quarta-feira, janeiro 31, 2007

Chamem o Guinness

Somos grandes. Enormes. O nosso apelido podia ser “Grandeza”. Ou “Grandiloquência” – é um substantivo mais bonito e comprido, devidamente proporcional ao nosso ego nacional.
Para quê negar? Portugal nasceu para arrecadar records do Guinness.
Julgo não serem necessárias provas, mas eis alguns exemplos concretos: o maior centro comercial do mundo, a maior ponte do mundo, a maior refeição alguma vez servida em cima da maior ponte do mundo, a maior árvore de Natal do mundo, o maior clube de futebol do mundo (que até já teve a ideia de conglomerar o maior número de Pais Natais do mundo), a maior corrente humana do mundo a acompanhar a sua selecção de futebol, a maior taxa de sinistralidade rodoviária do mundo, e por aí fora.
Mesmo que alguns desses celebérrimos feitos estejam já desactualizados, o nosso orgulho incha sempre que nos referimos a eles, o brilhozinho no olhar confirma o nosso agrado, uma lagrimazinha marota escapa-se-nos quando associamos esse facto à nossa bandeira verde-rubra. Pela seguinte razão: foi lindo sermos record mundial e acreditamos que voltaremos a sê-lo. Desunhar-nos-emos para que tal suceda.
O objectivo deste país, aliás, não é, como muita gente pensa, “a coesão social”, “o progresso”, “Maastricht, Roma, Nice e a convergência para o modelo europeu”. Isso é apenas distracção. O que nos une como portugueses é a perseguição de mais um record. Do Guinness, já que não aceitamos livros de records menores. É por aí o caminho, Sr. Primeiro-Ministro. Vamos esquecer a política de contenção e a corrupção; queremos mais fenómenos no Entroncamento e mais um mega-investimento público para sermos, finalmente, o recordista dos records. Veremos toda a população mobilizada, vá por mim.
O pessoal que compila records do Guinness já sabe quem nós somos. Quando toca o telefone ou quando se recebe um mail por lá, todos já sabem donde provém a comunicação: de Portugal, evidentemente. Aprenderam à força onde nós ficávamos e ao que nos dedicávamos. Benditos sois, records!, que tanto propagam o nosso nome pelos quatro cantos desta Terra redonda, pensamos nós, embevecidos. Estes portugueses são o nosso sustento, se não fossem eles estávamos a observar comboios nas terras altas da Escócia, pensam os Guinness-enses.
O interessante é a quantidade de records mais ou menos oficiosos que grassam por aí à espera de uma paginazinha no livro. Um autêntico filão de oportunidades mediáticas que repousa inanimado, à espera de reconhecimento. Um reservatório de publicidade fácil à espera de saciar a nossa sede de moral instantâneo. Podíamos ter o record da ostentação – sendo um país relativamente pobre, gostamos de crédito fácil, carros novos e telemóveis topo-de-gama; o record da gabarolice – o Benfica vai ganhar o campeonato com 100 pontos de avanço enquanto eu, com o 9º ano, sou o director-financeiro de uma multinacional e ganho 2000 contos por mês; o record da falta de memória – onde um talentoso humorista comunista e benfiquista (e creio que também bom chefe de família) entra na lista dos mais ilustres portugueses, quando há 3 anos era um maluco desconhecido como os outros; o record de jornais desportivos diários, sendo que um deles tem o descaramento de se chamar… “Record”; o record de estratagemas inventados para fugir às responsabilidades; o record das terras com mais records, Entrocamento, Fátima, o sítio do sobreiro que chorava lágrimas de santo, etc.. Vejam lá se chega. Se não chegar, nós inventamos mais uns quantos. O record do desenrascanço é nosso, convém recordar.
Mesmo este blog, aparentemente inofensivo e perdido no espaço cibernauta, almeja um record: mais de 2500 visitas e apenas 5 pessoas o conhecem – isto é, uma média de 500 visitas por pessoa. Extraordinário. Mas podemos ser ainda mais ousados. Se vos disser que eu e o Muntubila fizemos 2000 dessas visitas, no mínimo, isso dá 1000 visitas por cada um de nós. Um número assombroso, um record de comentários e de visitas cruzadas espera-nos de braços abertos. E não é tudo. A própria ausência sabática de Muntubila não é inocente. Estou em posição de assegurar que Muntubila quer quebrar o record do tempo passado sem escrever para o seu blog. Neste momento, o blog do Gato Fedorento vence. Mas esse record, enquanto for deles, não interessa.
