por isso não se venham queixar agora”. Deixou ainda um aviso: “Eu quero ir à Kadoc e a uma festa de trance em Ibiza com o Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares”.
As movimentações não se ficam por aqui. Tem sido veiculado que um deputado do PCP está a ser assediado pelo CDS-PP. Os rumores ganham mais consistência se constatarmos que esse deputado está em final de contrato e, muito importante, reside numa vivenda no eixo Lisboa-Cascais. Confrontado com estes boatos, o CDS-PP reagiu. “É verdade que fizemos uma proposta que julgamos irrecusável”, confirmou um porta-voz que não o oficial, mas que é oficioso por diversas vezes. “Propusémos o pagamento da jóia de admissão, três almoços mensais no restaurante «A Valenciana» e um livro ilustrado sobre a Opus Dei. O deputado ficou de pensar”, assumiu sem rodeios. Contudo, o deputado comunista apenas admitiu que “foram levadas a cabo conversações nesse sentido”, mas que pretendia negociar “os almoços n’ «A Valenciana», já que nem gosto muito de frango assado, e dispenso o livro sobre a Opus Dei, pretendendo antes a biografia sobre Álvaro Cunhal escrita pelo Pacheco Pereira e um busto em gesso do Lenine. Quanto ao resto, não me oponho”. Desconhecem-se a reacções do PCP. Aliás, desconhece-se quase tudo sobre o partido, mas certamente que estarão contra. Contra tudo e todos e qualquer coisa. Não é por estarmos na época parva que eles irão mudar. Felizmente, há coisas que nunca mudam…
O governo não estranhou a decisão da oposição, nem deixou de estranhar. As mulheres da bancada maioritária do Parlamento estavam entretidas a trocar receitas de bacalhau entre si, e uma ex- Ministra da Educação ruborizou quando se apercebeu que só tinha receitas de doces conventuais para a troca. Os homens estavam embrenhados numa polémica e acesa discussão sobre o último Mundial de futebol, com os deputados eleitos pelo círculo de Braga a manifestarem-se violentamente contra o estilista escolhido para desenhar os fatos de gala da selecção da Ucrânia. Nenhum destes deputados sentiu a falta da oposição. Os trabalhos finalizaram já a noite estrelava lá fora.
Ainda no futebol, expôs-se aquilo que todos julgávamos evidente há alguns anos: o Benfica tornou-se, incontestavelmente, o clube mais rico do mundo. Vendeu Paulo Almeida e Artur Futre ao Dragões Sandinenses, que venceu ao “sprint” o Chelsea e Real Madrid, por cerca de 386,5 milhões de libras cada, e comprou Shevchenko e Ronaldinho Gaúcho por dois bilhetes de cinema no Quarteto e três garrafas de 20 cl de Sumol ananás. Shevchenko, emocionado com o quilate da oferta, exigiu humildemente pagar do seu próprio bolso as garrafas de Sumol. Por sua vez, a alegria de Ronaldinho em saber que iria envergar o “jersey” encarnado foi tal que até renunciou à selecção da Nike (ou do Brasil, não se sabe bem ao certo) para se concentrar a fundo no clube. Também preferiu não abusar da sorte e dispensou as idas a cinema, para além de se ter prontificado a suportar os bilhetes anuais dos cerca de 30 milhões de cativos que anualmente lotam o Estádio da Luz.
Questionado sobre a racionalidade da sua exorbitante oferta, o líder dos Dragões Sandinenses reforçou que “se os jogadores estavam a aquecer o banco nesse extraordinário e surrealmente espectacular clube, então devem ser mesmo fantásticos. Nós precisávamos de alguém com capacidade de aquecimento, visto não termos recursos para um esquentador no balneário. Não estou arrependido e considero que fizemos um grande negócio. Já viram os preços dos esquentadores? Nem sequer digo um Vulcano, mas um Junkers ou um Vaillant?”.
Para finalizar, uma notícia de última hora dá conta de vários focos de incêndio em Vila Nova de Poiares, ateados por homens disfarçados de árvores. Um pinheiro bravo foi visto a pegar fogo ao quartel dos bombeiros e as únicas boutiques de pronto-a-vestir da vila foram vandalizadas e queimadas por duas mimosas munidas com latas de gasolina. Um eucalipto que foi detido e presente às autoridades referiu que esta onda de incêndios “é uma resposta enérgica dos ambientalistas chocados com as acções vergonhosas de combate e prevenção de fogos florestais verificadas em anos passados”, prometendo alastrar a sua guerrilha para “Lousã, Arganil, Mação e até S. Pedro do Sul, se for preciso”. Enquanto era encaminhado para a esquadra da GNR, iniciara-se mais um incêndio na Casa do Povo do Entroncamento de Poiares por um enlouquecido castanheiro com lança-chamas a tiracolo. Presume-se que o Rancho Folclórico da vila não tenha ficado contente com a perda dos seus bombos e ferrinhos, mas até agora não foi possível captar as reacções do mesmo – pensa-se que o Rancho ainda esteja a finalizar a visualização do programa da manhã da TVI.

