segunda-feira, abril 30, 2007

Teodoro, Ou Como Se Ganha a Vida Denunciando a Destruição de Ninhos de Cegonhas

Teodoro. Uma no cravo e outra na ferradura. Orgulho nacional sombriamente recolhido lá para os lados de Alcácer do Sal. Fervor e ecologia. Tempo livre e bizarrias. Teodoro não gosta de jogar às cartas no jardim. Embirração e sisudez. Teimosia e curiosidade. Teodoro não trabalha. Não estuda pelos livros, estuda pela vida.
- Estas aves não mudam de parceiro, não mudam de casa – confia-nos, com a sedução ornitológica impregnada na sua voz.
Fidelidade e admiração. Culto e devoção. Teodoro dedica-se à observação de cegonhas. As aves que trazem bebés de Paris. Espécie protegida até ao tutano. Podemos sacrificar vilas e cidades inteiras. Mas não o ninho da cegonha. Preservação e conservação. Prioridade e primazia. Teodoro. Onde haja um poste de alta tensão à beira da auto-estrada, estará Teodoro com os seus binóculos, recolhendo fragmentos da intimidade das cegonhas. Olhos alertas. Espionagem e voyeurismo. Cuidados e cautelas.
- Eu processo quem ousar chegar perto dos ninhos. Esses malandros da EDP já me conhecem.
Na EDP, efectivamente, todos conhecem Teodoro. Também na REN, na Quercus, em vários Institutos nacionais. Lá vai Teodoro. Mais uma atrocidade cometida contra as cegonhas – desta vez, queriam mandar abaixo um poste ferrugento junto ao rio Sado. Não pode ser. Inquietação e indignação. Processos e manifestações. Não interessa se o poste iria servir para melhorar a vida de 15.000 pessoas, no mínimo. Não. Interessa que iria prejudicar uma família de cegonhas. E depois, onde estaria a imagem da harmonia familiar, donde viriam os bebés, quem iria tratar dos peixes e lagostins do rio? Denúncias e exposições. Mediatização e consternação.
- Não podia deixar passar em claro – explica-nos Teodoro – Na 3ª feira, lá pelas 5 da manhã, levantei-me para ver como estava a família do 4º poste a contar da ponte, umas cegonhas porreiras, pássaros elegantes e bem formados. E dei de caras com uma equipa furtiva de engenheiros a fazer marcações. Aproximei-me. Os tipos, surpreendidos por verem alguém por ali àquelas horas, borraram-se logo todos. E eu, “Então, o que estão para aí a medir? É bom que não tenha nada a ver com aquele poste… Sabem porquê?”, e os gajos, todos acagaçados, já a quererem fugir, a gaguejar, lá sabiam porquê, “Por causa das cegonhas?”, responderam a medo. E eu disse-lhes, “Ah, pois é. Digam-me para onde trabalham e vou processá-los por atentado contra a Natureza”. E assim foi.
Obstinação e raiva. Amor e princípio. As cegonhas sentem-se seguras. Policiamento e segurança. Por amor à Natureza, Teodoro já impediu várias urbanizações, linhas de transporte eléctrico renovadas, campos de golfe, fábricas, bordéis, escolas de arte plástica, um novo campus universitário, tanta coisa que já não se lembra. E tudo porquê?
- Pelas cegonhas. E também pela publicidade. É que depois de ter impedido tanta coisa, não sei porquê, as coisas não se desenvolvem cá pela terra. É só coisas antigas lá na vila, as pessoas fogem daqui, fogem de mim, inadvertidamente fiz com que dois amigos meus falecessem numa discussão acalorada com a minha bazuca de bolso, tenho de combater a modorra, apesar do número de cegonhas ter crescido bastante nos últimos tempos e do meu trabalho de observação ter aumentado das 12 para as 14 horas diárias, excepto ao Domingo. Ah, e cerca de 20% das indemnizações que recolhi foram para mim. Sim, também pelo dinheiro. Nem todos os seres são perfeitos. Só a monogamia das cegonhas, claro, isso não falha. Animais fantásticos!
Fantasia e realidade. Teodoro. O inquinador de projectos. Espalha-brasas inveterado. É esta a sua vida. Vivam as cegonhas, viva Teodoro, vivam as forças de bloqueio. Em prol de qualquer coisa superior. Pode ser essa ave migratória, fomentadora da natalidade. Liberdade e acusação. Determinação e caricatura. Loas a Teodoro.