O que necessitamos é de um record genuinamente nosso. Mais meu do que teu. Mais português do que ibérico. Para mostrar que só nós é que não conhecemos limites. Para dizer “presente!”. Para podermos esfregar na cara dos outros aquilo que eles não são capazes de fazer. Mesmo que eles apenas achem pitoresco. Mesmo que eles não saibam o que é o Guinness. Mesmo que pareça uma tarefa digna do “Jackass” da MTV. Desconfio que esses gajos da MTV são todos descendentes de portugueses.
Isto tudo apenas para referir que está mais um record na calha: o maior coração do mundo, a exibir na Baixa lisboeta, por alturas da Dia de S. Valentim. Verdadeiro e imaginativo. Grandioso e amoroso. Mais uma ideia exorbitante dum grande português. Chamem o Guinness, melhor, digam ao Guinness para se mudar para cá, gasta menos em viagens.
Aposto que, seguindo esta peculiar ideia, teremos um record por cada evento mais ou menos festivo. Por exemplo, na Páscoa surgirá um coelho gigante algures no país, capaz de defecar ovos de chocolate Kinder para alegria da criançada e dos pais, satisfeitos por poderem usufruir de mais leite e menos cacau. É nestas alturas que me apetece ouvir o hino e colocar a mão direita sobre o coração.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Pai, Eu Meti-me Na Política

Havia algo que, ultimamente, levantava suspeitas a Alcindo: o comportamento do seu filho Guilherme.
- Deixa lá, Alcindo… sabes como são os miúdos, quando eles são novos são muito esquisitos… – confortava Celeste, a sua mulher.
Alcindo também fora jovem, por isso sabia bem o que são as “esquisitices” da juventude. Uma bebedeira tramada de vez em quando, uma ou outra aventura fora-de-horas, um desgosto amoroso aqui e ali, uns pozinhos de excesso sortido quanto baste. O que se passava com Guilherme parecia ultrapassar, contudo, os limites do razoável. Mesmo que Celeste não desconfiasse, a teimosa natureza de Alcindo, o seu olhar clínico sobre o mundo envolvente, deixava Alcindo inquieto na busca de uma explicação.
- Tu viste o estado em que ele chegou ontem a casa, Celeste? – perguntou Alcindo, baixinho, não fossem as paredes terem mais ouvidos do que normalmente têm.
- Não, por acaso não reparei… mas ele acordou muito bem disposto, deu-me dois beijinhos na cara, ofereceu-me uma esferográfica e até quis dançar comigo uma música do Quim Barreiros…
- Pronto! Já sei o que se passa! Agora não tenho dúvidas! – interrompeu, exaltado, Alcindo, para espanto da sua mulher, que parou imediatamente de molhar o biscoito no galão. Alcindo levantou-se da cadeira, coçando o queixo, movimentando-se nervosamente à volta da mesa, perante uma assustada Celeste. Alcindo prometeu novidades nessa noite, uma vez que Guilherme voltasse da Faculdade.
Quando Guilherme finalmente apareceu em casa, os seus pais aguardavam-no com um tom excepcionalmente grave. Guilherme deteve-se um pouco, Celeste deixava transparecer alguma angústia nos olhares que dirigia alternadamente ao seu filho e ao seu marido e Alcindo, tomando a iniciativa, avançou para Guilherme, de dedo apontado.
- Meu filho, nós sabemos que se passa algo de estranho contigo. Por favor, senta-te aqui e conta-nos tudo.
- Mas… mas… do que estão vocês a falar? – gaguejou o surpreendido Guilherme.
- Nós vemos bem, filho – prosseguiu Alcindo – Deves pensar que andamos distraídos, mas nós percebemos bem… Esses comportamentos estranhos não indiciam nada de bom… por isso é melhor contares-nos tudo de uma vez só! – ameaçou Alcindo, com o tom de voz a elevar-se e a cara a ruborescer. Celeste começou a choramingar, deixando Guilherme ainda mais boquiaberto.
- Mas… não estou a perceber? Que tipo de comportamentos? – retorquiu um atarantado Guilherme, encolhendo os ombros, clamando inocência.
