domingo, fevereiro 28, 2010

Eles Vieram e Mataram o Tio Patinhas

Eles vieram e mataram o Tio Patinhas. Primeiro entraram os consultores. Questões relacionadas com o fundo de maneio levaram à conversão das notas e moedas da famosa caixa forte em títulos de dívida e fundos de investimento. Também havia que tornar o imobilizado mais eficiente do ponto de vista da gestão de stock. Nada de mergulhos nas moedas, o dinheiro tem de estar noutro lado qualquer a fazer mais dinheiro. Tanta ineficiência por suposto amor à materialidade da riqueza tinha conduzido o magnata ao seu próprio desaparecimento. Ao saber das notícias, o velho ficou em fanicos. Mas só depois vieram os outros, auditores, gestores de topo, free lancers. O pior ainda estava para vir. A moeda número um tinha atingido o fim da sua vida útil. Era já um passivo, disseram eles. Não se soubera adaptar às vicissitudes modernas e ficara estática no tempo, deflacionada e opaca. Estava sobejamente amortizada, desesperando pelo goodwill. Até a Maga Patalógika já não queria essa moeda caída em desgraça, preferindo antes investir em activos mais atractivos em mercados ainda pouco consolidados. E as aventuras por esse mundo fora, à procura de tesouros maravilhosos? Bem podia refrear os ânimos. Sejamos claros: não há satélite ou radar que tenha deixado alguma coisa por descobrir. As oportunidades estão na China, na Índia, no Brasil, Angola ou Dubai. Mas o Patacôncio já por lá andou. E o Mac Mónei por lá anda. Em videoconferências à escala mundial eles transaccionam papel e códigos. Teclam em PDAs de forma incessante. Fecham dezenas de negócios por dia sem sair do sítio. Já não há tribos misteriosas em África, nem safiras em montanhas inóspitas, muito menos baús de piratas num qualquer navio perdido no fundo do Mar das Caraíbas. E já ninguém detém largos conglomerados industriais integrados vertical e horizontalmente. Não houvera uma estratégia de enfoque. O valor das acções tinha-se esfumado por entre tanta dispersão. As autoridades económicas já não achavam graça aos monopólios. As associações de consumidores protestavam muito, em directo nos meios de comunicação. Nem o próprio jogo Monopoly subsistira, pois era obscenamente incorrecto nos dias actuais. Patinhas não aproveitara as OPAs e a onda de dispersão em bolsa da última década e agora era tarde demais. Tinha sido esquecido pelo público, ignorado pelos clientes, ostracizado pelos fornecedores. Mesmo os Metralhas já eram mais bem vistos pela sociedade do que ele, com aquelas máscaras tão góticas, tão Tokyo Hotel, aquela barba por fazer tão ubersexual, tão George Clooney meets Beckham, aquela roupa numerada tão Springfield em saldos. E, ainda por cima, os Metralhas estavam bem na vida, sempre na TV, com uma actividade fantástica no Twitter, de vez em quando apanhados em debates públicos e com um notável sucesso empresarial no sector dos conteúdos. Patinhas estava out of date, esmagado pela sua enorme obsolescência. Vergado por estas evidências cruéis, o vetusto pato ainda pensou que teria vida como personagem de banda-desenhada. Mas nem isso. Eles explicaram. O Donald até pode ser reinventado como um jovem urbano de classe média que passa os dias ao computador, o Huguinho, Zezinho e Luisinho podem formar uma boys band do hip-hop, o Gastão pode tornar-se gay, a Margarida torna-se numa relações públicas de sucesso, o Peninha num budista vegetariano, o Prof. Pardal pode ir para o MIT, o Zé Carioca quase de certeza vai ser envolvido num escândalo sexual, o Pateta pode ir para a MTV, o Mickey fica porque é um rato e a Minie talvez não fique porque é uma rata e isso pode gerar mal-entendidos. Para o Patinhas é que não havia lugar. Velho e rezingão, não se encaixava no papel afectivo dos avós hoje em dia. Rico e malvado, já não podia preencher as primeiras páginas. Citaram-lhe Black Eyed Peas, “I’m so 2008, you’re so 2 thousand and late”, só que no caso do Patinhas ele estava mesmo muito “late” e esta era uma reunião à qual não se podia chegar atrasado: a reunião com o tempo. E não havia hipóteses. Patinhas não tinha feitio para se vestir de amarelo e fazer filmes japoneses aos saltos e com espadas. Patinhas nem sequer tentava viver vistosamente, continuava a parecer um franciscano. Por isso mataram o Tio Patinhas. E se é certo que morreu tarde considerando a sua vida da sua personagem (nasceu no último quartel do século XIX), a personagem propriamente dita nasceu apenas em 1947. E morreu à volta dos seus 60 anos. Os heróis morrem cedo nos dias de hoje. Necessitam urgentemente de ser reciclados. Um herói fora do seu tempo parece um adicto à heroína – degrada-se progressivamente numa espiral de decadência, até que um dia já não aparece mais naquele banquinho onde ressacava todas as manhãs.
