quinta-feira, junho 28, 2007

Erro de Casting

Fala-se muito em “erros de casting”. É frequente, hoje em dia, aplicar-se esta expressão aos políticos. X é erro de casting do Governo porque não percebe nada da rotatividade das culturas e está designado como Ministro da Agricultura, Y é um erro de casting do partido Alfa, pois deve fazer oposição e a sua especialidade é a prova de vinhos, etc.. Normalmente, quem aplica este chavão aos políticos é uma mole insolente de críticos (ou outros políticos), doutos conhecedores de todas e quaisquer matérias, as quais dominam de tal forma que se torna simplesmente embaraçoso assistir o ente criticado a tentar fazer alguma coisa. Se estivessem lá eles, cremos nós, as coisas seriam bem diferentes, julgando pelo rubor das suas palavras de desaprovação. Bem, a meu ver, muito dessa massa crítica é, em si, um exemplo acabado de erros de casting: eles são tão, mas tão bons, que estão claramente a mais na tribuna a mandar bitaites – deviam experimentar fazer aquilo que criticam, saltar para o outro lado da barricada para o próprio bem nacional. Mas o bem nacional é, para os críticos, um conceito muito difuso, que facilmente se confunde com o seu bem-estar pessoal e com a preservação da sua posição inatacável enquanto críticos. O crítico quer ridicularizar e fazer piadas com as pessoas que assumem responsabilidades e, não raras vezes, acabam por ser eles mesmos a piada. Os críticos fazem-me rir muito mais do que quem está em posição de actuar e decidir. Mas se calhar sou só eu que me divirto desta forma, talvez por possuir um sentido de humor muito distorcido e pouco convencional.
E também porque estou à vontade, mesmo reconhecendo que caio algumas vezes na tentação da crítica. Diariamente, sinto que sou o exemplo acabado do não-erro de casting. Falo do Football Manager, obviamente. Em 10 épocas ao serviço do mesmo clube, ganhei tudo o que havia para ganhar. Coloquei o clube com uma saúde financeira invejável. Possuo no plantel o melhor guarda-redes mundial. Praticamente todo o plantel é seleccionável para as respectivas equipas do seu país. Os adeptos e a direcção adoram-me. Colecciono prémios atrás de prémios. Loto o estádio quando jogo em casa. É um sucesso total, os adversários têm vergonha. Sou a pessoa certa para aquele cargo. Não há dúvidas. Dou-me ao luxo de exigir a vitória em todos os jogos, de pedir mais aos jogadores durante o intervalo seja qual for o resultado, de castigar alguma voz dissonante no seio da equipa e de punir a mesma com repreensões formais aquando dum resultado menos positivo. Isto sim, foi um casting perfeito.
É claro que tudo isto é ficção. Na realidade, a expressão “erro de casting” provém do ambiente cinematográfico/ televisivo. “Casting” é um termo do meio do espectáculo. O “erro de casting” era originalmente exclusivo dos críticos de cinema, mas a sua fama perpassou para os restantes críticos doutras áreas, sedentos de mais “catch-phrases” com as quais pretendiam dilacerar os seus ódios de estimação. No cinema, houve um filme que me marcou negativamente. E aqui vou ser um crítico, mais uma vez, penitenciando-me por permitir-me este prazer de dizer mal por dizer mal. Esse filme era o “Street Fighter” e o actor (?) o Van Damme, Jean-Claude de seu nome. Interpretou o papel de Guile, oficial do exército americano, e foi duma atrocidade representativa inigualável. Das percepções recolhidas nas máquinas do jogo que originou o filme, eu tinha Guile como um tipo rebelde, um gajo armado em bom que penteava a poupa loura com insolência após mais uma vitória, que bebia uma lata de Budweiser como se fosse Isostar, que convidava os top-guns musculados do seu pelotão e as respectivas namoradas para assistir aos seus combates no porta-aviões e que não tinha muita disciplina militar, substituindo a mesma por um desejo imparável de dar uns pontapés acrobáticos nos queixos dos adversários, fossem eles a Chun-Li , o Zangief ou o Blanka. Van Damme não foi nada disso. Rosto imutável, cabelo rapado sem possibilidade de pentear, fiel ao exército, menos elástico e mais corpulento que o Guile da máquina. O filme foi um “flop”, e creio que sê-lo-ia mesmo com o Orson Welles a fazer de Guile, tal a debilidade do “argumento”, mas da fama Van Damme não se livrou: é o maior canastrão do cinema, o exemplo acabado dum erro de casting, pior que Chuck Norris, Steven Seagal, Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger na fase pré-política. Se se enredou nas teias da cocaína pelo efeito das críticas devastadoras (e razoáveis, neste caso), não sei. Mas que é a fotografia que acompanha a definição de “erro de casting” no meu dicionário, lá isso é.
Regressando ao campo político, eu até concedo, nesta época de eleições intercalares em Lisboa, que possam existir alguns erros de casting. Afinal, em tanto candidato, algum há-de ser mau. Mas não me imiscuo na análise política destas eleições; os críticos especialistas que falem disso. Eu quero é dar um exemplo dum erro de casting na forma de comunicação. Falo do cartaz da Helena Roseta. Não estão em causa, repito, as qualidades humanas e profissionais da senhora. Está em causa o péssimo casting da equipa de marketing que a suporta, não sei se por questões monetárias ou apenas por mau gosto. Um cartaz daqueles é um suicídio político. O cartaz não tem praticamente mensagem nenhuma: “Movimentos dos cidadãos”, “Helena Roseta a presidente”, salvo erro, é tudo o que se lê. O pior são as cores e a pose da Helena no cartaz. Quanto às cores: branco em cerca de 25% do cartaz e um verde desenxabido nos outros 75%. Aquele verde lembra vómito de bebé doente e o cartaz abusa desse verde enfermo, é uma cor muito feia que não é suficientemente preenchida com nada, nem com letras nem com a cara da Helena aumentada – a cara não fica muito ao centro nem bem à direita do cartaz e há um grande espaço morto que fica para ali, abandonado e inútil. Bem, mas se calhar não convinha aumentar a cara da Helena: é que ela faz um esforço tão grande, mas tão grande, para sorrir no cartaz, que me fica a convicção que a fotografia lhe foi tirada num acesso diabólico de diarreia da pobre Helena, tal a força e a coragem empregue por Helena para arrancar um sorriso das suas próprias entranhas. Mais a sério: não me lembro de alguma vez ter visto Helena Roseta a rir-se, por que raio ela tenta fingir para o cartaz? Mais valia ter sido natural e colocar a sua expressão normal de feminista inquebrantável de papos descaídos e carantonha feia dirigida a quem ataca o corpo da mulher, os espaços verdes, a pluralidade de opiniões, os carros poluentes e toda essa amálgama de coisas profundamente inquietantes que perturbam o espírito militante de Helena Roseta. Decidiu-se por um sorriso taxativamente forçado e escolheu aquela fotografia por não querer perder mais tempo com ensaios de fotogenia; tudo bem, não lhe auguro muito futuro autárquico só por causa disto.
Largando o lodo da política, que ainda hoje tomei banho e não quero estragar a limpeza deste momento inolvidavelmente bem-cheiroso, todos reconhecemos que já fomos ou cometemos erros de casting, nem que pontualmente. Reuniões para as quais somos convocados sem perceber porquê e que presenciamos durante intermináveis horas, sem sequer abrir a boca e sem nunca captar qual o assunto discutido; festas de aniversário e casamentos para que nos convidam e nos quais não conhecemos ninguém, à excepção daquela pessoa que conhece toda a gente e que estará demasiado ocupada para nos dar atenção, forçando-nos a comunicar com desconhecidos ou a passar o tempo junto aos comes e bebes; funerais de parentes desconhecidos dos quais recebemos a notícia e nos quais não conseguimos verter uma lágrima que seja, apesar do esforço das trincadelas na língua; sermos atraídos, no auge da toxicidade nocturna, para sessões de sexo com lésbicas deliciosas que afinal não querem saber de nós para nada; uma namorada que estupidamente tivemos, sem friamente percebermos o desespero que nos levou nessa altura a preferi-la e a qual fingimos desconhecer quando voltamos a vê-la na rua, ainda mais gorda, desdentada e parva do que quando andámos com ela; enfim, uma multiplicidade de situações desconfortáveis que vão acontecendo, deixando-nos a ideia que ninguém está livre de ser considerado um “erro de casting” ou de incorrer em sucessivos “erros de casting” quando menos se espera. O espectáculo continua, de qualquer forma, e o dinheiro do bilhete já foi gasto.