segunda-feira, abril 23, 2007

Burro

Aceita o teu papel. Deves submeter-te à rotina. Deves produzir. Deves servir. Deves estar satisfeito com o teu progresso. Com a tua casa. Com o teu carro. Com a tua mulher que passa horas ao telefone. Horas no cabeleireiro. Horas nas montras. Horas a debitar palavras sem grande sentido. Mas não serás tu também um ser oco? Oco de objectivos? Oco de conhecimentos? Onde está a tua história? Para onde vai o teu futuro? Sentes-te igual, sentiste uma vontade súbita de ser diferente. Mas nunca foste. Para quê aborreceres-te? Para teres complicações? Atrasos? Desprezos? Humilhações? Desafiar o quê, afinal? O que há para desafiar? Mas quem é que se deve desafiar? Onde está o poder? Onde está a reacção? Mas o que é que estão para aí a dizer? Será que o erro é apenas teu? Assume que o erro é só teu. Sê eficiente na atribuição da culpa. O mundo construiu-se pela justaposição de convicções muito correctas, disso não duvides. Não vale a pena tentares encontrar infiltrações nesta sociedade. A sociedade é um buraco negro em si mesma, absorve tudo, não deixa passar nada aos olhos de quem a aceita tal como ela é. Deixa-te ir como tens vindo. A chave para a tua saúde mental está na resignação. É muito mais simples deixar o peso recair sobre ti do que andar à procura de outro burro de carga. Ou a carga vai acabar por apodrecer no chão. Prefere o grão de arroz certo à sapateira desconhecida. Remete os teus sonhos para uma matiné do fim-de-semana e puxa o lustro ao teu soalho enquanto o peso da frustração te vai inclinando em direcção ao chão. O que mais te faz falta? Mas queres ser o quê, uma realeza dos contos de fadas? Queres o quê? Reconhecimento pela tua nulidade? Parabéns pela tua mediocridade? Abraços pela tua rudeza? Tens uma parede de elástico à tua frente que devolve todos os teus pensamentos menos próprios de volta à proveniência. Emites sons que não se ouvem no vácuo quotidiano. Tens uma cenoura à tua frente que cintila de vez em quando e que nunca te passará despercebida. Mas tens essa estranha veleidade de revelar laivos de inconformismo de tempos em tempos. Inconformismo? Para ti é-te suficiente escrever pataquadas? Vestir trapos? Idolatrar mortos? Frequentar comícios de bandeira ao vento? Ser o outro lado do espelho dos mongolóides que atacas no teu quarto? Isso é o teu inconformismo? O que é isso? É melhor que aceites o teu papel.

