quarta-feira, junho 30, 2010

Na Boa

Houve confusão no bairro social. Escondem-se as caras atrás de janelas partidas, espreitando as câmaras por entre as cortinas rasgadas e com um filho mestiço ao colo. Há medo de represálias externas ao bairro mas principalmente das internas. Bidões ardem na rua e animais vadios vagueiam por entre destroços ou lambem as suas partes baixas sem pudor das objectivas. Várias garrafas ou cacos delas coexistem com sacos de plástico rasgados no chão tornado esgoto, no qual crianças ranhosas brincam com triciclos de duas rodas, uma delas completamente careca. As placas de revestimento dos edifícios descosem-se das paredes rabiscadas, desnudando-se até ao estuque de baixa qualidade. Há gente de pele muito e mal tatuada. Duas dessas pessoas explicam o que se passou, entrecortando-se uma à outra sistematicamente. Um microfone leva esta gente ao descontrolo.
- ‘Távamos na boa, na boa mesmo, e veio a polícia…
- … a polícia começou a bater a torto e a direito, iá?
- E nós estávamos na boa, sempre em paz, a festejar…
- A polícia empurrou a minha avó das escadas abaixo, isso não se faz!
- … ‘távamos a festejar com som e bebida, sempre na boa, ‘távamos só a festejar…
- A minha avó já morreu há duas semanas, hã?!? Não se tratam mortos assim!
- ‘Távamos a festejar o quê, mesmo?
- E depois bateu na minha irmã grávida com um daqueles bastões muita grandes, daqueles que têm laser ou lá o que é, daqueles muita violentos que até aparecem no filme do ET ou lá o que é…
- Ó Vânia, o que é que’ távamos a curtir mesmo?
- A Guerra das Estrelas, assim é que é, a polícia começou a bater na minha irmã grávida com um bastão desses, desses que até zumbem, e zzz-zzz-pás!, fez a minha irmã rebentar as águas e o filho dela saiu disparado pela boca dela, uma cena horrível!
- Ó Vânia, távamos a curtir o quê afinal?
- E depois a polícia espezinhou o filho dela com botas biqueiras de aço com pitons de alumínio, daquelas que a polícia tem, e a minha irmã, na boa, hã?, a perguntar-lhes “isso não se faz nem a um cão” e, pronto, bem dito, bem feito, arrebentaram com a cabeça do cão do meu vizinho que estava a ganir, foi só um polícia à dentada que lhe fez aquilo, uma cena horrível, nunca pensei…
- Ó Vânia, então qual…
- F***-se ó Andreia, não me chateies, pá! Sei lá qual era a cena, o pessoal ‘tava na boa, é o que importa!
- Prontos, estávamos na boa, ali na rua junto ao café…
- E depois a minha irmã começou a citar os situacionistas internacionais e a falar do Clément Duval, na boa, hã?, e eles chamaram-lhe, posso dizer?, vou dizer, chamaram-lhe “p*ta” e “gorda estúpida” e “Júlia Pinheiro” e cenas que nem vou contar mais e espetaram-lhe uma bofetada com a parte de trás da mão com tanta força que até a minha outra irmã que estava no café a 200 metros ouviu, não ouviste, Andreia?
- Eu sou a tua prima, qual é o Vânia, já ‘tás taralhoca?
- Não ‘tava a falar contigo, pá. Foi ou não foi, Andreia?
- [a outra Andreia] Foi sim, até me vieram cair 3 dentes aos pés.
- Foi mem’ assim: a minha irmã com a boca cheia de sangue e sem dentes e com um aborto ainda foi buscar uma figura da Madre Teresa de Calcutá e cassettes de vídeo com o Sérgio Vieira de Mello e isso só fez a polícia perder ainda mais a paciência e eles sacaram de uma bazuca, ou lá o que era aquilo, e rebentaram com a minha casa, o meu prédio e mais dois prédios que ficaram logo a arder e se não fossem os meus vizinhos a mijar rapidamente para cima do fogo isto tinha sido uma tragédia. E depois a polícia destruiu todos os brinquedos do meu filho e do filho dele e do afilhado do filho do vizinho só com as mãos esquerdas, enquanto apalpavam com as mãos direitas e chamavam nomes à minha filha e à filha da filha dela, que ela diz que não é dela mas que tem os mesmos olhos e usa o piercing da mesma forma que ela e por isso acho que a filha é mesmo dela, seja lá quem ela for.