quarta-feira, junho 27, 2007

A Promessa do Defeso

A nova promessa do futebol mundial aterrou em Portugal neste defeso. Aparenta um ar perdido, embora se note a desinibição própria da juventude. Quiçá equivocado pelos anúncios solarengos e fabulosos do Allgarve, embrenhado nas maquinações do seu empresário contra outro empresário rival, iludido pelas promessas dum futebol competitivo e escorreito, atraiçoado pelo desejo do sucesso fácil e pela sua falta de informação associada à sua irreverência juvenil, a verdade é que ele está cá. Este médio ofensivo, que também pode jogar na frente de ataque num esquema 4-3-3, ou no eixo da defesa, devido à sua boa capacidade de antecipação e forte jogo aéreo, tendo mesmo iniciado a sua carreira como guarda-redes pela sua enorme agilidade, provém dum clube obscuro da Roménia, ou da Bulgária, ou mesmo da Ucrânia, não se sabe bem ao certo, e foi votado no seu país como “a mais jovem promessa do futebol europeu e asiático da segunda semana de Abril de 2007, mais concretamente entre os 30 e os 45 minutos iniciais da partida contra o Dínamo de Zakarpattia” pelos adeptos, como “a mais jovem promessa a promessa” pelos jornalistas e como “um puto cheio de estilo, com enorme gosto para óculos Gucci e madeixas louras, e que, por acaso, também sabe fazer passes que rasgam a 40 metros”, pelos treinadores. O seu nome: Radöi Guzmailyev, 1,80 metros e 76 kg. de talento em bruto. Um facto assombroso: Radöi já domina o português como poucos cidadãos dos PALOPs dominam e chega mesmo a expressar-se melhor que muitos indígenas lusos. “Cresci a admirar o vosso país, o vosso clima e o vosso campeonato, tal como o meu empresário me instruiu para dizer à chegada”, revelou, desconcertante. Os jornalistas acercaram-se, curiosos perante a nova atracção.
- Radöi, como se define? Quais são as suas ambições?
- Eu sou um jogador fisicamente atraente, deixo sempre passar três dias para fazer a barba, já namorei com várias modelos do leste europeu e participei num clip musical da maior sensação pop da Moldávia. Tenho boa presença nas passerelles e já sei que há uma discoteca com esse nome por cá. Gosto de carros desportivos de alta cilindrada e também de jogar nas costas da linha avançada. Daqui a alguns anos, imagino-me a fazer anúncios para a Pepsi e a vender mais posters que o Cristiano Ronaldo, que, no fundo, imita descaradamente o meu estilo. Se surgir a oportunidade, também gostava de jogar na liga inglesa, a imprensa de lá pode dar-me a expressão mediática que os jornaizecos daqui não dão. Encaro Portugal como um trampolim. Ou umas meras molas nas chuteiras. Ou apenas uma daquelas bolas saltitantes. O que for menos ofensivo para o vosso orgulho.
- Radöi, é verdade que pode preencher cerca de 6 posições distintas no campo?
- Jogo onde, quando e como o treinador quiser. Sinto-me mais à vontade a jogar Pro-Evolution no hotel dos estágios com o joystick que adquiri numa feira em Timisoara. Mas também jogo a sério no relvado.
- Radöi, qual é o seu pé preferido?
- Qualquer jovem pé feminino entre o tamanho 36 e 38 comporta em si uma carga erótica tremenda. Dos que me ocorrem assim de repente, talvez o da Soraia Chaves, porque é provavelmente a única parte do seu corpo que ainda encerra mistérios para mim. A câmara fixa muito o peito e raramente desce abaixo dos joelhos. Eu sou ambidextro, mas dou-me melhor com o pé esquerdo. Convém esclarecer que tenho apenas 4 dedos no pé direito, antes que critiquem a minha técnica de remate.
- Radöi, considera que vai haver um bom entendimento entre si e o Tininho Carioca, o indiscutível matador do plantel?
- Não, acho-o francamente estúpido. Não devemos falar, pois eu interesso-me pelos grandes pensadores económicos e ele interessa-se por picanha. Não temos, definitivamente, egos convergentes. Ainda por cima, ele cheira mal, sua muito. Depois de o ver a apanhar um sabonete com as nádegas num vídeo caseiro, mudei de opinião. Mas a opinião continua a ser negativa. Eu jogo com quem tiver de ser, estou aqui para mostrar os meus atributos físicos às adolescentes lusitanas e granjear apoios extra-futebol. E também para mostrar o meu valor futebolístico, porque não?
- Radöi, sente-se mais à vontade num esquema 4-4-2 losango, 4-4-3, ou na anarquia táctica total?
- O 4-4-3 permite-me uma liberdade que não consigo obter jogando na anarquia total. Tive um treinador que pretendeu inculcar na nossa equipa o gosto de jogar anarquicamente, mas não gostei. Havia muito vidro partido no balneário, muito confronto corporal, muitos cocktails molotov junto às faixas laterais e isso magoou-me. Já o 4-4-2 losango possibilita-me brincar aos polígonos. Pessoalmente, gosto mais do 4-2-2-2 hexágono. Parece-me mais evoluído. Mas é só impressão minha.
- Radöi, o que mais lhe impressiona no seu novo clube?
- Cheguei agora, conheço pouco do clube. Sei que é o maior clube do mundo, que luta e ganha todas as provas onde está inserido, que o presidente é um ex-autarca que gosta de sacos azuis e recibos verdes, que a massa associativa tem uma falange de extrema-direita altamente violenta que intimida os atletas quando as coisas correm mal, que o balneário é um pré-fabricado provisório há 3 anos e que o nosso lateral-direito é maçónico e Atleta de Cristo. Espero coisas boas deste clube e, na medida do possível, contribuirei para servir de intermediário na compra de outros jogadores do meu país. Se a comissão for agradável para mim, como é evidente. Também espero revelar a todos os aficionados aquilo que julgo ser uma conspiração monárquica para depor o regime republicano deste país, algo que está a ser orquestrado pelo roupeiro e pelo treinador de guarda-redes desde os treinos do final da temporada transacta. Mas enquanto tudo não passar de um rumor, não vou especular publicamente sobre este assunto.
- Radöi, qual vai ser o número que irá envergar na camisola? Parece que o nº 10 está disponível…
- Gosto do nº 69 (risos). Isto tem conotações sexuais, como é óbvio. Eu sou uma pessoa muito sexual. Adoro mulheres, elas adoram-me, há aqui uma reciprocidade que quero reforçar nesta passagem por Portugal. Para mim, até pode ser o nº 10, o mais importante é que a cor do equipamento não seja em tons amarelos, acho que é uma cor que não me favorece e me torna pálido. Seria negativo para a minha imagem. Incluí uma cláusula no contrato especificamente dizendo: “Não jogo de amarelo”. Posso rescindir com justa causa por incumprimento. Portanto, são os dirigentes que têm de decidir: se é para o mau gosto estético, não contem comigo.
- Radöi, já escolheu onde vai morar?
- Para já, não tenho muita escolha: vai ser na Pensão Marialva, que fica apenas a 3 minutos do estádio. Se tudo correr bem, vou conseguir chegar aos treinos com apenas 40 minutos de atraso, visto que sou muito solicitado para dar autógrafos e demoro-me muito nos lavabos, tanto a tratar da higiene como da imagem, que não pode ser minimamente descuidada. Se não houver ninguém a quem dar autógrafos, eu arranjo. Não tenho dificuldades em abordar desconhecidos na rua nem a extorquir-lhes qualquer coisa, em Plovdiv aperfeiçoei essa técnica.
- Radöi, como falou em pensadores económicos, gostava que nos desse a sua opinião sobre a teoria de Mundell sobre…
- Por favor, hoje só falo de futebol. Se me perguntassem algo sobre tácticas e gestos técnicos, tudo bem, mas a economia não está dentro desse contexto. Obrigado.

segunda-feira, junho 25, 2007

A Vida É Dura

Soa o silvo das 10:30. É hora do intervalo. Armando Castro e Coutinho (ACC) dá um toque no seu lenço ao pescoço enquanto se encaminha para a sala de estar, para junto das pesadas estantes pejadas de calhamaços e edições volumosas dos grandes épicos clássicos. Senta-se na poltrona junto à janela e acende o seu cachimbo, expelindo uma primeira baforada vigorosa e farta. Olha para o exterior, repara nos tons cinzentos, na pose suja das paredes industriais. À 3ª baforada no cachimbo, surge na sala o seu colega Francisco Aires Braancamp (FAB). ACC congratula-se.
- Oh-oh!, Sr. Engenheiro, bons olhos o vejam… folgo muito por vê-lo aqui! – cumprimenta ACC, dobrando-se na direcção de FAB com um sorriso entrecortado pelo fumo do cachimbo.
- Como vai, Sr. Doutor… então como foi o resto do seu fim-de-semana? Estava a adorar o cocktail do Arquitecto Ruy Mello do Amaral e as animadas conversas que mantinha com a embaixadora do Brasil, mas saí antes do tempo: tinha de receber um grande amigo da Sorbonne, que chegava ao Aeroporto provindo duma conferência em Boston, e não pude demorar-me…
- Ah, foi óptimo, aproveitei para colocar a leitura em dia… ouvi o opus 17 do Henryk Wieniawski em violino num passeio que fiz pelo jardim, aproveitei para passear os meus três Labradores pelo solzinho tépido da tardinha… muito reconfortante, aquele violino e aquela atmosfera morna. O resto do cocktail foi soberbo, muita classe e elegância, tanto no ambiente intelectual como nas decorações avant-garde… o Arquitecto Ruy Mello do Amaral sabe escolher o pessoal certo para o catering e para a animação… um sucesso trepidante. Foi verdadeiramente uma pena o Doutor não ter continuado.
- Com efeito… mas amigos são amigos, não podemos deixá-los à espera, pois não? – FAB senta-se na outra poltrona, sorri para ACC, que se agarrava ao cachimbo, sorrindo igualmente em resposta a FAB. Pega no Financial Times que repousava na mesinha de vidro contígua e prossegue a conversa – Então, Sr. Doutor, como tem sido esta manhã?
- Olhe, tenho composto umas paletes com os caixotes de banha, já arrumei os baldes que o Sr. Silva pediu no contentor…
- Ai sim? Veja bem que o Doutor Bernardo Holstenstein de Vasconcelos açambarcou o banquinho da secção, fiquei apenas com a possibilidade de fechar as caixas e aplicar os rótulos ao lote 4 sentado na escada de madeira! Mas já vamos a meio.
- O lote 4 é para exportação não é?
- Sim, é um grande lote para sair para as Berlengas. Estou a trabalhar com um excelente ritmo. Dou-me bem com a pistola dos rótulos, aquilo tem sido uma limpeza!
- Eu não posso dizer o mesmo – lamenta ACC – tenho uma dor nas costas que nem posso… custa-me muito arrumar as paletes, devia ser aquele jovem talentoso a fazer isso… eu ficava na rotulagem ou a conduzir o porta-paletes, mas o Sr. Silva acha que não… você sabe quem é o jovem a que me refiro, não sabe, Sr. Engenheiro?
- Quem? O Diogo Lucena de Medeiros, o filho daquele grande industrial açoriano? O que introduziu novos conceitos de organização industrial aqui na empresa e que ficou na máquina do enchimento da lixívia?
- Não, Sr. Engenheiro, está a fazer confusão com o Afonso Sassetti Barganha, que está agora com as embalagens de cartão para os lotes de azeite. Falava era do Dr. Duarte Abrantes Coimbra, aquele jovem muito dinâmico que gosta de jogar golfe e cultiva um gosto impressionante pelos vinhos mediterrânicos envelhecidos em casca de carvalho… o que tem uma quinta no Alto Douro e que traz sempre o seu Bentley azul-safira para a empresa…
- Ah!, já sei, o jovem que está ligado à reparação das infiltrações e que esporadicamente efectua a reposição dos expositores, sei quem é… anda sempre com uma chave inglesa num bolso e um monóculo noutro, sei bem quem é…
- Está a ver, não está? Ele é muito proactivo, já o vi a consertar, sem pestanejar, a canalização da fossa do nosso WC, que estava a corromper-se devido à baixa qualidade das tubagens e ao elevado grau de acidez das nossas defecações, que estão bastante contaminadas pela constante exposição a este ambiente tóxico da fábrica … no meio daquelas ratazanas e daquele fedor, pois tratava-se de uma mistura de urina e fezes de operários semi-especializados marinada durante o fim-de-semana, o Dr. Duarte Abrantes Coimbra revelou uma serenidade e uma agilidade impressionantes… não se deteve perante as adversidades e nem luvas utilizou! Era o jovem indicado para arcar com as paletes… mas o Sr. Silva acha que não…
- O Sr. Silva o quê, car****? – brada o próprio Sr, Silva na ombreira da porta, apanhando desprevenidos ACC e FAB, que, assustados e envergonhados, olham para chão em submissão.
O Sr. Silva é o chefe da fábrica. Homem duro, de modos rudes, impõe respeito pela sisudez das suas expressões e pela elevação da sua voz. Possui a 4ª classe incompleta, admira os sucessivos presidentes do Benfica e costuma compor a plateia dos reality-shows da TVI e do Preço Certo em Euros da RTP. Vê-se frequentemente acompanhado por um garrafão de vinho de mesa da cooperativa local e enverga uma camisa cheia de nódoas com os botões desapertados, que usa durante semanas a fio e apenas substitui por outra com características idênticas. Possui uma aura de autoridade que fascina os operários, de tal forma que estes fazem os impossíveis para agradá-lo.
- Nada, nada, Sr. Silva. Estávamos apenas a elogiar o seu conhecimento das questões práticas inerentes ao nosso tecido empresarial contemporâneo … - desculpa-se ACC.
- Sim, e a relacionar o seu instinto negocial com o dos grandes empreendedores clássicos da revolução industrial britânica do século XIX… - coadjuva FAB. O Sr. Silva não se mostra impressionado:
- Cá para mim, estão é com conversas da tanga e dizer mal do patrão! Eu acabava mas era com esta me*** dos intervais…
- Permita-me corrigi-lo, Sr. Silva: o plural de “intervalo” é “intervalos” e não “intervais”, como incorrectamente mencionou… - indica ACC, baixinho e a medo.
- Como é que é, car****? O que é que estás praí a dizer? Que me*** é essa? – interroga o Sr. Silva, com sobrancelhas carregadas e olhar cortante dirigido a ACC.