quarta-feira, abril 18, 2007

Antes Quebrar Que Torcer

O futebol sempre foi pródigo em expressões peculiares. As célebres tiradas de cariz Gabriel-Alvista, do género “remate com o pé mais à mão”, “pontapé de ressaca da meia-lua”, “colocar toda a carne no assador” ou o contemporâneo “autocarro em frente da baliza”.
(Uma nota antes de prosseguir: o Senhor Gabriel Alves não merecia ser escorraçado como um cão velho e doente, depois de tantos e tão bons serviços prestados, de tanta dedicação e de tanta metáfora atirada para o ar no auge do seu delírio apaixonado pelo jogo… para mais, havendo por aí alguns pseudo-comentadores que só dão vontade de colocar a televisão em “mute”.)
A expressão que propunha lançar em cima da mesa para reflexão não é exclusiva do futebol. Mas certamente que já utilizámos sobre determinado jogador, ou treinador, a frase feita – “antes quebrar que torcer”.
Esta descrição, quando aplicada a um jogador de futebol, revela-se cinematográfica. Geralmente, visualizamos na nossa cabeça um jogador de sobrancelhas carregadas, lábios cerrados, um pouco de baba a escorrer pelo canto da boca, peito autoritário e inchado, punhos fechados, resistência física assinalável e, acima de tudo, um dom profícuo para jogar com os pitons levantados, acertando mais nos outros corpos e menos na bola. Um jogador com reconhecidas limitações técnicas, mas com uma enorme disponibilidade para o choque e ávido pelo confronto corpo-a-corpo. Um jogador sem conhecimento do conceito de “fair-play”, mas com elevada probabilidade de cair no goto dos adeptos mais assanhados da sua equipa, tal a fúria destrutiva e o desprezo por qualquer esboço de misericórdia pelo adversário. Enfim, imaginamos Paulinho Santos (na foto, é o tipo de azul e branco; não confundir com Rosicky, o checo que joga à bola e não quebra nem torce).
Paulinho Santos era um jogador que “antes quebrava que torcia”. Literalmente. Mas se torcesse um pescoço aqui ou além também ficava feliz. Todavia, a quebrar é que ele se especializou. As caneleiras nos anos 90 em Portugal eram produtos já de certa forma evoluídos, mas nunca nenhuma conheceu um antídoto anti-Paulinho Santos por detrás da sua massa carbónica. E Paulinho quebrava o que lhe aparecia à frente com um brutal instinto assassino. Depois das caneleiras, partiam-se as próprias pernas adversárias e canas do nariz, rebentavam-se uns cocurutos e rasgavam-se umas camisolas. Sim, porque ao artista do “antes quebrar que torcer” exige-se um reportório mais alargado que o simples carrinho sem timing ou a corriqueira cotovelada marota nas costas do árbitro.
Paulinho Santos gostava de quebrar. Era assim, o miúdo. Mesmo nas comemorações dos golos da sua equipa, Paulinho não condescendia. Domingos Paciência, nos seus tempos áureos, chorava quando marcava um golo. Primeiro, de alegria. Depois, de dor – é que Paulinho Santos felicitava o marcador do golo com sonoras cacetadas de mão aberta na cabeça do referido, no qual era coadjuvado por outros nomes ilustres na arte do festejo em bruto, como Fernando Couto, Secretário, Folha ou João Pinto, assumindo-se como um líder das tendências no balneário. Era ver Domingos a fugir e Paulinho, qual voraz caçador felino, correndo atrás dele como se estivesse a perseguir João Vieira Pinto, a espetar-lhe com um, dois, três, quatro calduços bem aplicados. E toda a gente achava-lhe imensa graça.
Quer dizer, nem tanto assim. É que isto do “antes quebrar que torcer” tem um toque eufemista. Para os adeptos do jogo viril (outra maneira de dizer jogo a descambar para a violência), Paulinho era um rapaz humilde, com espírito de equipa e de vitória, fiel a 100% para com o emblema que defendia com unhas e dentes (e pitons e murros e o que fosse preciso), incapaz de dar um lance como perdido ou de parar de correr durante os 90 minutos. Porém, para muita gente não adepta do FC Porto, Paulinho era apenas “sarrafeiro”, “sanguinário” ou “%&#$%&!”, sem qualquer valor intrínseco enquanto futebolista, estando no campo apenas com o intuito de desbastar pernas, amassar ossos e tingir de sangue os seus dentes. Isso do “quebrar antes que torcer” era apenas para entreter os parvos, conversa fiada impingida pelo “sistema”, porque na realidade o Paulinho devia ser banido antes de entrar em campo, apenas tendo em consideração o espírito de preservação do bem-estar físico dos seus adversários. E, para esses mesmos adeptos, Paulinho será para sempre o exemplo acabado do “trauliteiro”.
Não que Paulinho Santos fosse o único a “quebrar antes que torcer”. Hoje em dia, temos o novo profeta da expressão, o homem que arrastou o conceito do campo para o banco das tácticas: Jaime Pacheco (na foto é o careca). Se Paulinho impunha a sua “stamina” no relvado, Pacheco gesticula de olhos abertos junto à linha. Se Paulinho ia de perna levantada, Pacheco vai de fato de treino a exigir menos “jogo bonito”. Se Paulinho reclamava testa-a-testa com o árbitro no relvado, Pacheco reclama testa-a-testa com o árbitro no túnel de acesso. Irmãos ideológicos, ambos partilham a máxima do “antes quebrar que torcer” na sua plenitude. Se Paulinho ainda jogasse à bola, Pacheco reservar-lhe-ia um lugar cativo no onze, em qualquer lugar da defesa ou meio-campo. E de certeza que os avançados contrários iriam temer esse jogo.
Atentem bem nas personagens que “antes quebram que torcem”. Quase todas são nortenhas. Praticamente todos os utilizadores desta expressão são nortenhos. Em paragens mais meridionais não é usual encontrar muitos casos de “quebrar antes que torcer”. Coincidência? É um tema que fica para meditar.
É por estas e por outras que o futebol é rei – mesmo sem bola dá que falar e que pensar. Imaginem falar de automobilismo sem motor ou de boccia sem cadeira-de-rodas…