- Guilherme, Guilherme – sorriu cinicamente Alcindo – então tu achas que esses hábitos passam despercebidos…
- Mas o que foi? O que fiz? – atrapalhou-se Guilherme, estendendo os braços, com suores frios a invadirem-lhe a testa.
- Eu vou-te dizer: excesso de retórica, muitas promessas, discursos e atitudes populistas, demasiado cuidado da imagem, amigos seleccionados a dedo… diz-nos Guilherme, tu andas metido na política?
- Como?!? Política? Aonde foram buscar essa ideia? – reagiu Guilherme, abismado. Celeste já tinha puxado do lenço, os seus olhos avermelharam-se. Soluçando, requisitou sinceridade ao filho:
- Conta-nos tudo, filho. Somos os teus pais, queremos-te bem como mais ninguém… Precisamos de saber tudo e procurar ajuda… – e aqui começou a chorar a sério.
Alcindo manteve a sobriedade.
- Como é que te deixaste cair nessa miséria humana, Guilherme? Tu és uma pessoa inteligente, nunca te faltou nada cá em casa, sempre te demos toda a atenção deste mundo… Porquê, Guilherme?
- Eu… eu… eu acho que há aqui um equívoco. Não gostaria de prestar mais declarações nesta altura, a quente – tentou evitar Guilherme. Porém, sabia que a sua vida dupla tinha sido fatalmente exposta e Alcindo não estava pelos ajustes. Queria saber tudo.
- Não me venhas com esses discursos evasivos de político, filho! Lá na tua Associação de Estudantes podes dizer o que quiseres, mas aqui em casa tem de haver respeito! Respeito, hã!?! Por isso, o melhor é começares a falar! E já! – ordenou Alcindo, já muito vermelho. Celeste só chorava e começava a assoar-se com frequência. Guilherme apercebeu-se que teria que desembuchar.
- Pronto, é verdade, ando metido na política. Mas só na política local, nada de grandes organizações internacionais – confessou Guilherme, extravasando sinais de arrependimento.
- Eu sabia, eu sabia! – berrou Alcindo, contente pelo seu poder dedutivo, mas assaz decepcionado com a sua descoberta. Enquanto Celeste derramava ranho, baba e lágrimas apoiada no ombro de Alcindo, este inquiriu Guilherme mais um pouco – E então, já dás nos grupos parlamentares, já fazes discursos para congressos?
- Oh, pai – desagradou-se Guilherme – pensas muito mal de mim… ainda estou na política há pouco, por enquanto só ambiciono ser presidente da junta… tive um ou outro plenário onde intervim, nada mais…
- Pois, pois… ao princípio são todos assim… quando dão por eles, já estão em feiras a dar beijinhos às velhotas, querendo ser deputado… Não tens vergonha? No outro dia, chegaste a casa todo sorridente, anunciando que irias dar um novo rumo à juventude do teu bairro e eu vi logo: “Cá para mim, já experimentou a política”. Infelizmente, não me enganei – e, prosseguindo com um tom paternalista, Alcindo quis ir um pouco mais além – Então como começaste com esse fado? Começaste a ler “O Expresso”, foi?
- Sim – anuiu Guilherme, submetido ao vexame – comecei a reparar naquelas colunas de opinião… os textos longos e sem conteúdo fascinaram-me…
- Mas eu pensei que tu, Guilherme, com formação, bem-educado, não te interessasses por isso… Isso não é um modelo, filho…
- Eu gostava daqueles fatos, daquelas gravatas e daqueles carros de alta cilindrada, pai! Quem não gosta? – irrompeu Guilherme, já um pouco emocionado.
- Ninguém gosta, Guilherme! Ouviste? NINGUÉM! São só imagens para convencer os jovens, mas no fim acabam todos esquecidos e desprovidos de cargos, sem cobertura mediática… Essa gente mete NOJO! São NOJENTOS!!! – gritou Alcindo. Celeste esparramou-se em cima do sofá, em pranto:
- Oh Guilherme… porque nos fizeste isto? A nós, que te queremos tão bem…
- Desculpa, mãe… Eu pensava que podia salvar o país… e depois de ler “O Expresso”, comecei a ter ideias para pintar o muro da minha faculdade com alguma coisa anti-América… – admitiu Guilherme.
- Ah, quer dizer que andas a comprar filosofias de esquerda, não é? – prosseguiu Alcindo com o seu exercício de inspector.