segunda-feira, julho 10, 2006

O Herói Nacional


Delírio total. A comitiva lusitana, de regresso às valentes terras de Viriato e de Marco do Big Brother, espalha euforia por onde passa. Nem sequer precisa de passar em qualquer sítio – um simples bafo, respiração, ou mesmo uma mera evocação ou página central de jornal, são suficientes para desencadear o êxtase generalizado.
- Perdoem-me a emoção, senhores telespectadores… é fantástico! Esta é a nossa equipa, o nosso país… eu não consigo manter a imparcialidade… - comenta um repórter com ares de nacionalista – É simplesmente formidável. Caros telespectadores: estou sem palavras. Deixo-vos com o som de fundo das gentes que celebram a nossa equipa.
« PUR – TU – GAL! PUR – TU – GAL! PUR – TU – GAL ! »
Fotografado e assediado por todo o lado, embrenhado no cerne da confusão, o craque da equipa lusa, Manuel das Orelhas, vulgo Manel Coratos, resolve presentear os fãs com um soberbo e portentoso peido à saída do aeroporto. Um polícia mais sentimental não consegue manter a pose de autoridade e tenta recolher um pouco do seu cheiro para dentro de um frasquinho de plástico. A multidão procura ainda mais braços para abraçar o grande Manel, com os seguranças a desdobrarem-se em pisões e empurrões que permitam Manel respirar.
- Manel, Manel, que pensa desta recepção? – consegue um repórter perguntar à estrela nacional.
- Muito feliz por mim e pelo grupo – responde, sem retirar os óculos escuros, cercado pelos seguranças e outros repórteres que o isolaram temporariamente dos vulgares adeptos – Estamos todos de parabéns. Fizemos os possíveis para enxovalhar ainda mais a imagem do nosso país e conseguimos, com dignidade. Enojámos todo o mundo, que já nos olhava de lado, dando uma chapada de luva branca na cara desses senhores que diziam que não éramos capazes de ser tão porcos como os grandes porcos do Mundo.
- E quem são esses senhores?
- Não quero alimentar polémicas nesta altura – Manel fora envolvido por um cachecol ao pescoço. Mal consegue ouvir as perguntas e responder, tal o ruído de cânticos vitoriosos à sua volta – Mas ficou provado que conseguimos ser realmente energúmenos quando queremos e que praticamos flatulência de excelente qualidade. O facto de termos perdido logo na primeira ronda não ofusca em nada a mal-cheirosa participação portuguesa, antes pelo contrário.
- Não acha que fomos mal preparados para este Mundial dos Peidos? A equipa alemã parece que foi mal estudada…
- É rotundamente falso – indigna-se Manel – O nosso treinador, Carlos Alberto Clister, avisou-nos para o facto deles comerem muita chucrute e isso possibilitar-lhes peidos de longa distância e bastante asquerosos, já sabíamos que ia ser assim. Infelizmente, o árbitro penalizou aquele arroto dado pelo João Imperial e sofremos um peido esquisito, que fez com que desmaiássemos, algo que só acontece uma vez na vida. É assim…
- Acha que o árbitro influenciou o resultado?
- Não, não, acho que não – atira prontamente Manel. Os fãs exibem cartazes de apoio a Manel, eleito o peidador oficial da nação. Depois, Manel detém-se em 2 ou 3 segundos de silêncio antes de concluir – Toda a gente viu que o João é boa pessoa, estava precavido, sabia que não podia arrotar, porque era contra as regras do torneio… infelizmente, somos muito pequenos, temos pouca influência, e aquilo que se passou foi que o João apenas soluçou após mais uma imperial de “penalty”. O árbitro entendeu que foi um arroto e expulsou-o… - lamenta Manel, encolhendo os ombros.
- Manel, foi criticado por libertar demasiado gás metano, talvez por influência de feijão cozido em excesso. Quer agora responder aos críticos?
- Não, não, a esses senhores respondo nos lavabos – explica Manel, sério e compenetrado, pronto a defender o seu brio profissional – Liberto tanto gás metano como butano e julgo ainda este ano ter condições para me lançar no gás propano. Esses senhores nem sabem o que é uma Coca-Cola com grão, portanto não me venham dar lições sobre a porcaria.
Nesse instante, uma senhora anafada e roliça fura a cobertura dada a Manel e abraça-se ao repugnante craque do peido português, beijando-o freneticamente, espalhando o buço de inspiração piaçábica na lisa pele de Manel.
- És o maior, Manel! És o maior! Dá uma bufa de pantufas só para mim! Dás-me, Manel? Manel? – sendo arrastada para longe de Manel, invectivando tudo e todos num sotaque nortenho bem audível. Antes de Manel recolher ao camião do lixo para ser levado à Tasca das Bifanas, conforme estava programado, o jornalista faz-lhe uma última questão.
- Manel, vai continuar a praticar a sua jogada preferida, isto é, o encostar do isqueiro junto ao esfíncter anal na altura da libertação do gás, o chamado “lança-chamas”?
- Obviamente – assegura Manel, já agarrado ao corrimão traseiro do camião, pronto a balouçar-se ao vento pelas ruas apertadas da cidade, aclamado pela multidão que zurra o hino com as bandeiras levantadas ao céu – É a minha jogada de marca, os meus adversários terão de me aturar por mais uns tempos, que os meus intestinos ainda estão em desenvolvimento!
Manel vai-se embora, deixando a plebe órfã do ídolo. Vários rolos de papel higiénico são arremessados carinhosamente na direcção do camião que parte, ao que Manel responde com acenos e beijinhos. Antes de regressar ao estúdio, as câmaras captam ainda uma embevecida mamã a revelar a fralda suja do seu bebé no meio do povo eufórico.
- Um dia, este há-de ser o novo Manel! Vejam só este serviço!... PUR-TU-GAL! PUR-TU-GAL! PUR-TU-GAL!