- É… é como disse o meu colega, Sr. Silva. Está no novo dicionário para a Língua Portuguesa para 2008, compilado pelas mais eminentes personalidades linguísticas do espectro português… - ajuda FAB, percebendo que ACC estava nervoso e inquieto, tremendo a mão que segurava o cachimbo.
- Que se f*** o plural de intervalo, voceses sabem o que quero dizer: voceses não querem é fazer nenhum, é o que é! Andam praí a falar de letras, museus e monumentos, estão sempre prontos prós intervais, mas quando toca a trabalhar… népia! Tenho de andar sempre em cima de vocês pra que mexam esses cus gordos e preguiçosos, senão… era o bom e o bonito! Direitos laborais de me***, voceses haviam de andar cá quando eu comecei em 1972, ficavam logo sem manias! Dantes era tudo munto mais fo****, ah pois era! Agora está feito prós meninos e estes inda se queixam!
- Tem toda a razão Sr. Silva. Pedimos desculpa – admite, cabisbaixo, ACC. ACC apaga o cachimbo e FAB pousa o Financial TImes de volta em cima da mesa, corroborando ACC:
- Nós não queremos perder o nosso trabalho, Sr. Silva… mas, como compreende, também mantemos uma vida própria para além deste trabalho operário, Sr. Silva… também gostamos de literatura erudita, de exposições artísticas arrojadas e de ensaios sobre ciência política… coisas normais para meros assalariados…
- Normal era voceses trabalharem mais e falarem menos! Eu também gosto de levar a minha mulher com os putos à feira ao Domingo e ver o Glorioso a jogar, mas essa me*** é toda fora do expediente, percebestes, ó Miguel?
- Francisco, Sr. Silva. Francisco Aires Braancamp.
- Quê?
- É o meu nome. O Miguel era o meu irmão.
- Ah, pois é, o Miguel foi aquele miúdo que ficou preso dentro do tanque dos vernizes… voceses são parecidos… - e o Sr. Silva, após coçar o escroto que pendia flácido pelo buraco das calças, revela – Ainda me dás mais razões pra andar sempre em cima de voceses: já dei trabalho ao teu irmão e, depois do teu pai me fazer a cabeça como o car**** pra te dar uma oportunidade a ti também e de te ter dado essa oportunidade, ainda reclamas! Não tenho culpa que o teu irmão não largasse o livro do Vasco Pulido Valente antes de começar a limpar o tanque e que se tenha afogado quando despejaram o diluente, tivesse abrido os olhos e não andasse distraído!!! Qué que se passa, andares numa fábrica a pôr rótulos nas embalagens é mau, não? Querias começar logo por cima, pelos empilhadores, queres ver? Isto aqui é assim: lá por seres um Aires Braancamp e eu me dar bem com o teu pai, que é um empresário porreiro e orienta uns bons caracóis, embora fale muito sobre relações internacionais, neoliberalismo e outras coisas sem jeito, não quer dizer que venhas práqui pra andares com as mãos nos bolsos! Isto aqui é pra mexer, ouvistes, ó Francisco? E a me*** é também pra ti, ó Armando! Portanto, pianinho, ou há me*** a sério prós vossos lados!
- Desculpe, Sr. Silva. Eu nunca mais cito Baudelaire nem Schopenhauer, prometo – anui ACC.
- Perdoe-me a insubordinação, Sr. Silva. O senhor meu pai e V. Exa. não merecem tal desconsideração da minha parte. Doravante, preservarei os meus interesses filantrópicos e relacionais fora do expediente laboral, Sr. Silva. É um compromisso que agora ratifico formalmente perante vós, com o selo da minha palavra de honra – cede FCC. O Sr. Silva condescende um pouco:
- Tá bem, tá bem, pode ser, desde que vocês parem com essas me**** que só fazem confusão à cabeça. Isto do intervalo é só 15 minutos, aproveitem mas é o tempo pra pensar como é que vamos tratar do lixo que a máquina dos hambúrgueres fez. Se a inspecção vem aí estamos fod****, quero livrar-me rápido daquela me***, nem que tenha que mandar os óleos e as carcaças das ovelhas todas pró rio. Já pensastes nisso, ó Francisco?
- Sr. Silva, eu estou com o lote 4 nesta altura…
- Lote 4, hã? Deixa essa me*** pra depois, vais agora pegar nos bidões e começar a acartar os ossos dos bichos.
- Mas, Sr. Silva, o lote tem de finalizar hoje para… - o Sr. Silva interrompe FAB, furibundo e vermelho:
- Olha lá, ó car****! Mas tenho que te fazer um desenho, atrasado mental?!? MAS QUEM É QUE MANDA NESTA ME***, CAR****?!?
- É o Sr. Silva, Sr. Silva – respondem o Doutor e o Engenheiro, encurvados, quase ganindo.
- MAIS ALTO, CAR****!!!
- É O SR. SILVA, SR. SILVA! - repetem ambos, muito encavacados.
- SOU MESMO EU, CAR****!!! QUE NÃO RESTEM DÚVIDAS, FO**-**!!!! Ainda agora falámos disso e voltámos a cair na mesma me***!! Eu quero que as vossas preocupações vão prá co** das pu*** das vossas mães!! AQUI FAZ-SE O QUE EU DIGO, TÃO A VER!!! Fo**-**, que estes doutores e engenheiros da trampa fo***-** os cornos que é uma coisa parva!... Fo**-**, que meninos que me saíram!... E tu, ó Armando, praonde vais?
- Eu estava com as paletes da banha, Sr. Silva… Podia ir tratar dos bidões com o Doutor Aires Braancamp, se assim o achar…
- Não, não acho, ó Armando! Voceses querem é ficar os dois juntos prá conversa! Ficas com as paletes e ficas muito bem! Quero que essa me*** acabe até às cinco, que hoje joga o Benfica com os estrangeiros e tenho de dar à sola cedo!
- Doem-me as costas, Sr. Silva… Farei o melhor… - choraminga ACC.
- Ai doem-te as costas, meu car****?!? Se não levasses na peida a toda a hora, estavas melhor!! Ahahahah!!!! – zomba o Sr. Silva, gargalhando de forma a exibir a laringe e os dois ou três dentes podres que ainda conserva. O hálito a bagaço e cebola do Sr. Silva ofendeu ACC, mas este responde respeitosamente.
- Não, Sr. Silva, eu sou casto e puro. Não sou de todo homossexual. As dores provêm mesmo do meu esforço lombar.
- Tava a brincar, Armando, tu és mais mamadas!! Ahahahahah!!! Paneleirito de me***… Até o teu nome é de pane*****… Vá, acabou a farra. Vão lá trabalhar! E tu, ó Armando, é bom que não venhas com essas queixas de me*** outra vez, só te atrasa o trabalho. A andar, calões, a andar!!!
Um apito ecoa, anunciando o fim do intervalo. Saídos da sala de convívio, o Doutor e o Engenheiro confidenciam entre si, a salvo do Sr. Silva, enquanto se dirigem para a unidade produtiva:
- O Sr. Silva tem uma maneira muito particular de fazer valer os seus pontos de vista, não tem, Doutor?
- Deveras particular, Engenheiro, deveras particular. Mas ele é o nosso chefe, sabe perfeitamente o que faz.
- Se sabe, Doutor, é um verdadeiro mestre na gestão de pessoas – aprova FAB – Os cursos que cursámos e as teses que desenvolvemos não servem para nada neste mundo cão da fábrica. O Sr. Silva domina-nos com a sua assertividade comunicacional e nós sentimo-nos impotentes perante semelhante acutilância analítica.
- Completamente derrotados; diria mais, parecemos uns “Vencidos da Vida”… tal e qual Queirós, Ortigão e os seus pares no Hotel Bragança… – acrescenta AAC – É melhor obedecermos: isto do trabalho não é assunto que nós, meros operários de refinado gosto social, possamos opinar com quem conhece a fábrica como a palma da sua mão. Deixemos o Sr. Silva comandar.
- Valha-nos ele, o omnipresente Sr. Silva. Ele dirá o que for melhor para nós – e FAB coloca-se de pistola de rotulagem em punho, aguardando pelas embalagens que se avizinham no tapete rolante.