- Sim, pai. Eu juro, juro pela minha saúde!, que só tenho ideias de esquerda, não quero saber da democracia cristã para nada! Social-democracia para mim é que não! – sublinhou Guilherme, para que o seu julgamento fosse mais brando.
- Não precisas de jurar, Guilherme, isso é mesmo coisa de político – corrigiu Alcindo. Virando-se para Celeste, Alcindo disse acreditar em Guilherme.
- Eu acho que ele está a dizer a verdade, Celeste… ainda não o vi a vestir-se com fatos caros, nem a fazer força para ir a uma tourada, nem a falar como se fosse de Cascais… Isto de começar-se à esquerda é natural, todos costumam ir por aí… – e, voltando-se para Guilherme, acrescentou – Mas depois de uma fase esquerdista, vêm os tiques de neo-burguês… ou tu não sabes disso, filho?
- Sei, pai… Mas eu não ia deixar que isso acontecesse… Eu ainda só discuti um par de ideias revolucionárias, nada de moções nem nada do género…
- Bah! – indignou-se Alcindo – Balelas! Descambam todos no mesmo! – bradou, antes de continuar – Quando desses por ti, já estavas ao leme de uma associação de empresários, almoçando em restaurantes de luxo e a receber luvas por debaixo da mesa! São todos iguais, essa escumalha de políticos, essa corja de intelectuais! Trastes! – vociferou. Celeste via renascer a sua esperança entre mais um soluço.
- Filho, tu podes deixar a política… Ainda só és meio socialista… Vamos ajudar-te antes que acabes como aqueles desgraçados de direita… Tanta tristeza que por ali vai… – e retomou o choro, após visualizar mentalmente o aspecto de um político neo-liberal. Guilherme deu a conhecer as suas dificuldades:
- Tentem ver o meu lado… se deixar o associativismo político juvenil, perco toda uma multiplicidade de contactos que são fulcrais ao meu desenvolvimento… eu não posso perder a socialização adquirida até aqui, quando estou em franco crescimento cívico…
- NÃO ME VENHAS FALAR CARO!!!! – explodiu Alcindo, furioso, fazendo tanto Celeste como Guilherme recuarem uns centímetros – Pareces um daqueles governantes que se vêem na televisão a fazerem figuras tristes! É isso que tu queres, É ISSO QUE TU QUERES? Ver o nome da nossa família espezinhado na rua, a vergonha nas nossas caras… “Olha, aqueles são os pais do Guilherme, o político que prometeu baixar os impostos… coitados, o Guilherme deu-lhes um grande desgosto”… “Olha, aquele é o Guilherme, o político que autorizou a construção de uma urbanização em plena paisagem protegida… apetece-me bater-lhe com força, se ele não estivesse assim tão bem vestido e se eu não morasse lá… Olhem bem aquela vaidade degradante…”
- Desculpa pai. Eu posso ter ido longe de mais. Desculpa pai. Desculpa mãe. Eu vou deixar de ver o Rogério e a Clorinda – anuiu Guilherme, pausadamente, sensibilizado pelos argumentos do seu progenitor.
- Está a prometer algo, filho? – questionou Celeste, lá do fundo do sofá.
- Não, não! – emendou Guilherme, de olhos bem abertos – Eu vou tentar deixar os meus amigos.
- Assim está melhor, já é um começo – agradou-se Alcindo – E quem são o Rogério e a Clorinda?
- O Rogério é o filho do Presidente da Câmara, está a tirar um mestrado em direito empresarial, não fuma, não bebe, não faz amor e não faz praticamente nada na vida, apesar de andar sempre com grandes carros. Quanto à Clorinda, só sei que se veste bem e que vai muitas vezes ao estrangeiro. Diz que conhece muitos embaixadores e que já jantou com eles várias vezes. Também não fuma nem bebe, mas suspeito que faça amor… na verdade, acho que ela é ninfomaníaca por corpos diplomáticos.
- Ai, as más companhias, filho… – constatou Celeste, de voz embargada, enquanto secava as pálpebras.
- Não digas mais nada! – torpedeou Alcindo – Vamos já descobrir um clínica de reabilitação longe daqui e trazer-te de volta para aquilo que sempre foste: um rapaz humilde, educado, bem-formado e sem vícios ambiciosos! E é mesmo para já! – avisou, pegando na lista telefónica.