quarta-feira, julho 05, 2006

Um Pouco de Pornografia


Às vezes, a mulher agarrava-se semi-despida ao homem, envolvendo-o com o braço. O homem grunhia:
- Agora não, que o Benfica está a jogar.
Noutras ocasiões, a mulher arregaçava o vestido de dormir ao esticar as pernas despidas sobre a mesa, mordiscando um morango de forma lasciva. O homem cortava todas as hipóteses.
- Não, que a malta já me deu dois toques para o telemóvel e tenho de ir ao café.
No caso de Abílio, nada se passava assim. Quando o Benfica jogava era a mulher que via o jogo e quando as amigas lhe davam toques para o telemóvel era ela que ia às compras. Abílio que se arranjasse.
A mulher de Abílio era de reconhecidos dotes, um pouco cheia, aspecto feminino amadurecido, embora de instintos anormalmente masculinos. Quando Abílio lhe presenteava com um ramo de flores após mais um aniversário da sua relação, a sua mulher arrotava alarvemente a cerveja que comprara em promoção numa cadeia de supermercados alemã. Abílio, por respeito à florista, preferia colocar o ramo na jarra mais escondida da cozinha ao invés de trocá-lo por um pacote de pevides.
Era Abílio que tratava dos animais de estimação. O gato ronronava ao sentir as carícias de Abílio e eriçava o pêlo ao sentir o bafo da sua mulher, que mostrava pouca hesitação ao pontapear o bichano, praguejando “Rai’s partam o gato!”. O periquito escondia-se por detrás do choco ao vê-la entrar pela porta, encolhia-se sob as suas coloridas penas, mas rejubillava quando Abílio enchia o recipiente de alpista.
E quando Abílio sentia-se excitado, com uma vontade irremediável de contemplar as formas femininamente gostosas da sua mulher, vê-la despida sob o chuveiro em delícias obscenas, ela fazia os possíveis para trazer Abílio de volta ao subterrâneo da felicidade, ao porão do êxtase:
- Ó Abílio, corta-me mas é as unhas dos pés, que acho que essa aí está a ficar encravada – e acendia um cigarro que fazia questão de besuntar com batôn vermelho.
Abílio cortava-lhe as unhas com perícia, nunca deixava cair nada para a carpete. Nessas alturas, sonhava com um lindo dia de sol lá fora, crianças aos saltos com cordas e a brincarem com cãezinhos formidáveis. A mulher devia estar a pensar em quem iria o presidente do Benfica acusar de afronta ao clube nesse dia.
Abílio devorava as telenovelas da noite. Soçobrava facilmente às lágrimas quando se descobria que o amor tórrido de Jaciara e Maiquel era afinal impossível – descobrira-se que tinham sido irmãos siameses separados pelo próprio pai, o Dr. Rovérsio, e que a malvada madrasta, a Dona Clotilde, fizera o possível para ostracizá-los. A mulher de Abílio, contudo, ria-se, gargalhava mesmo; chegava-se a engasgar com os aperitivos que devorava, mostrando o mínimo de sentimentalismo possível. Pobre Abílio, no conforto das almofadas meditava sobre o temperamento da sua mulher. Como a amava… suportava todos os seus joanetes e enxaquecas, o seu hálito alcoólico e a sua tendência para roupa cor-de-laranja aos quadrados, mais as suas dúzias de visitas ao cabeleireiro semanais e o típico resmungar matinal. Nem por isso conseguia sentir menos apreço por ela. Ela nessas alturas ressonava, e fazia-lo bem, subtil que nem um martelo pneumático.