quinta-feira, junho 21, 2007

Eu Sou A Morsa

Mulheres de cabelo curto protestam contra qualquer coisa, imitando abortos tornados vivos, irritando com os seus incómodos permanentes. Há algo de podre no reino encantado do capitalismo, que bom que era se fosse só na Dinamarca. Deve ser o cravo que murchou e que nunca devia ter tapado o cano da metralhadora. Compro mais qualquer coisa para resolver os meus não-problemas. Eu não sei se devo tentar compreender todos estes temas que me assaltam no dia-a-dia, estas escadas rolantes vagarosas com pessoas recostadas do lado direito, estes avisos colocados ao lado da publicidade aos bikinis, não compreendo as mensagens codificadas que gravitam nas minhas órbitas oculares. Sinto um sono profundo durante as longas horas do dia e lamento não conseguir dormir em pé. E quem me conhece, sabe que até tento, sempre tentei, pelo menos sempre o disse e ninguém desconfiou. Mas também nunca perguntei. Pareço-me sublimado por palavras que não pretendem criar efeito e indiferente perante as novas teologias pagãs do mundo livre. Juntaram-me as postas num único ficheiro corrompido e nem tiveram o cuidado de alterar o tipo de letra de Times New Roman para outro formato qualquer. Não entendo o processo de selecção da gente que entrega jornais gratuitos pela manhã nos interfaces de transportes públicos nem quem constitui o círculo de amizades do Pedro Penim. Isto só para não me alongar. Preferia estar com Alice e o coelhinho pai do coelho da Páscoa no País das Maravilhas, mas receio encontrar o Humpty Dumpty estrelado do outro lado do muro e a Rainha de Copas a deliciar-se com um banho colectivo de anfetaminas juntamente com o resto do baralho. Apercebo-me que gostava de ser a morsa, mas ainda carrego com este fardo de carpinteiro em cima de mim. O “sei lá” é comummente aceite como uma resposta tão adequada que até um livro com este nome é best-seller. Dizem que, se chover, isto ainda vai ao sítio. Eu acredito que sim até chover, depois constato que o Verão faz vítimas mortais em cada esquina. Encontro-me embrulhado em metáforas que implodem a minha sustentabilidade enquanto ser racional. Sinto a força dum carimbo público a levitar por cima de mim, à espera da oportunidade certa para me esborrachar. Gostava de poder dizer que aquele castelo de areia tinha sido erigido por mim antes das malditas ondas o destruírem. Adorava poder participar num auto de fé e atirar lixo para os olhos dos hereges. Enfim, gostava de partilhar um pouco do meu niilismo em troca de alguma crença e algum dinheiro. Que também faz falta. Assisto à queda de velhos paradigmas e à queda do meu cabelo sem perceber qual das quedas me causará mais impactos. É interessante concluir que as alunas do ciclo preparatório já pintam as unhas como as vacas das mães delas, que se atiram descaradamente ao vizinho canalizador enquanto o marido, dizem elas, extermina a última prole de dodós em parte incerta para sua própria satisfação pessoal. Passar o tempo com passatempos é perder tempo. Ninguém realmente se importa, de qualquer maneira.

Alves, o Rogério

Para quem não saiba, o senhor da foto é Bastonário da Ordem dos Advogados (qualidade na qual aparece representado) e Presidente da Mesa da Assembleia-Geral do Sporting Clube de Portugal (qualidade na qual não aparece representado). Quem sabe quem ele é, certamente que o sabe por ele aparecer com frequência regular nos nossos ecrãs, comentando alguma questão jurídica assaz intrincada.
Aliás, este homem possui um dom oratório notável. Domina com laivos de aparente facilidade a língua portuguesa. Nele tudo encaixa com uma naturalidade assombrosa: a elaboração dum raciocínio argumentativo ou explicativo recorrendo à quase perfeição da estruturação frásica, da dicção, da entoação, da escolha de adjectivos au point, do cuidado na colocação das palavras certas na situação certa, do gesticular das mãos e da expressão facial que acompanha as suas prelecções. Eu fico perfeitamente convencido quando é ele a comentar alguma coisa. Com todas as suas qualidades comunicacionais, Rogério Alves consegue dar a ideia que domina qualquer assunto sobre o qual é chamado a pronunciar-se. Tenho a impressão que ele sabe de cor os Códigos Civil e Processual e, de um modo geral, toda a legislação e regulamentação portuguesas. Quiçá, até mesmo o Direito Internacional. Portanto, alguém que se me afigura como de confiança e de competência inquestionável. Eu creio que seria capaz de comprar um aspirador que Rogério Alves me tentasse vender, acaso ele os andasse a impingir porta-a-porta, mesmo que eu não precisasse de mais um aspirador para juntar à dúzia que se acumula na minha arrecadação, ironicamente a ganhar pó. Ele fala e fala bem, agrega numa simbiose orgânica a língua portuguesa e as noções do Direito como poucos e congratulo-o por isso.
Aliás, o meu reconhecimento não é isolado: Rogério Alves já assumiu algumas missões de relevo. Vejamos o seu currículo: vogal do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados entre 1993 e 1995; membro da Comissão Nacional de Estágio em representação do Conselho Distrital de Lisboa nesse triénio; presidente do Conselho Distrital de Lisboa no Triénio 2002/2004; comentador habitual de temas jurídicos em diversos órgãos de Comunicação Social; autor de diversos textos de opinião sobre questões jurídicas e outras questões da actualidade, publicados em diversos órgãos de comunicação; autor de várias palestras e conferências sobre questões ligadas ao direito e à justiça, nomeadamente em Universidades; participante em diversos debates, seminários e iniciativas similares como orador convidado em Portugal e no estrangeiro; participou como orador no Curso Sobre Jornalismo Judiciário na Universidade Católica Portuguesa, 2003/2004; orador no curso de Jornalismo Judiciário organizado pelo CDL em 2005/2006; orador convidado no curso de pós-graduação em Mediação e Justiça Restaurativa no Instituto Superior de Educação e Ciências, 2004 e professor convidado da UCP para reger o Seminário de Retórica Forense do 5.º ano do curso de Direito. Este currículo é oficial, está na página da Ordem dos Advogados e “esquece” o seu papel no Sporting (enfim…). Mas conseguimos captar a ideia que ele convenceu mesmo os seus colegas de profissão, profissionais da retórica e da complicação difíceis de aturar, ao ser eleito como Bastonário. Outra explicação é a de que mais ninguém se esteve para chatear na candidatura, ou mesmo votar, e só ele se candidatou com entusiasmo suficiente para ganhar, o que não acredito muito.
O que me leva a perder tempo com Rogério Alves não é, contudo, a exaltação dos seus atributos nem a constatação da sua aparente hiperactividade jurídico-judicial. É sim o reconhecimento do triunfo dos nerds.
Poucas personalidades públicas revelam um cariz tão nerdy como Rogério Alves. A começar pelos seus óculos, de acentuada graduação, que minimizam os seus olhinhos. Depois, acabando nos seus óculos, retirados do fundo dum garrafão, que lhe atribuem um estatuto de “homem-alvo” das partidas no balneário. De passagem, temos a sua própria expressão oral, que sendo muito enleante e erudita, sim senhor, é também duma nerdice evidente – como sinal, temos aqueles “esses” acompanhados por tímidos gafanhotos que se expelem por entre os lábios que se afunilam e expressões, que sendo muito bonitas e curiosas, só mesmo um nerd as profere sem constrangimentos e sem gaguez.
Ou seja, Rogério Alves provou que as qualidades podem prevalecer sobre o aspecto físico. Ele conseguiu superar todas as partidas no colégio (a não ser que tivesse frequentado o Colégio dos Nerds), conseguiu estudar tudo o que havia para estudar e passar nos exames orais (todavia, qualquer professor que olhasse para ele teria, certamente, alguma bonomia para com ele, alguma parcimónia inicial no início do exame, olhando para o seu aspecto de grande estudioso), conseguiu chegar aonde chegou e, a cereja no topo do bolo, casou-se e teve dois filhos, a ambição secreta de qualquer nerd.