Apesar de tudo, os consultores receberam um bom fee e tornaram-se executive officers da Disney passado pouco tempo.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Engarrafados

Aniceto parece uma pessoa como qualquer outra. Mas Aniceto, como alguns outros, possui uma particularidade: vive a sua vida no troço da A1 entre Alverca e Sacavém. Literalmente.
- Arranjei um emprego em Lisboa em 1992. Ainda aqui estou, no viaduto do Rio Trancão – desabafa-nos, resignado, agarrado ao volante, com a esposa a fazer tricot ao seu lado. “Resignação” é um substantivo que tem acompanhado Aniceto ao longo destes anos. E pouco mais lhe sobra, para além da companhia da rádio e da sua família.
- No primeiro dia, o chefe compreendeu o meu atraso, que ele também vivia em Meleças e sabia como era isto do trânsito. No segundo dia, recomendou-me que viesse de comboio, que era o que ele fazia. “Mas como, chefe, se ainda nem cheguei à fábrica da cerveja desde ontem?”, disse-lhe eu. Mas ele era uma grande pessoa e entendeu a minha situação. Isto até 2004. Aí perdeu a paciência e despediu-me com justa causa. Lembro-me bem desse dia, foi precisamente o dia em que finalmente passei Santa Iria da Azóia.
Muita gente diz que faz do automóvel a sua vida. Aniceto fá-lo não por opção, mas porque o engarrafamento é interminável. Os automóveis não se mexiam durante semanas a fio e isso permitiu a Aniceto desenvolver afinidades com os seus comparsas atolados. O Homem, uma vez mais, adaptou-se às circunstâncias. Algumas das mais importantes fases da vida de Aniceto foram passadas no seu automóvel, um Opel Kadett de 1986.
- A minha sorte foi ter trazido a minha mulher em 1992. Senão o casamento já tinha acabado. As minhas duas filhas nasceram lá atrás – refere Aniceto, apontando para o banco traseiro da sua viatura. E prossegue – A Stefani Micaela nasceu de parto natural em 1995 e a Jessica Vânia em 1999. A Jessica foi mais complicado. Estávamos a passar a subida de Vialonga, lembro-me como se fosse hoje. Estava a dar Rui Veloso na Rádio Renascença com o Paulino Coelho no programa da manhã. 1999 estava a ser um bom ano, muito movimentado, daquelas alturas em que os condutores têm de ter os olhos bem abertos: de Junho a Setembro tínhamos andado cerca de 800 metros, e a subir!, vejam bem, um abuso completo. Então, nesse dia, para refrear os ânimos, a polícia autorizou um protesto em marcha lenta de um grupo de travestis reformados. Foi quando rebentaram as águas à Ludovica, a minha mulher. Ela já tinha experiência de partos no automóvel, mas aquilo estava a ser difícil. Teve de ser com recurso a cesariana. O que nos valeu, neste tempo todo, foi estar aqui a ambulância mesmo ao lado – confidencia Aniceto, indicando a ambulância que estava ao lado. Aniceto recorda-se que a ambulância está par a par consigo desde o dia 1 de Outubro de 1998, “mais semana, menos semana”, e dá graças a Deus por tal facto.
Dentro dessa ambulância, também se pode falar em resignação. Entrada no troço da A1 no antigo nó do Carregado no longínquo dia 6 de Novembro de 1993 com uma urgência para o Hospital Santa Maria, a ambulância ainda não chegou ao destino. A urgência, um operário da construção civil com graves queimaduras de 1º grau, tomou a forma de cinzas e jaz no tablier lado a lado com um cinzeiro e uma figura de São Cristóvão, isto já desde 2001. Ou 2002.
- Os dias são todos iguais – constata Ramiro, o bisonho bombeiro ao volante – Saímos lá para fora para esticar os pés, ouvimos rádio, vemos os aviões a passar e sonhamos… Sonhamos com o dia em que teremos asas para voar e sair daqui para fora. Ao princípio buzinávamos. Mas depois deixámo-nos disso. Já se passaram quase dez anos desde que a minha buzina deixou de funcionar mas ainda a ouço, todos os dias. Não sai da minha cabeça.
Ramiro também possui uma experiência ímpar. Teoricamente, Ramiro já devia estar reformado desde 2006. Mas ainda não conseguiu chegar aos balcões da Segurança Social e reclamar os seus direitos. Contudo, é dos mais movimentados do grupo de condutores retido neste inferno de Auto-Estrada.