Um dia destes, a mulher de Abílio ficou fascinada com estórias irreais que ouviu no salão do cabeleireiro. Contos fabulosos sobre fantasias sexuais diversas. Uma amiga que tinha praticado sexo oral no elevador com o filho da vizinha, um jovem mecânico analfabeto, mas bem musculado; ou outra amiga que supreendeu o marido com outro homem e que não foi de modas, entrando na orgia – consta que até envergando chicote de couro e lingerie preta. Ela ficara embasbacada, embaraçada consigo mesmo. Nunca se tinha apercebido que havia algo mais do que ver jogos do Benfica, do que beber umas cervejolas em frente à TV, do que a sua aparência física conservada religiosamente para algum objectivo incerto, mais do que sentir-se bem ao olhar para o espelho – havia, sim senhor. Havia sexo.
Ela nunca gostou de se sentir nua por cima ou por baixo de um homem. Nunca gostou desses júbilos carnais. Não gostava de se desnudar perante ninguém. Era extremamente púdica, nem gostava de se despir sozinha às claras, preferia fazê-lo na anónima escuridão, e não apreciava ir à praia. Não sentia uma atracção particular por formas fálicas, embora gostasse de um corpinho bem feito, das pernas torneadas, dos abdómens trabalhados, dos ombros fortes. Mas o sexo puro e duro, feito de pujantes penetrações e lubrificações viscosas impregnadas de odores animais, não lhe dizia nada. Praticara-o uma vez ou duas com Abílio.
- Será que o Abílio poderá dar-me um novo sentido à vida? – questionava-se a si mesma, atarantada com as conversas do salão. Fez sentir esta dúvida a Abílio, que estava a podar uma planta trepadeira na marquise.
- Querida, eu tenho qualquer coisa de novo para ti, sim.
Abílio encaminhou a mulher para o quarto, tremelicante. Mal podia caber em si de contente, estava ansiosíssimo, cheio de fulgor, de vigor. Sentira uma poderosa e irreversível erecção mal ela o abordara com o intuito de sexo. Sexo casual. Intenso desejo fortuito. Atracção libidinosa descontrolada.
Ela, expectante, deixou que Abílio se agarrasse ao leme do prazer e a guiasse, que ela não tinha a bússola neste mundo de luxúria que é o sexo desbragado. Viu-se embrulhada em algum receio ao encontrar Abílio tão alvoroçado, olhos arregalados quando ela descalçou os sapatos e ele já nu, com um pau enorme que nem sonhava que existia. Preferiu evitar pensar onde aquele mastro iria ser enfiado, dentro dela, do seu corpinho. Achou melhor nem sequer considerar que aquele órgão abjecto lhe iria cuspir segregações malignas para dentro do seu imaculado útero. E disparou o sacramental pedido:
- Abílio, apaga a luz e tem calma.
Abílio estava seco demais para beijá-la, estusiamado demais para afagá-la primeiro, quis entrar forte e feio nela, brutalmente, como leão feroz a irromper na savana. Nada iria parar Abílio. A sua mulher pensava “Se as minhas amigas gozaram, eu também vou gozar. Caramba, elas não podem ser melhores que eu!”
Por detrás da parede do quarto escutou-se nesse instante:
- GOOOOOOOOOOOOOOOOOOLO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Tinha sido o vizinho, fanático adepto vermelho. A mulher de Abílio ergueu-se bruscamente, logo tapando-se com o lençol. Ela ficou perdida. Esqueceu-se imediatamente de se comparar com as suas amigas.
- Foi do Rui Costa, de certeza! Foi o Rui Costa! Merda, esqueci-me que hoje jogava-se a Taça Amizade!!!!!!! Traz-me as cervejas, Abílio. Vamos para a sala!
- E… então e… - tentou reagir Abílio. Notava-se que o clímax se tinha esfumado, como se tivesse sido ele o guarda-redes a buscar o esférico ao fundo das malhas.
- Então… fica para outro dia! – e já ela vibrava com a repetição na TV – Foi mesmo o Rui Costa! Ganda jogador! Ganda remate! Os tripeiros estão lixados com o regresso do NOSSO Rui Costa!!!!! – exultou.
Abílio sentia-se tentado a torcer pelo FC Porto. Mas não o fez. Quiçá por amor, quiçá pelo seu desprezo pelo futebol. Entreteve-se com filatelia até o jogo acabar, refazendo-se da frustação ao observar com a lupa selos checoslovacos dos anos 60. O jogo, porém, deve ter sido muito bom. Por mais que uma vez a sua mulher berrara da sala:
- Vai ser… vai ser… Ahhhhhhhhhh!!!! Ao poste!!!!
Abílio estava farto de ver a sua vida a bater nos postes. Mas amáva-la, o que fazer?