Sugiro que todos os nerds entre os 12 e os 25 anos larguem os computadores e as séries da Fox por algum tempo e se dediquem à análise do percurso deste homem. Requisitem uma entrevista e aulas práticas para aprenderem o segredo do sucesso deste nerd. Ainda vão a tempo de fazer alguma coisa nesta vida.

quarta-feira, junho 20, 2007

Elite

Sim, ser maior. É tudo aquilo que fui, sou e serei. Ao meu lado, desfiles de pessoas desinteressantes, grotescas, deselegantes enchem-me de razão.
Não, o meu ar não é o mesmo. Os meus micróbios são assépticos. Eu espirro pó de ouro, pó dos anjos, pó de arroz. E esta maralha de gente espirra germes doentes. Eu bem os vejo, inchados de tanto colesterol, amarelecidos por crises hepáticas e diabéticas. Eu passo incólume. Eu quero passar, é bom que me deixem.
Se o meu sangue não é azul, pelo menos não é vermelho como o da plebe. Eu bem noto a gordura nos cabelos brancos desses assalariados atrozes que pululam em instituições públicas, em filas que não suporto. Eu bem me indigno com a espera que me espera e brado alto “Não pode ser!”, jogando com os meus múltiplos e nobres apelidos. Não quero misturas. A pureza não se mistura, perpetua-se por si mesma se forem mantidos os critérios de selecção. E como eu selecciono.
Então quando eles vêm com a história dos beijos e abraços… com a história de grandes pratos de cozido à portuguesa, pratos cheios de enchidos e pés de porcos repugnantes, com uma unha encravada e tudo por cima da rija couve galega… com a história de férias na praia de Quarteira, paredes-meias com os pescadores descalços e incultos, sujeitos a arrastões e empurrões… com a história de um emprego mal pago e ignóbil, onde grassa a sujidade e a incompetência… sinto que este mundo não foi feito à minha medida.
Se calhar, é este o meu dom, é esta a minha predestinação divina: o de ser a excepção. O de ser a elite. Não uma elite presunçosa; antes uma elite verdadeira, genealogicamente comprovada. Na minha cabeça existem e nas minhas mãos cabem todos os direitos, mas também alguns deveres. O dever de cumprimentar com um beijinho apenas. O dever de falar com um sotaque único, nem bem português, nem bem francês, nem bem tricémico-21. O dever de comer meia folha de alface por refeição. O dever de determinar o que é realmente bom e de limitar o acesso a essa qualidade inaudita a seres menores e mal-agradecidos. O dever à indiferença direccionada a quem não é convidado para dentro do meu perímetro social. O dever inalienável ao desprezo.
Há demasiados seres menores por aí, já quase que não se pode sair de casa. Esse povinho mesquinho é muito bruto. É muito feio. É muito fácil de contentar. Basta-lhes acenar com coisinhas brilhantes e lá vão eles. Eu não aguento. Para eles champanhe é Raposeira. Para eles espectáculo é a TVI. O que é o bailado para um indivíduo a recibos verdes? Gentinha medíocre esta.
Gentinha invejosa, também. Sim, compram revistas e assistem a programas das nossas vidas em transe. Como se alguma vez pudessem nos equiparar. E depois imitam e tentam regurgitar os nossos perfis. Detesto esta falsa nobreza. Eu sou o protótipo do ideal. Eu sou quase perfeito. Tenho um nível intelectual, moral e espiritual incomparavelmente superior, supero qualquer teste que me queiram colocar para provar o que digo. Mas, como não tenho de aturar com esta gente, não me dou sequer ao trabalho de me provar perante eles. Não lhes dou esse gosto.
Quero-os sim para passarem a ferro a minha delicada roupa, que já apliquei o creme nas mãos. E se eles queimarem alguma peça, despeço-os. Um castigo natural e justo. Com eles, nem beijinho, nem contacto: fiquem a uma distância mínima de segurança. É que o mal propaga-se acelerado por terrenos puros, qual fogo a irromper por uma selva virgem. Devemos proteger-nos desses modos primitivos e assegurar a nossa própria procriação. Salvaguardar as melhores castas e preservar o nome brasonado.

segunda-feira, junho 18, 2007

Gémeos

- É uma pessoa comunicativa, inteligente, flexível, imaginativa e generosa. Pode, porém, possuir um grande conflito devido à sua dualidade, ser inconsequente ou superficial. O planeta regente é Mercúrio. Falamos de que signo?
- Capricórnio.
- Qual a razão da sua resposta?
- Gosto de cabras. E o Capricórnio é uma cabra com um nome diferente apenas para efeitos astrológicos.
- Não gostaria de reconsiderar a resposta?
- Não, é mesmo Capricórnio, só pode.
- É esse o seu signo?
- Talvez, a minha mãe é que é uma perita no assunto. Capricórnio é a resposta.
- A resposta está…

- Os gajos são iguais.
- Não são nada. Ninguém é exactamente igual.
- Não são o quê? Estes são! Nem os pais sabiam quem eram eles se não os tivessem marcado.
- Marcado? Marcado como?
- Com um ferro em brasa nas nádegas, tipo vaca, quando tinham 2 semanas.
- Estás a brincar!... Como é que sabes disso?
- Foi o Adalberto que me disse. Juro que é verdade.
- Afinal, qual deles é o Adalberto?
- Sei lá. Eles são iguais. Só o cu é que é diferente.

- Tenho uma forte dor na perna, pá.
- É do desgaste. Correste quilómetros durante o jogo.
- Ter corrido tanto pode explicar alguma coisa, mas acho que foi com a pancada do trinco dos gajos, o nº 6, que fiquei assim.
- Aquela junto à linha lateral? Eh, pá, essa até doeu só de ver!...
- Esse sacana!... Na 2ª volta, quando jogarmos em casa, espeto-lhe com uma pantufada logo a abrir, que é por causa das tosses! Irra!, estou mesmo à rasca da perna!
- Vais a ver, tens uma rotura…
- Eh, pá, não me digas isso! Outra vez?
- Eu espero bem que não, mas… dói-te em que sítio da perna?
- Eh, pá, mais ao menos nesta zona… creio que é qualquer problema muscular… que porcaria é esta aqui?

- Aaaah! Eu tinha mesmo a convicção que era Capricórnio!
- Pois…
- Depois ainda pensei que pudesse ser Unicórnio.
- Unicórnio ou Sagitário?
- Já me tramou (silêncio). Qual deles está extinto?
- Você não percebe muito de signos, pois não?
- Devo confessar que não…
- Então porque é que não utilizou uma das ajudas que lhe restava?
- Porque tinha uma convicção muito forte. Muito forte mesmo.
- Mas falhou.
- Falhei.
- Estupidamente. E com isso perdeu uma oportunidade única para ficar absurdamente rico.
- Sim. E você já me humilhou o suficiente.

- Deve haver qualquer coisa de diferente neles, uma sobrancelha, uma mancha no couro cabeludo. Não podem ser exactamente iguais, por muito roupa idêntica que vistam.
- Claro que podem. Tanto que podem que são.
- Excluindo a marca na nádega, dizes-me tu.
- Digo-te eu.
- Então já sodomizaste o Adalberto.
- Não. Apenas lhe fizemos uma amostra no 6º ano. E estava lá a marca. Eu não sodomizo homens.
- Qual é a sensação de distinguir um homem de outro que lhe é praticamente igual apenas pela sua nádega?
- Para mim, é indiferente; para eles deve dar gozo. E eles não são praticamente iguais; eles são mesmo iguais.
- Está bem, pronto. Não te pergunto mais nada.

- Como é que no corpo humano existe um músculo com esse nome?
- Sei lá! Também temos um úmero, um baço, um cólon, um rádio…
- Um rádio?
- Um rádio. FM/AM, Mono/Stereo, RDS e alarme, do mais completo… Pá, são nomes, que é queres fazer?
- Se tiver mesmo um problema a sério com esta porcaria, vou dar cabo do sacana que me lesionou!
- A época está no fim, vais ter de esperar.
- Vou dar cabo da carreira dele na pré-época seguinte, vais ver!
- Não faças isso, pá. Acalma-te lá. Essas coisas acontecem.
- Dá-me uma boa razão para não me vingar.
- Ouvi dizer que ele foi pai agora.
- E depois?
- Ele foi pai de duas crianças há pouco tempo. Pai a dobrar. Duas crianças sem sustento… não seria uma situação agradável.
- Irra!, rai’s partam os gémeos!

sexta-feira, junho 15, 2007

As Interrogações dum Actor Pornográfico

Porque é que insistes em perguntar-me se estou a gostar?
Porque é que tens essa tendência irritante para corroborar o êxtase do nosso acto sexual, afirmando ofegante “É bom não é?”
Porque é que a tua amiga nos olha de boca aberta, lambuzando o seu batôn vermelho vivo, enquanto acaricia, com os seus dedos das mãos ostentando unhas pontiagudas e berrantemente envernizadas, o clítoris bojudo a descoberto dos pêlos púbicos podados com perícia meticulosa que exibe, alarve, no sofá do Ikea, não ousando sequer retirar os sapatos de salto alto nem o cinto de ligas que teimosamente preserva em cada menàge-á-trois que ocasionalmente praticamos por aqui e por ali, respondendo com olhos semi-cerrados pela suposta excitação profunda que retira em observar-nos, numa dolência possuída: “É muito booooooom…”? Como é que ela sabe que nós achamos que é bom?
Porque é que mènage-á-trois é a única coisa que sei parafrasear em francês?
Porquê é que repetes “Sim! Sim! Sim!” em simulações orgásmicas apenas pelo vislumbrar do meu corpo ou de outros corpos desnudos que aparecem em género de carrossel hedonista e leviano à tua volta, como se tudo fosse novidade para ti: “Ai, que grande mastro que tu tens…”?
Porque é que alternas súbitos momentos de altruísmo corporal, manifestados através da tua extrema disponibilidade em acorrer a todos os pénis que surgem perante ti, com intensas demonstrações de egoísmo, ao quereres açambarcar as actividades desenvolvidas pelas tuas colegas: “Não chupes tudo, que eu também quero”?
Porque é que te alongas em comentários desbragados à tua própria voluptuosidade, com cínicos e pretensiosos louvores pessoais às tuas características despudoradamente exibidas, tipo “Gostas de ver a minha ratinha molhada toda aberta para ti?”, como se alguém retirasse enorme satisfação pela tua auto-adulação verbal, ou como se todos alcançassem um clímax reforçado pela simples sonoridade das tuas sugestões?
Porque é que reclamas que te dê sempre com mais força nesses orifícios sub-lombares? Será que queres que te rebente com todos os hímens imaginários que ainda pensas deter ou queres que te faça cócegas no esófago?
Porquê essa notável confusão entre sexo e amor, tu que tratas todos por “amor”, mesmo que seja a primeira vez que os vês, é “amor” para aqui, “amor” para acolá, “fazer amor” assim, “toma lá amor” assado, mas afinal só queres é sexo, sexo e sexo? E, já agora, ainda mais sexo?
Porquê esse fascínio pelo masoquismo do “Fode-me! Fode-me toda!”, se já não é isso que te estou a fazer nesse momento? Será que o sexo violento te faz assumir uma outra personagem que, paradoxalmente, só pensa em sexo violento, numa espécie de espiral para o infinito tipo lata de fermento Royal?
E porque é que não manténs essa atitude masoquista no teu dia-a-dia e não pretendes ser “fodida” toda a tua vida, em toda e qualquer situação, por toda e qualquer pessoa, de forma a, pelo menos, atingir um certo grau de coerência, mesmo que, se assim fosse, a tua vida seria um autêntico pantanal sub-humano (e talvez até já seja)?
Porque é que não resistes quando me vês chegar, sozinho ou em grupo, e não tens a mínima veleidade ou vergonha de acasalarmos em qualquer ocasião, seja ela uma recepção protocolar a um bispo evangélico, uma reunião de alcoólicos anónimos, uma familiar ceia natalícia ou mesmo quando chegas cansada após um corriqueiro dia de trabalho?
Porque é que manténs essa curiosa tendência para te masturbares em qualquer situação que presencias outro alguém a procriar, sem qualquer pejo em destapar e apalpar os teus seios nem em, mais uma vez, acariciar o teu sexo, por muito inconveniente que seja o local e o tempo?
Porque é que te rodeias de outras mulheres ainda mais deslambidas e atraentes que tu e não te importas minimamente em partilhar-me com elas, com o eventual ciúme a surgir apenas muito após a inevitável orgia?
De onde vem esse inusitado descontrolo de emoções que te leva a amar profundamente sob a forma de sexo oral qualquer estranho que se aproxime de ti quando estás em pleno acto sexual?
Porque é que nunca te cansas de sexo em grupo, com duplas e triplas penetrações simultâneas, com todas as tuas amigas a assistir e com estas, corajosamente mas sem constrangimentos alguns, a participarem activa e alegremente nas tuas orgias que espontaneamente cultivas em todos os eventos sociais em que participas?
Porque é que te sentes atraída por chineses anões, pretos gigantes, animais inocentes e barbas de ZZ Top de igual forma sem nunca emitires um sinal de desagrado nem parares de gemer ou contorcer-te de forma sonora e veemente?
Porquê é que o lesbianismo nunca foi um tabu para ti?
Porque é que retiras enorme prazer em lamber qualquer parte de qualquer corpo humano e te comprazes com os fluidos vaginais das tuas primas e tias, da mesma forma como te regalas com o sémen, urina, champanhe, fezes, iogurte, ovos moles de Aveiro, qualquer coisa que o teu garanhão te derrama em cima dos olhos e da boca? Nunca te ensinaram que os verdadeiros suplementos vitamínicos vendem-se na farmácia?
Enfim, não devias ser-me um ente estranho. Apenas acho que finges demasiado mal. Ao menos, que o dinheiro te faça jeito.