segunda-feira, abril 16, 2007

Uma Não-Notícia

Hoje foi um dia particularmente pouco buliçoso no Aeroporto de Faro. Não aconteceu:
- Despenhamento do avião proveniente de Sheffield, com chegada prevista às 15:50, com 85 passageiros bêbados a bordo. Muitos deles envergavam a camisola da selecção inglesa no momento da aterragem, que ocorreu sem problemas. Depreendeu-se, portanto, que fossem ingleses, embora um ou outro pudesse ser galês e estivesse já muito confuso. Não houve nenhum problema mesmo, nem com a cor da pele dos passageiros, já previamente equipados com uma tonalidade tipo camarão com que costumam enfrentar o sol. Pronto, talvez tenha morrido um passarito ou outro despedaçado pelas ventoinhas do aparelho. A companhia aérea em causa, uma transportadora “low-cost” sedeada nas Antilhas Holandesas, já declinou responsabilidades em eventuais danos causados à fauna local. Os passageiros, após derrubarem meia dúzia de canecas, dirigiram-se para apartamentos hoteleiros no eixo Albufeira-Tavira. Ou só Albufeira, talvez. Onde haja música alta e se possa aproveitar uma longa “happy hour”, para ser mais rigoroso;
- Malas extraviadas nos tapetes. Toda a gente não esperou mais de 10 minutos pela sua bagagem, sem se perder alguma, para desespero dos repórteres que precisavam de fazer uma peça sobre os clichés portugueses, subordinada ao tema dos atrasos e esperas. Tudo correu bem. Nem uma queixa. Quer dizer, houve uma situação. Um responsável pela secção das reclamações apresentou queixa por “manifesta falta de preparação para dias sem queixas” a si próprio, levando cerca de três horas a tranquilizar-se a si mesmo – as quais dedicou a jogar freneticamente Copas e Minesweeper. Em ambos não conseguiu averbar uma vitória sequer, tal o nervosismo provocado pela falta de stress. O stress, recorde-se, já antes o levara a vencer um jogo de copas sem apanhar nenhuma copa e derrotando todos os outros três jogadores em simultâneo, bem como a vencer o Minesweeper – Nível Especialista em apenas 147 segundos. Esse responsável acabou por confidenciar “isso só aconteceu uma vez, quando fiz esperar 52 pessoas durante cinco horas”;
- Ameaça de bomba dirigida à torre de controlo. Enquanto se aguardava por uma ameaça terrorista árabe credível, os controladores aéreos passaram o tempo a jogar às cartas e ocasionalmente ao bate-pé. E, de vez em quando, lá ajudaram um avião a aterrar, entre suspiros de tédio. Uma técnica de sistemas informáticos, alegadamente, deu um linguado no seu colega responsável pelo radar. Ele foi o próprio a confirmar a situação, mas ela negou veementemente, dizendo que ele pedira um 6 (um chocho) e não um 9 (um linguado). Pelo meio, uma empregada de limpeza moldava foi “forçada” a participar e chegou mesmo a mostrar as cuecas, para gáudio da equipa que aterrava o avião da Ibéria nesse instante. Foram os próprios indivíduos controladores que colocaram as aspas no verbo “forçar”, preferindo enfatizar a competição renhida do jogo de Uno que disputaram;
- Tráfico de droga detectado nos controlos. Nada. Nem um grama de haxixezito para amostra. Apesar da fé depositada num estranho indivíduo de dentes dourados, calças brancas, óculos escuros e na sua companheira com 50 kg. de bagagem provenientes da Colômbia, nada de especial fugiu às declarações. Pelos vistos, esse homem trazia apenas plantas medicinais e alguma farinha Maizena e o controlo aceitou as justificações, sem esconder a sua desilusão. “Temos um mecanismo que detecta cocaína em todo o lado, desde o interior das meias até às profundezas do estômago. Conseguimos inclusivamente vislumbrar qual foi o almoço do dia anterior, se o indivíduo em questão não tiver um metabolismo muito acelerado. Tanto investimento para nada… os traficantes