- Olhe, eu já presenciei quase três dezenas de suicídios. Aquele Ford Escort ali da berma – e aponta-nos o veículo – era de uma família benfiquista que se passou com os 7-0 de Vigo. Mataram-se todos com inalação do tubo de escape. E havia de ver a festa que fizeram nos 6-3… aí foi um sportinguista que se matou, ao meter-se debaixo daquele camião TIR que está ali a 100 metros… foi doloroso, demorou 3 meses a morrer completamente. Foi esmagado pouco a pouco. Se for ver, ainda há restos da roupa dele nos pneus do TIR. Depois há as situações pontuais do dia-a-dia: fornecer comprimidos para a gripe, apagar fogos nos motores devido ao esforço dos mesmos, desencarcerar pessoal que se entala nas portas, enfim, o que vale é que vim bem equipado para a viagem.
E o que espera Ramiro daqui para a frente?
- Olhe, gostava de ver Lisboa, deve ser uma cidade diferente. Daqui a um ano, mais coisa, menos coisa, hei-de lá chegar. E no último mês já consegui vislumbrar a 2ª Circular lá ao fundo, com os meus binóculos. Acho que o mundo deve ter mudado muito. Por exemplo, agora há uma coisa chamada “telemóvel”, que, se calhar, nos tinha facilitado a vida nestes últimos anos; quando entrei nesta Auto-Estrada ainda não havia nada disso. E ouvi falar de um programa com a Júlia Pinheiro que dizem que foi um espectáculo, eu gosto muito da Júlia, é uma boazona daquela televisão nova, a SIC.
Não quisemos perturbar os doces sonhos que ainda fazem Ramiro lutar pela vida. Voltámo-nos para Aniceto e perguntámos-lhe o que fazia no dia-a-dia.
- Bem, não levo a filhas para a escola, não é? A Stefani está com um professor que está atascado perto de Vale Figueira e a Jessica perdeu o seu professor anteontem, que morreu desidratado no seu Audi A4, ali na zona do Forte da Casa. Foi pena, mas os mantimentos não lhe chegaram a tempo. Vamos andando por aí junto aos rails, trocando contactos e partilhando histórias ao luar, olhando o rio, comendo e bebendo com a ajuda dos populares e do pessoal que circula no sentido contrário, vamos jogando às cartas, fazendo amor no banco de trás quando as miúdas já dormem, andamos um ou dois centímetros por dia, é assim, vamos vivendo.
E sonhos, que sonhos poderão estes homens ter ao fim destes anos de dolente espera estática? Que objectivos para um resto de vida preferencialmente longe das grandes aglomerações de trânsito?
- Quero dormir numa cama – atira Aniceto – já não posso com dores na coluna. E ser sucedido no meu novo emprego. O meu chefe é aquele senhor da Hiace creme que está na fila da esquerda, ao quilómetro 12. Pelo menos, este não me vai despedir por chegar atrasado.
- Para além de ver Lisboa com os meus olhos… eu sei lá – despacha Ramiro – Eu pelo menos durmo na maca, devo ser dos poucos aqui que vai dormindo bem. Sexo dentro do carro já não me atrai como dantes. Aliás, eu já nem sei bem o que me atrai. São dezassete anos para fazer quase vinte quilómetros, percebe? Uma pessoa acaba por perder a vontade.
Não se nota nos nossos homens uma ponta de revolta. “Eu já sabia que ia ser mau, devia ter saído mais cedo, mas as urgências não escolhem horas”, lamenta-se Ramiro. “Se fosse pela Estrada Nacional se calhar ainda não tinha passado pelo Sobralinho, não me posso queixar”, congratula-se Aniceto. Fazem-se amigos, muda-se de posição, buzina-se aqui e ali, mata-se o tempo como se pode e a paciência esvai-se como areia numa ampulheta até já não haver vontade para mais. Aqui já ninguém bufa. Aqui já ninguém insulta. Está-se assim, parado, e andar já não é um objectivo. O marasmo tornou-se numa forma de vida, um elo socializante entre as centenas de automobilistas engarrafados. O conformismo uma filosofia que se aceita sem nunca pisar o acelerador. Aniceto exprime o sentimento: “Espero ter trocos para pagar às meninas na portagem, é que eu ainda trabalho em escudos e já ouvi dizer que agora há uma nova moeda, o ECU. Ah, o Euro, pois é. Senão tenho de mandar vir o meu primo de Alenquer para pagar-me a portagem e isso é capaz de demorar mais uns vinte e tal anos e o meu primo tem a hemodiálise para fazer, é capaz de ser um bocado chato”.
Não é um bocado, Aniceto. É mesmo totalmente chato. Mas o aborrecimento até já lhes é divertido. Não para nós, simples repórteres. Nós subimos ao helicóptero e saímos daquele lugar macabro, onde tanta gente se mexe durante anos sem nunca sair do mesmo lugar, voando rumo à civilização.