domingo, julho 02, 2006

O Infernal dos Santos


O arquétipo do rigor. A raiz do medo. A mais cruel forma de repressão.
A sua constante luta pelo extermínio de jogadores no relvado não conheceu paralelo. A sua infame reputação é tão abrangente que nem sequer se encontram fotografias digitais dele na Internet. Falamos, obviamente, de Martins dos Santos, árbitro da AF Porto, também ele portador de orgulhoso bigode.
Para muitos, é uma felicidade que Martins dos Santos seja, agora, um ex-árbitro. Porque dos Santos era decididamente impetuoso, não tinha pudor em imiscuir-se no jogo, cegava-se pelo brilho do protagonismo e destruía o que podia ser um jogo, vamos lá, razoável. Enquanto dos Santos pavoneava-se pelo tapete verde, apito fulgindo ao sol ou sob os holofotes, sentia sempre aquele estranho ardor nos bolsos, uma súbita vontade de também ele exibir todos os seus dotes, como os artistas que corriam com uma bola. E à falta de argumentos futebolísticos, dos Santos intrometia-se apitando, esbracejando e sancionando com cartão o inconformado jogador.
Martins dos Santos retirava prazer com a amostragem de cartões. Oh!, orgasmos incontidos de cor!, de justiça! Como gozava ele, esticando o braço cartonado aos céus, como oferta aos deuses. Noventa minutos de pura afirmação de poder. dos Santos várias vezes ultrapassou a barreira dos 15 cartões, compôs hinos de apito, verdadeiras sinfonias ininterruptas de silvos de intensidades diversificadas. O público inquietava-se, insultava, gesticulava veementemente, arremessava objectos diversos para dentro das quatro linhas; os jogadores enervavam-se, os treinadores no banco agitavam-se, e também eles seriam levados de enxurrada pela fúria justiceira de dos Santos – mas o incansável árbitro não parava, fazia-se ouvir bem alto, fazia-se mostrar bem valente.
Este terrível Ivan dos campos de futebol possuía, como todos os rangers, o seu calcanhar de Aquiles. dos Santos tinha dois amores. Tal e qual como Marco Paulo, e também não conseguia decidir do qual gostava mais – se do amarelo, se do vermelho. Falamos de cartões. E os cartões não eram assim tão despiciendos – sim, porque neles residia a sua essência. Um apito é bonito, sim senhor, exala autoridade por aquela abertura com a bolinha lá dentro, aprisionada; mas os cartões é que definiam o que é ser um árbitro implacável.
dos Santos, nalgumas situações, sentia um pouco de pena por ver o cartão vermelho ali tão sozinho no seu bolso dos calções, acomodado contra o seu rabo, e logo se preparava para dar descanso ao cartão amarelo, já gasto de tanta amostragem; e às vezes, dando uma fugaz folgazinha ao cartão vermelho, mostrando a complacência pontual dum grande líder que também sabe ser pacificador, repreendia apenas com o cartão amarelo um jogador que fizesse a sua 12ª falta. Tentava dar a mesma atenção aos seus dilectos cartõezinhos. Os resultados práticos eram variáveis, mantendo porém as usuais queixas dos treinadores e dirigentes de ambas as equipas, numa rara comunhão de opiniões e num evidente reconhecimento universal do conceito muito particular de justiça de dos Santos.
Mesmo com este dilema, dos Santos retirou-se tranquilamente da arbitragem, envolvido num estranho sentimento de paz, ele que foi anos a fio o mais sanguinário dos protagonistas em campo. Ao pé dele, Paulinho Santos é um rufia, Estaline um modelo. Martins dos Santos impôs o devido respeito nos relvados.