fugiram de Portugal! Uma vergonha! Já nem somos atractivos para os senhores da droga, o Sócrates que ponha os olhos nisto”. Quando indagado sobre a redução do tráfico de droga nos aeroportos internacionais portugueses, o responsável pela segurança adiantou que “é de facto lamentável que não se criem condições para que os traficantes apareçam. Podiam colocar aqui um agente à paisana à espera nas aterragens com um cartaz «Droga da Colômbia – por aqui». Mas não. Primeiro a administração pública de Lisboa e só depois nós. Temos tudo pronto para os apanhar e eles não aparecem, preferem vir de barco. Assim nunca teremos direito aos nossos 15 minutos de fama”.
Tinha de acontecer algo, contudo; portanto, procedeu-se à detenção de um passageiro em trânsito para Málaga, proveniente de Joanesburgo. O referido indivíduo apresentou, segundo uma fonte policial, “um bafo insuportável a pasta de dentes”, que logo o levou a ser colocado de parte pelas autoridades. Depois, para agravar a situação, o seu cinto de metal apitou nos controlos, levando a equipa de piquete da policia a intervir. Os cães do piquete rosnaram de forma ameaçadora à chegada, adensando as suspeitas sobre o indivíduo, que afirmou ter 2 gatos em casa que costumavam ronronar em torno das suas pernas. Pouco convencida da autenticidade das suas declarações, a polícia exigiu que o indivíduo tirasse o cinto e, para que nada passasse em claro, as calças também. Quando o indivíduo tirou as calças, revelou uma roupa interior de uma marca cujos artigos são usualmente encontrados nas feiras da região. As autoridades pensaram imediatamente tratar-se de um produto contrafeito, embora o indivíduo tenha referido que não esteve em Portugal desde os seus 7 anos, algo que não convenceu as autoridades. Cientes que precisavam de alguma coisa com maior impacto para deter o indivíduo e possuir uma coluna no jornal semanal do Barlavento algarvio, as autoridades passaram em revista o documento de identificação do indivíduo e verificaram que este possuía várias falhas consideradas graves, a saber: inexistência de acentos ortográficos (embora não se aplicassem à situação); fotografia desactualizada (o indivíduo tinha o cabelo uns dois ou três dedos visivelmente mais comprido na foto e foi incapaz de replicar o mesmo sorriso parvo da foto, queixando-se que o cão polícia bafejava muito perto para que pudesse sorrir) e inexistência de detalhes sobre os irmãos (que o indivíduo afirmou ter; mais concretamente, declarou ter 5 irmãos e 3 irmãs, sendo que nenhum nome figurava no passaporte, embora tal aparentemente não fosse necessário). Este, segundo a polícia, foi o motivo chave que deteve o exasperado sul-africano perante os flashes das câmaras e o brilho dos telemóveis.
Indagou-se se seria mesmo um motivo válido para deter um indivíduo. As autoridades não tiveram dúvidas: “Porque não? Ainda agora, ali atrás, deixámos passar um homem com 24 garrafas de whisky, 30 volumes de tabaco e uns quantos animais predadores em vias de extinção, por ter declarado que tinha uns irmãos cá em Portugal e que eram umas prendas para lhes oferecer. Deixámo-lo passar, enternecidos pela honestidade e verificando que, à parte do tigre branco, eram tudo coisas inofensivas e sem maldade alguma. Quando as coisas são explicadas, com fundamento, nada se passa. Agora, se tentam armar-se em espertos… sai-lhes o tiro pela culatra. Vejam bem, 8 irmãos e não dizia nada à gente… é preciso ter lata”.
Foi um dia com motivos jornalísticos interessantes, afinal. Ficou aprazada uma nova visita dos jornalistas lá mais para o Verão, quando as notícias começarem a rarear. As autoridades prometeram fazer o melhor para não desapontar quem lhes pode dar um espaçozito num meio de comunicação social.