quarta-feira, junho 13, 2007

Eu Sou Arraçado do José Couceiro

Pais, Sidónio (SI) – Não me conformo!
Dassaev, Rinat (DA) – Toma um rebuçado Dr. Bayard e isso passa.
SI – Irra, pá! Isto deve ser a minha sina por ter tentado ser um protótipo de ditador popular em plena Guerra Mundial!... Malditos rapazes republicanos!...
DA – O Dr. Bayard era até há pouco tempo produzido no coração da Amadora. Tem selo de garantia. Medalhas de distinção. Prestígio consolidado.
SI – Não tenho nenhum problema de estômago. O meu problema é sexual.
DA – Ah é, SI?
SI – Sim, DA. Não consigo ter um bom desempenho sexual com a minha mulher.
DA – Nem com um rebuçadinho do Dr. Bayard a caminho do Portugal dos Pequeninos?
SI – Qual quê. Tenho sinais perturbantes de perda de erecção. A impotência progride com uma sádica voracidade sobre o meu outrora robusto ornamento fálico.
DA – Eu sou daquelas pessoas que não consegue andar de cabeça levantada no Portugal dos Pequeninos. Aquele empreendimento fascizante oprime a minha dignidade.
Luís Gomes – Sou ou não sou parecido com o José Couceiro?
SI – Se calhar, o problema não é só meu. Noutro dia, dei com a milha mulher a retirar o seu tampão e vi-a a menstruar-se. O conteúdo da sua menstruação não me agradou. O sangue, além de fétido, parecia coagular-se com pedaços de…
DA - … rebuçados Dr. Bayard?
SI – Não, diria mais pezinhos de coentrada. Ou peixinhos da horta. O que é que parece mais nojento?
DA – A receita dos rebuçados Dr. Bayard é o quarto segredo de Fátima. Directamente do santuário para um edifício habitacional reconvertido numa praceta da Amadora.
SI – O sangue vertia pelas suas pernas como se estivéssemos a abrir uma lata de concentrado de tomate: maioritariamente, uma solução líquida; porém, com inquietantes pedaços sólidos que ribombavam quando se esparramavam no bidé. Depois de presenciar aquele horror gráfico, ainda tentei uma confraternização pacata, fomos colocar amendoins na tromba do elefante no Jardim Zoológico. Mas quando dei por mim…
DA – (Olha lá só isto que eu vou fazer) Estás a ouvir, pá, confias mais no Dr. House ou no Dr. Bayard?
Fox Mulder – Doctor Who?
DA – Pois, vocês os das séries são todos uns corporativistas, é o que é.
SI - … quando olhei à volta, reparei que a minha mulher estava a praticar sexo oral com o paquiderme, enquanto eu me entretinha a alimentá-lo. Foi deveras desanimador, até senti o riso das hienas perpassar a minha pele. Mas o que realmente considerei abjecto foi a quantidade de sémen segregada por aquele quadrúpede imponente, quase que afogou a minha esposa numa pasta viscosa esverdeada carregada de espermatozóides gigantes. Não que ela se importasse; aliás, ela absorveu todo aquele repuxo como se de uma monção sagrada se tratasse, lambendo encarecidamente todas as gotículas que lavavam os seus óculos Ray-Ban e todos os pequenos resquícios que se demoravam no interior da uretra. E isso enojou-me, fez-me perder o interesse, tanto por ela, como pela zoologia enquanto uma ciência que estuda comportamentos e relações animais.
DA – Por mim, África só será África com rebuçados Dr. Bayard. E não digo isto por dá cá aquela palha.
Luís Gomes – Eu só quero que me digam se não sou parecido com o José Couceiro.
SI – E a forma como ela corta as unhas dos pés? Sabeis que os Adiafa não ficcionaram para compor o êxito “As Meninas da Ribeira do Sado”? Foi a minha esposa que lavrou as terras para eles. Depois de muita sodomização colectiva, evidentemente. Não compreendo qual o prazer da sodomização em função das actividades agrícolas. Ainda por cima, sodomização fomentada por uma cooperativa agrícola que utilizou meios de produção nacionalizados nos tempos da Reforma Agrária. Não devia haver misturas: arado é na terra, sodomizar é enterra.
DA – Para um desenvolvimento sustentado das unhas dos pés recomendo amor, carinho e rebuçados Dr. Bayard. Ou não fosse eu um completo cliché.
SI – Mas a maneira como ela trincava as fatias de unhas, que ela mesma arrancava em delírios contorcionistas dos seus próprios dedos calejados e invadidos por joanetes de cariz semi-impressionista, isso sim, aplicava o golpe de misericórdia na minha libido. Aqueles nacos infectos e mal-lavados a acotovelarem-se por todas as suas cavidades dos dentes e a refulgirem ao sol, riscando o batôn dos seus lábios e sintonizando-se num perfeito contraste com os dentes apodrecidos que ela tão briosamente lutava por conservar…
DA – Dizem que na compra de um cinto de ligas da Sloggi ganhamos um saco de rebuçados Dr. Bayard.
Robert Mugabe – Will you just shut the fuck up?
DA – Mais um que não sabe apreciar a lingerie… enfim…
Luís Gomes – Tenho ou não tenho evidentes semelhanças físicas com o José Couceiro?
DA – Bolas, que este gajo é repetitivo! Que é que queres afinal? É bom que tenha algo a ver com rebuçados Dr. Bayard…
Luís Gomes – Se me disserem que eu não sou parecido com o José Couceiro, eu escuso de me vestir todos os dias com esta farda de sargento. Eu só uso a farda todos os dias como factor de diferenciação.
SI – O hábito não deve fazer o monge. Mas, pronto, eu digo que não, só para poderes ir à vontade com a tua criança ao parque de diversões envergando uma roupa menos ridícula que não a embarace.
Luís Gomes – Obrigadíssimo. Podeis retomar o diálogo.
SI – Falávamos sobre o quê?
DA – Ou era sobre a inutilidade das grandes enciclopédias na sala de estar ou sobre os rebuçados Halls Mentho-Lyptus.
SI – Não era Dr. Bayard?
DA – Eles venderam-se ao grande capital. São um logro. Burgueses cheios de jactância.
SI – Está bem… Faz-se tarde, tenho de apanhar o transporte para Ranholas.
DA – Fazes bem, Meleças não é sítio para ti, respira-se muito fumo intelectual. Vais apanhar o transporte a Entrecampos?
SI – Não, pá, vou apanhar o comboio na Estação do Rossio.
DA – Se fosse eu a ti não ia para a Estação do Rossio. A História diz-nos que tu morres lá. E, para além disso, está fechada.
SI – Mas nós não queremos mudar a história, pois não?
DA – É melhor não. Depois ainda aparece algum maluco qualquer com uma factura histórica para nós pagarmos e é o ver se te havias. Vai lá morrer como deve ser.
SI – Vens comigo?
DA – Não, deixa estar. Vou ficar por aqui a ver se a fila para os Pastéis de Belém começa a avançar. Queres um rebuçado Halls Mentho-Lyptus?