- E nós só estávamos ali na rua, na boa.
- Na boa, hã?, a beber umas cervejas com normalidade, discutindo se o PEC era ou não bom para a retoma económica, se o Nuno Rogeiro não devia deixar o Martim Cabral a jogar Risco sozinho, se Israel é ou não um erro histórico, qual a melhor fase do Monet, Manet ou lá como se chamava o sócio, cenas assim…pá, e de repente a polícia apareceu a arrear no meu irmão, que estava a andar de bicicleta enquanto lia o “Só” do António Nobre depois de um dia de trabalho na Sonae Imobiliária.
- Pá, mesmo de forma brutal, tipo wrestling, mas a sério… eu só vi dentes e ossos pelo ar… o irmão dela, o meu primo, ficou todo desfeito, eram mais de vinte ou trinta polícias a dar-lhe pontapés, socos, murros, caneladas, joelhadas, cotoveladas mais fortes que as do Bruno Alves, cabeçadas, uppercuts, fatalities, babalities, a magia do Sub-Zero, a dar-lhe com bastões e canos PVC e cadeiras e tudo o que viesse à mão… e o meu primo estava na boa… e amanhã vai ter de faltar ao trabalho.
- E ficou com a bina toda partida, ele que andou a juntar dinheiro durante quase 3 anos para comprar isto que era o seu sonho, ir de bina para a Sonae Imobiliária…
- Isso não se faz…
- Isso não se faz… os polícias são uns selvagens, não têm respeito, matam tudo que vêem à frente…
- Mataram-me os manjericos! Olharam para eles e tumba!, murcharam todos! Eu gastei todo o meu dinheiro que ganhei a limpar os instrumentos todos do S. Carlos, oboés e pianos de cauda e coisas assim, nestes manjericos e eles mataram-nos assim! Só com os olhos! Aquela gente é só ódio!
- E têm um arsenal que não se compara… são brutos e parecem que vieram para a guerra. E nós com livros, palavras de paz, símbolos de amor, castidade e austeridade não nos podemos defender.
- Nós estávamos na boa. Não sabemos de nada de mal. Não há cá droga, nem roubo, nem armas, nem fraude nem mesmo incesto… acho eu, pelo menos.
- Só havia uma pessoa má. Era o Albertino. Mas nós convertemo-lo e ele agora é muito religioso. Ele já não faz mal.
- Ele ‘tá limpo, eu juro. Agora já não anda para aí aos tiros como dantes, só dispara para o quintal das traseiras. Na boa.
- Ele ‘tá na boa.
- Iá, ‘távamos todos na boa. Isto não se faz. Olhem para nós como deve ser.
A polícia escusou-se a comentários. Lamentou-se da dificuldade em entrar naquele bairro. Desconheceu se lhes ameaçaram com palavras de filosofia, mas também não negou a ameaça pelo simples facto de desconhecer “que merda é essa, afinal”? Admitiu que teve cuidado para não provocar a surdez dos seus elementos e precaveu-os com protectores auditivos contra os gritos de ciganas esganiçadas e dos seus maridos armados com caçadeiras.
O bairro social quer voltar a estar “na boa”, como sempre reclama. No Verão, quando a Selecção for eliminada de competições internacionais, quando ninguém morre e quando estamos todos a banhos, o bairro social vai voltar a rebentar como uma bomba. Um ou dois detidos e um ou dois constituídos como arguidos, que serão polícias acusados de medidas demasiado violentas. E muito bem constituídos. É um crime fazer alguma coisa contra os crimimosos da base da nossa pirâmide social. Não se pode. Eles, coitados, não fazem nada de mal, apenas têm que libertar algumas frustrações como qualquer pessoa, da maneira que sabem e podem. Eles estão sempre na boa e nós, os outros, a maioria que foge do seu território demarcado, é que não compreendemos os seus códigos, a sua maneira de ser e os seus modos.