O Evangelho Segundo José Pratas


1992. O mundo acorda da ressaca pós-queda do Muro de Berlim. No leste europeu abrem-se brechas na cortina de ferro e aspira-se o pó levantado pelo ar que deu ao Pacto de Varsóvia. Em Moscovo bebem-se quantidades inimagináveis de Coca-Cola e Ieltsin propagandeia o vodka russo de uma forma sem precedentes.
Também em 1992, o Senhor da foto viveu momentos históricos. Em Coimbra, cidade estudantil, houve o privilégio de assistir a uma segunda queima das fitas no final do Verão. O velho Calhabé esteve ao rubro.
Para os mais distraídos, recordo que nesse FC Porto – Benfica para a Supertaça, José João Mendes Pratas, árbitro ao jogo filiado na AF Évora, correu (“fugiu” seria o termo certo para muitos) à frente de quase toda a equipa do FC Porto, perante os olhos da televisão pública e dos atónitos espectadores.
Mas não foi uma corrida qualquer, desenganem-se.
José Pratas parecia Forrest Gump, anos antes do filme ter estreado. Ele não correu por estar a ser ameaçado pela equipa do FC Porto, por querer colocar-se a salvo perante os pedidos de explicação exigidos por personalidades tão retóricas como Fernando Couto, João Pinto, André ou Bandeirinha, tão pouco queria escapulir-se por não conseguir aguentar a pressão de um ambiente tão civilizado como o do balneário do FC Porto.
José Pratas, qual Jesus, disse “Vinde a mim os pobrezinhos” e eles, extasiados, acorreram imediatamente à chamada de José Pratas e seguiram-no, sôfregos, ofegantes, ansiando por mais algum sinal seu, um bocado de cabelo, um pedaço do bigode, uma farpa de roupa, qualquer coisa.
Pratas conhecia o caminho de redenção, aconselhou calma como quem tenta guardar um saco de arroz de uma multidão esfomeada. E seguiu, correu para onde lhe levou o coração, a razão,
para onde as pernas permitiam.
Pratas pensou e disse “Como estais órfãos de um sentido para a vida, irmãos; vinde comigo provar a seiva divina da mais sagrada das fontes da liberdade; vinde comigo conhecer o mais sacro dos lugares prometidos na Terra; vinde comigo, irmãos do infortúnio”. E os seus intentos foram cumpridos de um modo avassalador, gerou-se um fervor incondicional pela sua figura de uma forma totalmente espontânea, tal o seu carisma. O seu chamamento atiçara a tentação infinita de felicidade sentida pelo plantel do FC Porto. Pratas tornou-se no mensageiro da fé, o carteiro da boa esperança, a luz ao fundo do túnel, o profeta da sorte, indicador do caminho para a eternidade.
Fernando Couto, por exemplo, ambicionava encontrar paz de espírito e alívio ao olhar-se ao espelho. André desejava ter mais cabelo. Bandeirinha, mais altruísta, só queria que se respeitassem os direitos humanos em Timor. E João Pinto, um homem sempre à frente do seu tempo, só queria beber as palavras que Pratas teria para dizer, deliciar-se com a aura daquele homem de preto vestido, tornar-se o seu discípulo de eleição, nem que tivesse que utilizar algum do seu costumeiro vernáculo.
Pratas não rejeitou as suas responsabilidades. Peito aberto, bigode ao vento, percorreu triunfante aqueles metros de relvado, como a imagem da mulher ícone da República com a bandeira na mão, numa alegoria épica à liberdade e emancipação dos povos. Para a história ficou ainda uma ficha de jogo sem expulsões.
1992 não pode ficar para a história apenas como o ano 1 do leste pós-bolchevista; em Coimbra testemunhámos quão espectacular pode ser a descoberta de um Messias num campo de futebol. Nunca Fátima esteve tão próxima do Futebol no país do Fado. Nunca mais veríamos uma manifestação de fé como esta num estádio até à realização de convenções de esdrúxulas
igrejas no Restelo.
Uma sentida homenagem a José Pratas.