Balde de Mel

Digamos que não há ex-passos certos. Há bilhetes de identidade trocados em plena revolução tecno-ilógica. Onde está o choque? Aqui atrás, bem em cheio no pára-choques, o airbag da realidade lá me acomodou sem evitar-me uma ferida bem sexy no sobrolho, foi um comboio de palavras desenfreadas em velocidade de cruzeiro que me abalroou neste Domingo à tardinha, mas a gasolina bem que pode aumentar que o meu motor continuará a bombar. Dás-me o teu corpo e eu dou-te o meu bacio que religiosamente conservo sob a mesa-de-cabeceira. A urina morna parece-me mel, e a ti, que te parece? Uma partilha de defecações mentais não nos faria pior. Estamos ou somos? Vamos ser honestos o suficiente para assumirmos que nos deliciamos com as lúgubres carícias do show-bizz. Que nem nos importamos de figurarmos como entidades super-supra-sumamente inconscientes lá bem no fundo do nosso metropolitano neurológico. E, já que conseguiste penetrar mas levaste com as cancelas no lombo, percorramos a via láctea de todos os nossos neurónios à procura de novas espécimes desodorizantes da nossa alma. Cheira-me que o rebanho tem fascínio pelo lobo, mas este apenas sabe o que é ver séries juvenis pré-noticiário das oito. E fica para os anúncios sem perceber porquê. Parecemos todos diferentes mas afinal a impressão não conta para nada. Imprimem-me a laser num papel reciclado e sirvo para acumular pó no curral das suas vicissitudes mundanas. Isto quando não me encravo nas rotativas, alavancas e patilhas da sua imperfeita máquina de vaidades. É bonito, foi bonito, sentimo-nos todos muito bem quando nos aconchegam o pêlo pelo pêlo. Quando quiseres, fecha a porta, que eu faço de conta que não te vi a engolir o teu próprio vómito.

quinta-feira, junho 07, 2007

Os Profissionais da Ajuda

Naquelas distracções diárias, Firmino abandonou o seu livro em cima de uma máquina de pagamento, das muitas do parque de estacionamento de uma grande superfície comercial. Dois indivíduos nas imediações aperceberam-se do sucedido. Pegaram no livro e chamaram por Firmino, antes que este alcançasse a viatura.
- Senhor! Ei! Ó chefe!
Firmino voltou-se e imediatamente reconheceu o seu lapso. Agradeceu pela atenção alheia.
- Muito obrigado – e, dito isto, encaminhou-se de novo para o seu automóvel.
Os dois indivíduos ficaram perplexos, entreolhando-se com admiração, espanto e, lá bem no fundo, indignação.
- Mas o que isto, pá? – soltou o mais alto dos dois. Descrevamos a personagem: Aurélio Flexiseguro, natural do Fogueteiro, idade incerta, 81 kg., 184 cm., tem namorada e gosta de tratar de peixes. Sabe confeccionar maravilhosamente Bacalhau à Gomes de Sá.
- Este gajo passou-se! – aquiesceu o outro. Não descrevamos esta personagem, não vale a pena. Este é somente “o outro”. Pronto. É só isto.

Não, não digo mais nada.

Já disse que não vale a pena. Ele é “o outro” e mais nada. É um tipo perfeitamente normal.

Não há nenhum mistério. Descrevi o Aurélio e este não me apetece descrever, só isso. Não há nada de mais com isso. Já chega.

Não, não estou a fazer birra. Não o descrevo.

Ponto final.

Vamos continuar com a estória?

Não sei se devo escrever “história” ou “estória”… Adiante.
- Ó amigo! – clamou o outro.
Firmino virou-se outra vez, pensando que se esquecera também da caixa de preservativos com sabor a morango em cima de um sítio qualquer. Ou dos comprimidos para a memória, talvez. Quais preservativos? Ele precisava de preservativos? Para quê? Ele nem gostava de morango… Esperem aí: e seria ele a chupar o pedaço de látex? Como assim? E que comprimidos? Teria ele problemas de memória? O que quereriam aqueles dois?
- Então como é que isto, chefe? – questionou Aurélio, retoricamente, abeirando-se de Firmino. Este, por seu turno, olhou em interrogação a dupla.
- Isto o quê?
- Isto o quê?!? – repetiu, num tom mais acintoso, o outro – Então mas ainda tens a lata de perguntar, pá?!?
- N… Não estou a perceber… - perturbado, Firmino não percebia patavina – O que aconteceu?
- O que aconteceu foi que te fizemos um favor agora mesmo, ou já não te lembras? Estás esquecido, é? – prosseguiu, num registo muito retórico, Aurélio, gesticulando com movimentos vigorosos.
- Vocês também encontraram os preservativos, foi isso? – arremessou Firmino, numa ténue esperança de ter acertado em cheio no submarino. Mas isto não é batalha naval. Sim, não há porta-aviões em “T” nem barcos de três canos numa folha quadriculada. De qualquer forma, foi em cheio na água, chapa de pança dilatada pela cerveja em esplanadas à beira-mar no Verão na parede do mar, em choque directo com ondas impregnadas de sedimentos minerais diversos nas praias do barlavento. Onde é que ia Firmino? Ah, na cerveja na esplanada… não!, nos preservativos, nos preservativos é que ia.
- Preservativos? Ó amigo, tu não estás lá muito bem, pois não? Mas nós não queremos saber disso, nós queremos é que tu nos agradeças como deve ser, ‘tás a perceber? Preservativos… pfff! – enojou-se o outro, desagradado com a petulância idiota de Firmino.
- É mê’m’isso, chefe! Um agradecimento como deve ser. Afinal de contas salvámos-te o livro… - e Aurélio, após reparar no livro que Firmino ainda agarrava nas suas mãos, retirou-lho bruscamente da sua posse – E vê lá tu, o outro, que o livro até nem parece muito mau. Já viste, o outro?
- Qual outro? – perguntou o outro. Aurélio deu largas à exasperação que começava a ferver no seu sangue:
- O outro és tu, animal! Eu não tenho culpa que nem te tenham descrito como deve ser! Não te estava a perguntar pela opinião de outro livro qualquer, estava-te a perguntar se já tinhas visto este livro que eu tenho aqui, que é “Salazar e Maradona Partilham Um Risco de Coca – Um Conto Infantil”, da Editorial Vereda Tropical. Um livro jeitoso…
- Eh, pá, esse ainda não. Mas por acaso já tenho vindo a reparar que a Editorial Vereda Tropical anda claramente a tentar recuperar o terreno perdido no segmento infanto-juvenil… ainda no mês passado, editou a colectânea das tiras de banda-desenhada do João Baptista-Morgue, aquela do Capitão Vasilhame, um hipopótamo assassino residente no porto de Brugges. Muito bom, especialmente nos acabamentos, que incluem uma capa inteiramente produzida com restos de pele de criança vietnamita e sangue verdadeiro dum wombat australiano nas ilustrações das páginas centrais. Foi uma pedrada no charco, não tenho dúvidas.
- Muito melhor que o Noddy – assentiu Aurélio.
- Ah, doutra galáxia… - quantificou o outro. Firmino quis intervir:
- E vocês deviam ter lido o livro “As Mil e Uma Peripécias do Ratinho Peidinho”, é só rir do princípio ao…
- Está bem, ó amigo. Já vimos que prezas o teu livro. Então ainda nos dás mais razões para não compreendermos porque é que tu não nos agradeceste à maneira…
- Mas eu agradeci!... Disso eu lembro-me! – verbalizou Firmino a sua defesa, consciente de ter cumprido todas as regras da boa educação. Mas e se ele deixara os preservativos ao alcance das crianças? O que fariam elas com o achado? Deitariam os preservativos pela sanita abaixo? Reutilizariam os preservativos como balões de água? Aproveitariam a oportunidade para debutarem no amor com as suas priminhas de maminhas arrebitadas do Minho? Para quê uma dúzia, não teria bastado uma caixa de seis?
- Olha para ele… agradeceu… chamas àquilo um agradecimento? “Muito obrigado, uma merda para a tua cara, és um totó”? Nem tiveste a veleidade de sorrir nem nada, foi um cumprimento ressentido e amarelo, tu nem sequer sentiste o que disseste…
- Não notei um pingo de intensidade dramática… - juntou-se o outro, explicando as razões da interpelação do par a Firmino – Podias ter ao menos dado um “passô-bem”, uma palmada nas costas, eh pá, alguma coisa mais substancial. A mim pareceu-me que estavas um pouco nervoso e que quiseste despachar-nos… Ficou-te mal…
- Queremos mais do que isso. Tu consegues fazer melhor – incentivou Aurélio. Firmino acalmou-se: ahá!, talvez os preservativos tenham ficado no carro, afinal. No resguardo da sua porta. Esperem lá: a porta não tem resguardo. Ou tem? Mas qual foi a sua ideia de deixar os preservativos no carro? Como é que Firmino fode no seu carro? Nunca experimentou… Ou já? Ou serão os comprimidos para a sinusite que estarão no guarda-luvas? Não eram comprimidos para outra coisa qualquer?
- Pronto, se é isso que querem… - Firmino abraçou Aurélio e o outro, dando simpáticas palmadinhas na zona da omoplata a ambos, sussurrando aos dois:
- Muuuuuuito obrigado!! Espectacular! Vocês salvaram-me a vida! Este livro é tudo para mim! Como é que vos posso agradecer?
- Agora estiveste bem. Estiveste no limiar da bajulação insidiosa, quase a perpassar o risco da adulação irritante; pronto, estiveste muito perto de passar do agradecimento para a graxa, mas, no cômputo geral, esse agradecimento motivou-me para praticar mais boas acções no futuro – avaliou o outro.
- É, eu também acho que sim. Acho que todos nos engrandecemos enquanto seres humanos neste momento. – concluiu Aurélio. Firmino preparou-se para retomar o seu caminho.
- Ó amigo, já agora… - interrompeu Aurélio – Você disse-nos ao ouvido como é que nos podia agradecer… e nós sabemos como.
- Pois é. É que, ‘tás a ver, nós somos, tipo, profissionais do agradecimento; prestamos ajuda não totalmente voluntária, no fim queremos sacar um agradecimento das pessoas… é esta nossa vida, por aí, pelas ruas, pelos parques de estacionamento como este aqui, ajudando pessoas preocupadamente a pensar na retribuição que nos possam dar…
- Nós vivemos para nos agradecerem, percebes? Somos justiceiros benquistos a actuar na sombra, tipo isso – atalhou o outro. Aurélio prosseguiu:
- Mas isto de viver da alimentação do ego não nos alimenta o estômago. Não tens aí uns troquinhos para comprarmos um bife do lombo? Uns centimozitos, devem chegar…
- Eh pá, lamento muito, deixei o resto na máquina, ao pagar o estacionamento… - desculpou-se Firmino. Ou não? Não importa, o que Firmino queria era despachar-se, ainda tinha que procurar pelos preservativos.
- Não há mesmo nada, nada? – insistiu Aurélio.
- Não, desculpem lá.
- Pronto, nós trabalhamos para o “obrigado” e temos de saber conviver com o “desculpem lá”. – cedeu Aurélio – Vamos, o outro, vamos bazar, que há muito mais gente por aí com vontade de nos agradecer pela nossa ajuda.
Afastados de Firmino, o duo cochichou entre si:
- Guardaste a caixa dos preservativos que eu achei, o outro?
- Guardei, Aurélio. Só não percebo é porque não fizemos o gajo agradecer-nos por isto também…
- Os preservativos são valiosos, o outro! Isto de vivermos dos agradecimentos é uma coisa bonita, mas nós também precisamos de foder em segurança, ou não? Eu não me arrisco naquelas ratas lá do bairro à maluca, podes crer nisso!
- Tudo bem, mas estes preservativos sabem a alho… serão assim tão valiosos?
- Ainda têm o seu valor, o outro. Há quem aprecie.