domingo, abril 15, 2007

Entulho

Posso bem com as masturbações dos outros. Mas não tolero as minhas masturbações mentais. Por todo o lado, pinceladas amarelas toldam-me o raciocínio. Guardo um orgulho secreto pelo meu entulho. Toneladas de fantasias recauchutadas deixadas ao abandono. Posso bem com as escoriações amorosas que vos são infligidas. Mas não aguento que me remexam no entulho. Não há entulho como o primeiro. As minhas paixões são resíduos facilmente inflamáveis, rastilhos de palha seca e de sangue efervescente incinerando-se em céu aberto. Atingiram-me um nervo que apodrecia por detrás da minha máscara feita de panos sujos e frutos calcinados. Aturo bem as minhocas que proliferam nos vossos corações e que rompem com a vossa carapaça de serapilheira. Mas não suporto que pilhem a escória que tão cuidadosamente armazenei no meu baldio. Recebo a poluição sem explicação. Existe um esgoto que liga directamente as suas bocas aos meus tímpanos. Parece que estou condenado a acomodar os efluentes das vossas almas. Vejo abutres e eles esperam algo de mim. Os espantalhos apertam-me os neurónios. O silêncio ensurdece-me a vista sobre o meu entulho. Filtro o cloro dos meus olhos e entrego-os ao sol. Nem me importa o ultraje da vossa patetice. Não quero saber da vossa felicidade malhada tipo ferro quente. Quero um camião de lixo despejado por cima do meu amor. Quero desfazer-me da réstia de dignidade que me resta em horário nobre. Há que implantar mais gorgulho no meu entulho. Entre farinha e farelo, pretendia ser a mó. Ao invés, esmago-me contra as paredes da conveniência. O status quo espezinha-me em migalhas de subhumanidade. Respiro por um tubo de escape e congrego salitre nos meus olhos. Partículas de fumo químico envolvem o meu horizonte. O filtro já não côa. Coou demais, cedo demais. Agora faz parte do meu entulho. Quero dois pulmões bem sujos para absorver a salubridade dos dejectos que se amontoam em redor. Tenho vontade de me inquinar numa piscina de enxofre aquecido. E depois oferecer-te uma flor. Qualquer uma que me deixe exigir-te algo em contrapartida. Não pensem que o lixo se livra assim, despejando-o no caixote mais perto. A vossa porcaria não me importa, mas a minha nunca passará impune. O meu entulho é um amigo que devo bem tratar e nunca partilhar.

domingo, abril 08, 2007

Dois Frangos Prontos Para Assar

- … e é por isso que te digo: temos muita sorte o dono da churrasqueira ter bigode.
- Tudo isso para dizer que achas que os gajos de bigode são porreiros?
- Não. Nem todos. Estes homens de bigode: com ele comprido, farfalhudo, pêlos brancos aqui e ali; homens maduros de bigode. E olha que não há muitos países onde este tipo de bigode se e
ncontre facilmente; talvez só aqui e na Hungria.
- Já foste à Hungria, por acaso? O que estás para aí a falar?
- Bolas, meu; que falta de cultura geral… já olhaste bem para um húngaro?
- Bem… assim de repente… não estou a ver.
- Pois, eu já desconfiava. Pois olha, estou farto de os ver na televisão… lembras-te do Meszaros? Grande bigode. Certamente que é uma boa pessoa. Olha que os húngaros não têm muito a ver com os outros povos do leste europeu.
- Então?
- Eles até têm uma língua diferente das demais na região; têm parecenças com o finlandês e tudo… dizem que ambas descendem de uma velha tribo bárbara que se subdividiu na sua marcha algures no tempo…
Alguém se aproxima do balcão. Cavaqueira interrompida. Gestos de mão que indicam qualquer coisa. Palavras trocadas. Acenos de cabeça. O dono da churrasqueira volta-se. Chega-se perto do assador. O frango #2 alivia-se.
- Foram as salsichas. Ainda não foi desta.
- Espera, pode ser que o cliente peça mais qualquer coisa.

- Não, só batatas fritas.
- E pão de Mafra.
- Sim, pão de Mafra.