quarta-feira, junho 23, 2010

A Mão de Sebastião

A vida sexual de Sebastião corre sobre rodas. Vai tudo bem. Ir tudo bem é tão bom quanto impressionante nestes dias. E tudo o que era preciso estava afinal bem perto – era apenas ele mesmo.
Não era narcisismo. Era somente a sua mão predilecta. Pois é, a sua mão de estimação. A mesma com que ele agarra a tesoura, a caneta e a raquete. Fiel e dedicada. Ele e a sua mão nunca se chateiam. A mão de Sebastião não é esquisita. Não está cá com “agora não” e “vai com calma” e coisas do género. Pelo contrário, a mão de Sebastião é a que o instiga a desafiar os seus limites hormonais. E contenta-se com pouco, basta uma memória difusa de um decote ou uma mulher semi-nua num outdoor publicitário. A mão não quer perfumes nem roupas, quer acção. Quer aquilo que Sebastião quer e ainda mais. É a mão, essa aparentemente inofensiva mas secretamente pérfida construção de pele e dedos, que sussurra internamente ao Sebastião, “viste aquela gaja, viste?” e o desafia sem pudor “’bora ali à casa-de-banho fazer o que temos a fazer”.
E Sebastião, que remédio, vai. Fazer amor a três com a sua mão e o seu cérebro fotógrafo no conforto de um lavabo público de um centro comercial. Uma orgia singela mas poderosamente intensa. Sebastião deixa-se levar, deixa-se dominar pelos seus sentidos, torna-se num animal apenas focado num único objectivo: o prazer instantâneo. O cérebro espalha a gasolina e a mão ateia o fogo. Em dois minutos está tudo feito, os azulejos salpicados de um branco pegajoso e um alívio interior. Durante momentos sente-se o orgasmo a bater como uma droga aditiva. É mesmo uma droga aditiva. O ritual será repetido aqui ou noutro lugar, não tardará muito.
Não há corações partidos no mundo de Sebastião. Ele já os reprimiu do seu mundo. Eles só faziam bem aos psicólogos e psiquiatras e tornavam-lhe num ser depressivo e auto-destrutivo. Não, corações partidos é que não. Não valia a pena lutar se o custo da perda fosse muito elevado. Era mais seguro jogar pelo retorno certo. E então Sebastião largou o mundo real e apostou no seu próprio mundo, aquele que nunca o desiludia. Os seus olhos olhavam para o espelho e gostavam do que viam. A sua língua apreciava o que Sebastião saboreava. O nariz tinha o mesmo gosto olfactivo que Sebastião. Enfim, só Sebastião podia compreender Sebastião – e ele ficou feliz por perceber esta evidência a tempo.
Então, Sebastião devotou toda a sua pré-adolescência, adolescência, pós-adolescência e fase-aparentemente-madura-mas-apenas-e-só-de-aspecto a cuidar de si para si. Por si. Limitado a um espaço físico e mental que apenas o abrangia, recolhendo imagens exteriores para se excitar, consubstanciando a sua excitação e fechando o círculo, em exercícios constantes e estimulantes de auto-aprendizagem. E tudo com o auxílio da sua impagável mão. Não achava que este estilo de vida fosse humilhante; humilhante era andar aos caídos, suplicando pela mulher divina que nos presenteasse com aquilo que só nós sabemos como gostamos, sem nunca a encontrar. Ou, tão mau quanto isso, observar a sua imagem de divindade cair por terra quando finalmente encontramos essa mulher, com gestos ou palavras que nós nunca sonhámos. É que por vezes o cérebro vai com o coração e trai-nos. Mas quando o cérebro vai com a mão, a satisfação está garantida. Sem mais delongas, sem mais explicações. A mão dá-lhe o que ele precisa e isso já é muito bom. É mesmo muito bom.
É a mão dele que agita freneticamente o seu sexo uma, duas, três, quatro, cinco, mais vezes por dia, louca de desejo, sempre pronta a acariciar, a apertar e a limpar os restos, nunca dando parte de fraca. Nenhum reumatismo, nenhuma artrite. Sempre para cima e para baixo, marcando o ritmo, açambarcando a batuta, coisa jamais vista.
Sebastião vive feliz, colhendo os onanismos por ele próprio semeados. Ele sabe que a sua mão sabe melhor o que ele quer que qualquer outra mulher. Só a sua mão tem aquele jeitinho especial de agarrar, de satisfazer, de manipular. Enfim, é uma mão; manipular é a sua especialidade. Mas nenhuma outra mão, nem a sua outra mão, conseguem exprimir assim tão bem semelhantes qualidades. “Esta mão caiu-me do céu”, agradece Sebastião.
Sebastião sem a sua mão não sobreviveria. Teria de ser reformatado. Mas isso dói. Custa reiniciar. “Deixa-te desses pensamentos, lembras-te da tua professora de matemática, aquela que tinha um grande par de mamas e andava sempre de saia curta? Queres relembrar-te dela, como ela estaria agora, hã? Queres, queres?”. Era a sua mão. Vai-te a ela, Sebastião.