Firmino não encontrou os preservativos, depois de muitas voltas na sua viatura. Além do mais, todo este enredo impediu-lhe de sair do parque nos quinze minutos úteis que sucedem à extracção do ticket amortizado da máquina. O que se passou a seguir foi de uma brutalidade assombrosa. Verdadeiramente devastador. Firmino caíra nas teias demoníacas do destino.

Mas por agora não vou contar.

Não vale a pena. É apenas violência gratuita.

sexta-feira, junho 01, 2007

Debandemos Em Massa

É uma chatice viver em Portugal. Pessoas aborrecidas e desinteressantes, invejosas e mesquinhas, sem perfil de liderança nem capacidade de obediência. Albert Uderzo retratou os Lusitanos em Astérix como sendo indivíduos baixinhos e gordos (“Todos os imigrantes portugueses que conheci eram assim”, referiu). Simples, mas eficaz, Uderzo não estava louco e acertou em cheio. Bem que podíamos absorver um pouco da sua serenidade e seriedade analítica.
Não há paciência para “reality shows” estapafúrdios, “talk shows” inenarráveis, danças folclóricas boçais, chico-espertismo como a modalidade nacional preferida antes do futebol, génios adiados, poetas decadentes, pontas-de-lança inexistentes para tanta fartura de extremos e fraco espírito comunitário.
Se somos pessoas de bem, devíamos ter vergonha em ser portugueses. O que é que temos para mostrar, para além das belezas naturais que nada fizemos por merecer? Um elevado despesismo público e clientelismo nas esferas do poder? Ferraris a conviver com bairros sociais impenetráveis? Pão e vinho sobre a mesa da casinha bem-cheirosa e com o fado de Alfama a ecoar no incontornável bidé presente em qualquer WC? Os Jerónimos? O último lote de estrelas d’ “Os Morangos Com Açúcar”? Um seleccionador nacional estrangeiro? Estarmos perto de Espanha? Estarmos na Europa, nem que seja a fugir Atlântico adentro? A nossa miraculosa hospitalidade, que, por acaso, nunca é mostrada ao compatriota mais próximo na rua? A tendência para os homens ficarem gordos, carecas e bigodudos enquanto se acumulam nas tabernas para esquecer as suas mulheres gordas e sorumbáticas que se agregam em torno da televisão, por entre mais uma refeição desleixadamente confeccionada? O que temos, afinal? Não temos nada.
Vamos emigrar. Debandemos em massa. Vamos maturar-nos enquanto seres humanos para fora daqui e voltarmos apenas em Agosto com um DVD do Tony Carreira no porta-luvas do Mercedes.
Mas não emigremos ao desbarato, para sítios pejados de portugueses de primeira, segunda, terceira e sabe-se-lá-até-quando gerações. Locais banalíssimos como Paris, Londres, Dortmund, Newark, Lausanne, Luanda, etc.. Assim não dá: os portugueses parecem só dar-se bem quando isolados, quando aquele sentimento estranho de identificação nacional finalmente cresce dentro do português solitário, quando a saudade se transcende e passa de pieguice para valentia estóica. Isto tudo depois do mesmo indivíduo ter reiteradamente espezinhado esse mesmo sentimento de amor à Pátria durante toda a sua vida na terra natal, dizendo cobras e lagartos de todo o mundo lusitano, como justificação para os seus desatinos e azares (excepto quando joga a selecção, ocasião em que somos todos totalmente patriotas). Todavia, isolado dos compatriotas, o português é como milhafre ferido na asa – junta as suas forças e, mesmo gordo e oleoso, acaba por surpreender. No meio de semelhantes, o desmazelo é total e insanável. O rebanho divaga por críticas mútuas e culpabilização ostensiva sem nunca concretizar a intenção de partir em busca de novos prados. No fundo, como este texto que se limita ao óbvio e ao fácil: critico porque sim, porque me desresponsabiliza enquanto cidadão, porque incrimino o abstracto sem ferir nenhuma susceptibilidade particular e porque não estou para ter trabalho em pesquisar a verdadeira origem do mal. Prossigamos.
Tenho duas novidades a comunicar aos portugueses: duas terras onde a sua vergonha pode ser devidamente enterrada, onde a luz lusitana pode finalmente fulgir, qual Estrela Polar no firmamento. Duas terras onde, espero, nenhum português habita (quanto muito, haverá um brasileiro que jogue à bola).
A primeira é a simpática localidade de Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch, ou se quiserem abreviar, apenas Llanfairpwllgwyngyll. Esta vila do País de Gales, com as suas 58 letras, nas quais se encontram várias consoantes seguidas, de acordo com a boa escola galesa, certamente que será um excelente porto de abrigo ao português farto de vulgaridades como Almada ou Valongo. O nome significa “igreja de Santa Maria no fundão do aveleiro branco perto de um redemoinho rápido e da Igreja de São Tisílio da gruta vermelha”. Isto é, não sabemos bem ao certo o que significa, mas certamente que significará qualquer coisa – nem que seja um sinal de perigo, pela sua extensão e pela proximidade que nos apercebemos que existe entre o redemoinho, duas igrejas e uma gruta colorida num tom vermelho que, suponho, só poderá ser sangue, tal a gravidade do étimo.
Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch tem uma estação de caminhos-de-ferro. Reza a lenda que a vila obteve o seu longo nome propositadamente, de forma a ser reconhecida como “a estação ferroviária com a placa mais extensa de todo o Reino Unido”; normalmente, os galeses nem são assim tão absurdamente idiotas. Turistas deslocam-se lá de propósito, de forma a serem fotografados junto à enorme placa, ou seja, é tudo parte dum embuste publicitário e de uma orquestração turística. Para além do mais, a vila divide-se em Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch-uchaf, ou “vila-de-cima”, e Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch-isaf, ou “vila-de-baixo”. Uma forma engenhosa de multiplicarem placas ainda mais extensas e mais apelativas.
Sei que Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch pode não agradar aos portugueses em busca de novas sensações; afinal, trata-se de uma pequena vila com 3000 habitantes e no mesmo continente que o nosso. “Não é grande mudança; para isso, mudava-me para Santa Marta de Penaguião ou, num desvario sem precedentes, até mesmo para Aldeia Nova de S. Bento”, protestam alguns descrentes. Pois bem, querem coisas mesmo exóticas e insólitas, mudanças radicais… então tomem lá com Taumatawhakatangihangakoauauotamateaturipukakapikimaungahoronukupokai-whenuakitanatahu. (Não tem hífen, mas foi preciso colocá-lo por motivos de formatação).
Ah, pois é, não há desculpas. Ou melhor, a única desculpa que existe é não conseguirem ler o nome da terra para onde se mudaram. É que, apesar de existirem mais vogais do que em Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch, o nome que mencionei não deixará de colocar muito boa gente sem fôlego.
Em rigor, Taumatawhakatangihangakoauauotamateaturipukakapikimaungahoronukupokai-whenuakitanatahu nem sequer é uma terra, é um monte. Um banal monte de 300 metros de altitude. Mas não vejo nenhum inconveniente em habitar-se no sopé de um pequeno monte, se pensarmos que o objectivo final é fugir o mais longe possível do último resquício português. Este monte é neo-zelandês, nos antípodas deste cantinho, logo, o mais afastado possível do nosso rectângulo. O nome significa, traduzido do maori indígena, “o cume da colina onde Tamatea, o homem de joelhos grandes, que desceu, escalou e engoliu montanhas, [para viajar pela terra], que é conhecido como comedor de terra, tocou flauta nasal para sua amada”.
Os maoris não são, portanto, homens sintéticos. Para um monte vulgar, prestam homenagem a um homem de joelhos grandes (uma espécie de Mantorras após uma vintena de operações e injecções), descrevem as suas actividades quotidianas (percorrer e depois deglutir acidentes geográficos), as suas preferências gastronómicas (enfardar porções de terra) e actividades lúdicas (tocar flauta nasal – nasal, atente-se bem) como serenata à sua gaja. Sim, porque isto de comer terra e percorrer locais acidentados não amacia nem o mais empedernido coração de gigante. E as mulheres apreciam, para além de grandes protuberâncias corporais (os joelhos, não esquecer), um pouco de sensibilidade musical. Tudo isto concretizado num nome dum monte, que, refira-se, deve ter a altura aproximada duma mera colina de Lisboa.
A placa identificativa que bordeja o monte também já é famosa, mas, ao contrário de Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch, Taumatawhakatangihangakoauauotamateaturipukakapikimaungahoronukupokai-whenuakitanatahu parece não ter tido origem em manobras comerciais e sim em tradições locais. É, oficialmente, o étimo topográfico mais extenso do mundo, com as suas 92 orgulhosas letras. Garantem-me que não há nenhum português por perto.
Portanto, forneci duas boas indicações como destino, dois sítios nada corriqueiros. Outros podiam ter sido sugeridos, mas, por restrições de espaço, deixo apenas estes dois. Refúgios quase perfeitos, onde a portugalidade poderá dar largas às suas qualidades e ambições. Por cá, curvamo-nos perante a insignificância de possuir um otorrinolaringologista anticonstitucionalissimamente colocado em Vila Real de Santo António. Agora, basta marcar o voo…e boa viagem!
(Fonte: Wikipedia)