- E tu viste o concurso “Os 100 Maiores Frangos”?
- Então não. Não se falava de outra coisa lá no aviário.
- Velho aviário… Tantas amizades… Que é feito do Tó Pinto?
- Não ficou muito mais tempo a engordar…
- Coitado… bicava milho que era uma coisa parva…
- Mas em quem é que votaste para maior frango de sempre?
- No Ricardo, claro. Um enorme contributo à causa dos frangos. Um nome conhecido em todo o mundo, amigo. Tenho orgulho nele. Ele nunca se vai deixar assar.
- Eu também votei nele. Ainda pensei no Galo de Barcelos…
- Nah. Muito colorido para o meu gosto. Acho que ele já andou a chocar ovos…
- O maricas… o Moretto ficou em primeiro lugar, contudo…
- Concurso da treta…
- Qual é teu clube, afinal?
- O Benfica! Há dúvidas? Qual é o clube das galinhas, afinal?
- Eheh, eu bem me parecia…Que mais poderia ser?
Está perto da hora do almoço. Gente entra. Fala com o dono da churrasqueira. Coça a cabeça. Não tem o que lhe pedem. Cliente indeciso. Olha para os frangos. O miúdo implora-lhe que não. O cliente roda o pescoço. O frango #1 regozija.
- Sai um pedaço de leitão!
- Bem feita. Nunca gostei muito dele. Era um porco. Que encha o estômago daqueles parvos. Vai acabar de uma forma triste.

- Se virmos bem as coisas, também nós estamos destinados a ser merda, mais cedo ou mais tarde.

- Sim, um dia seremos merda, expelida por um intestino qualquer.
- Que seja um bom intestino, ao menos. Um intestino de gente importante, de boa saúde.
- Mas só depois de sermos bolo alimentar.
- E isso só depois de nos assarem.
- E embrulharem-nos em papel celofane.
- Sim, papel celofane.
- Com picante ou sem?
- Não tenho preferência.

- Está fresquinho, não está?
- Estás maluco? É pleno Agosto! Estou a destilar. Se reparares bem, estou em pêlo. E não me queixo.
- Sim, eu também. Mas está um ventinho desagradável, não está?
- Foi o dono que ligou o exaustor. Faz um bocadinho de corrente de ar.
- Isto não faz nada bem à minha pele… já viste como estou pálido?
- Realmente, umas férias faziam-te bem, ires à praia apanhar um sol…

- Ou ir ao solário.
- Ou ir ao solário.
- Tenho ali uma boa oportunidade.
Aparece mais uma pessoa. Olha avidamente para os frangos. Saliva com desejo desbragado. Arregala as sobrancelhas enquanto ordena um franguinho assado para seu próprio deleite estival.

- Olha, lá vou eu.
- Como o tempo voa...
- É assim...
- Boa sorte, rapaz. Depois eu entrego o anel da certificação ao teu filho mais velho.
- Não te esqueças; esse anel já veio do meu bisavô, desde há cinco meses atrás. É muito importante para mim.
- Está descansado.
- Adeus, amigo. Obrigado por tudo.
O frango #2 encaminha-se para o solário. Abraça-se à grelha naquele que será o seu bronzeado para a eternidade.

terça-feira, abril 03, 2007

Na Atmosfera Verde

Tira o casaco. Por favor, não lhe dês lume. Tira-me uma fotografia. Já entretanto passara muito tempo. O charme de um penso higiénico usado. A fraternidade da última fila e do primeiro bocejo. A temperatura está alta para o meu baixo colesterol. Dinheiro e crédito fraudulento. Míopes são os que não querem ver. Estás gorda. Ao menos, disse, não caio aos bocados. Subtil ironia, respondi, mas então onde está a tua cabeça? O comboio apitou, não parou e eu telefonei ao meu colega. Tive uma fase de mau gosto. Arrojara-se ao solo o pugilista. Bochechas vermelhas como sei lá o quê. Depois dá-me pistas. Esbofeteia-te a ti própria, histérica. E a desculpa da música a altos berros não será válida. E o teu deus? Também a ganhar pó no sótão? Se alguém tiver fome é só pedir perdão. Alguns passam… alguns olham… alguns vão… Tenho uma recordação tua. Muito gira. Mas muito merdosa. Parecia que a tua boca tinha sido esburacada com um ferro quente. Sem querer ofender-vos, nós somos transeuntes. A verdade é que não respondi. Dá uma esmola ao cego, mas atira-lhe cuspidelas na bengala. Eu sei, vão realçar o meu pouco escrúpulo. Vão colocar-me uma constituição chinesa à frente para aprender. Diz a essas pessoas que preciso de dormir.