Guilherme não tinha escapatória. Abalou para uma terra perdida com vistas para o Marão na procura de uma cura para o seu problema. Aí, teria de perder o hábito de ler textos opinativos, abolir qualquer filiação partidária ou corporativa, evitar contacto visual com crachás, pins, cartazes e outros artefactos propagandísticos, abandonar a tentação por um debate e rejeitar qualquer ideologia extremista, por muito bem intencionada que fosse. Teria igualmente que largar o seu círculo de amigos e nem podia pensar em ter almoços onde se discutissem assuntos considerados de relevo. Obviamente que qualquer tipo de acto levemente corrupto ou qualquer indício de compadrio ou favorecimento por meio de amizades estabelecidas estavam rigorosamente proibidos. Os seus novos companheiros seriam os pastores que apenas conseguiam grunhir três palavras por cada frase e os animais do campo.
Essa clínica de reabilitação para a vida civil tinha muito sucesso – sendo flagrante o caso do ex-autarca de Mogadouro que agora consegue podar videiras com uma mestria assinalável e que adquiriu fobia a gabinetes e reuniões. Guilherme não podia desiludir os pais. Agarrou esta hipótese com as duas mãos. E, daquela vez, não prometeu nada a ninguém, nem sequer beijou nenhuma velhota. Não. Guilherme iria vencer aquele flagelo.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Vidas de Cão

Movemo-nos como cães. O nosso combustível é o instinto. De poste em poste nos espalhamos. Atrás uns dos outros nos guiamos. Dizemos para nós mesmos que iremos ganhar este osso. Exigimos que o nosso corpo pague. A nossa cabeça dispara ordens carregadas de orgulho cego:
- PAGA!
Fazemos por nos esquecer apenas da parte obscura da História. Tentamos recordar apenas a mão amiga que nos alimentou mas o que nos vem à memória são as pesadas correntes ferrugentas que nos aprisionaram. Apercebemo-nos que não nos conseguimos libertar delas sem a ajuda preciosa do tempo. O tempo nunca mais se vai. O tempo nunca mais vem. Damo-nos por nós a dizer alto:
- Houve um tempo em que…
E de tempos em tempos nos entregamos ao sabor do tempo, passeando altivamente pelas estradas da vida. O olho que já esteve no burro está agora no horizonte e o que esteve no cigano está a sonhar, dolente, anestesiado pela calmaria de um dia suave. Viagens despreocupadas sem bagagem de mão. E depois volta o tempo, as nuvens, a incerteza.
Já não sabemos onde enterrámos o nosso sustento. Provavelmente, revelámos o nosso mapa do tesouro a alguém. Devemos ter falado demasiado a quem não devíamos. Quando abrimos os olhos já é de noite, passámos o dia inteiro a perseguir não se soube bem o quê. A cauda que abanou já não abana mais. O que nos fez correr está agora atrás de nós. O que nos interessou antes está desajustado agora. Estamos embrenhados em interrogações.
- Será que dissemos algo que não devíamos?
- Foi alguma coisa que fizemos?
- Teremos ido longe demais?
Quando chega a noite, ninguém quer dar as respostas que só nós podemos achar. Gostávamos de ter um faro apaziguador de instintos, porém só o acicatamos ainda mais. Tudo o que nos interessa cheira a problemas. E o perturbante é que os problemas parecem-nos incrivelmente tentadores. Sentimo-nos atraídos pela diferença, pelo irreal que se nos insinua pela fresta da porta. Para nós, não há monstros, há donzelas puras: cândida e estúpida presunção que não nos larga. Os monstros só aparecem muito depois. Sabemos que sim, embora julguemos que não. Em jeito de auto-justificação mental nos iludimos sem esperança, continuadamente:
- Desta vez é que vai ser.
Não foi. Olhem bem, os nossos corpos, os nossos focinhos – isto é tudo. Não devia ser nada ou muito pouco. Mas é tudo. Maldita consciência, aparece-nos quando menos devia e agora, que devia impor-se, recolhe-se lá atrás, no fundo, ao canto, incógnita, serva do instinto que nos mói. Não pensamos em nada que não seja imediato. O desespero, quando acontece, é aterrador. Cerram-se os dentes e lá vamos nós, à força.
- A reconciliação é impossível. Chegámos ao ponto de ruptura.
Venham-nos dizer que é fácil. Digam-nos o quanto nos invejam. Vós nem sabeis. Vós pensais que viver como nós é sentir o deleite supremo da despreocupação, assumir a irresponsabilidade como o último recurso para quem não tem capacidade para mais do que isso. Relativizam-nos e olham-nos de soslaio, tratam-nos como assunto menor, qual iluminação deste mundo. Ainda bem que vós vos separastes do instinto, criaturas privilegiadas.
- Ai quem me dera… é só fazer assim e já está.

A Âncora

(Quadro de Roy Liechtenstein)


Eu consigo dar-te o que tu queres. Não precisas de te preocupar mais. Tens aqui o que andaste à procura. E porque continuas a deixar-me num plano secundário, se eu tenho comigo a segurança da certeza, a certeza da satisfação?
A ti não te chega ires comigo ao espaço. Nós já corremos os campos da lua com os nossos corpos impregnados de libertinagem, tocámos de raspão nos raios de sol sem nos queimarmos, absorvemos nos nossos cérebros a leveza de gases raros que nos propulsionaram para fora das nossas órbitas mentais. Dançámos em tua honra em cima das estrelas, acima de todo o mundo. Juntos. Trocando saliva e suor. Abri-me em toda a plenitude e envolvi-me seriamente nas brincadeiras que desenvolvi em especial para ti. Todo eu especializei-me em ser o teu posto certo de atendimento. Cobri-te com os meus acetinados cobertores e tentei proteger-te dos ventos frios enregeladores da tua alma. Suavizei-te dos calores tépidos proporcionados por aquelas fontes de calor dúbias e doentias. Cada dia era uma festa de ano novo que organizava meticulosamente em tua honra.
Defini-te como objectivo. Quis-te tanto só para mim e tu para mais ninguém. Assim que te percebi à deriva, atirei-me a ti feito âncora. Desejei afundar-me contigo num poço de prazer e sentir os nossos pulmões a rebentar de êxtase. Agarrar-me a ti tipo lapa. Prender-te de vez a mim. Disse-te, quando tocámos os limites do bom-senso, “Agora vou querer ainda mais do tu queres” e tu abriste a boca em deslumbramento. Fomos de costa à costa de uma assentada e pensei para mim que tu não podias fugir. Dei-te tudo o que se pode pensar, tudo o que era possível e impossibilitei qualquer hipótese de insatisfação. Fortaleci a minha disponibilidade dando mais um nó, crivando mais um prego, colhendo mais um fruto.
Mas não te saiu um agradecimento sincero. Não consegui arranjar água suficientemente pura para limpar o teu sorriso amarelo. Permanecem perdidas na tua cabeça as chaves do teu cofre sentimental inexorável. E que mais te posso fazer? Se não te chega o que faço por ti? Eu abandonei os meus objectivos próprios só para te ter aqui. E tu, aí, sem vontade de seres feliz, sem vontade de alcançar os teus sonhos, sempre com o irritante hábito de menosprezar os meus esforços e de ignorar a tranquilidade que te entrego de mão beijada. Não tens presente o bom que tens, o bem onde estás.
Eu consigo dar-te tudo o que tu queres. Mas tu não precisas. Tu só queres fazer de mim uma etapa e quero-te como meta. Não te interessa o paraíso, interessa-te questionar como se chega lá, entreter-te com os motivos ao longo do percurso e estudar alternativas inúteis. E não consegues perceber que tenho comigo a senha exclusiva que te leva lá. Faço-te ver todos os dias que não há nada melhor. Explico-te todas as horas que não pode haver nada melhor. E como retribuição recebo a tua apatia. É como se estivesse a entregar-me para o vazio. Como se estivesse a mergulhar de cabeça para um mar profundo e sem água. Como se fizesse da tua indiferença a força que me move, mesmo que saiba que me movo por um projecto sem retorno.
O problema é que tu queres outro alguém que te leve, rotativamente, por estas estradas de prazer. Eu, mesmo sendo o melhor, não te chego. Torno-me na rotina. Mas continuo a insistir em dar-te tudo o que te faz falta. Fazendo das minhas privações fartura para te cortar desse espaço lúgubre onde te deixas perder. A minha fé em ti é grande demais, não tenho mais nada a perder a não seres tu. Eu não me interesso mais.