sexta-feira, setembro 26, 2008

Justiça Popular

Mesmo que mais de trinta anos tenham passado e as situações não sejam comparáveis, reconheço que a UDP até tinha razão. Hoje, o que está a faltar é mais justiça popular, com toda a carga negativa que possamos associar ao povo, essa massa indistinta de indivíduos de mau-aspecto, analfabetos, rudes e retrógrados. Estamos fartos de falinhas mansas. Já não podemos ouvir falar de “grupos de jovens” armados a infernizar os subúrbios. Não queremos mais veredictos assépticos. Não queremos mais saber dos direitos dos réus. Queremos devassar os delinquentes de uma maneira cabalmente dissuasora, pronto. E queremos mexer os nossos cus de uma forma mais divertida que andar em passadeiras rolantes nos ginásios. Há algo mais divertido que o linchamento público, sendo nós os linchadores?
Nem poderíamos conceber uma outra visão para a justiça popular. Quando falamos em justiça popular, pensamos logo em milícias de homens e mulheres esgadanhados, aos gritos e urros, de preferência com enxada na mão e pedras no bolso, erguendo bastões ao alto ou tochas rudimentares, partindo os ossos a um indefeso toxicodependente que por acaso já andava a chatear uma vila qualquer no Norte. E se a televisão estiver por perto, tanto melhor, ainda se arranca o escalpe do drogado para mostrar à menina da cidade.
Portanto, o que está a faltar é redimensionar o conceito da justiça popular: do campo para a cidade, do agarrado para os grandes vigaristas e carjackers. Punições a sério para crimes a sério – e com isto, excluo dos braços da justiça popular comportamentos e opiniões divergentes, que também não quero, por exemplo, massacrar benfiquistas apenas por serem do clube que são (e depois gozávamos com quem?). Em resumo, justiça popular para os traficantes, assassinos, burlões e para a Júlia Pinheiro (esse dia há-de chegar).
Pensemos em grande, pelo menos desta vez. Tornaríamos tudo muito mais prático e eficaz: se há um suspeito de crime, em vez de pô-lo em prisão domiciliária ou sob qualquer outro expediente de amenização de culpa, é atribuir-lhe logo a culpa em duas ou três expressões proferidas em tom mais ríspido (“Foste tu, car***o!, que me roubaste a loja!”; “Gatuno!”; “Agora é que te vou aos cornos!”, por exemplo). Depois, era colocar o meliante na maior praça da localidade, cercar o perímetro de arame farpado para evitar a sua fuga, convidar as vítimas do crime mais os seus familiares e reformados que se queiram juntar à festa, dotá-los de instrumentos de agressão de baixo custo (ramos de árvores, tubos de PVC da construção civil, garrafas de cerveja de litro,…) e deixar que a fúria natural e vingativa presente nos genes humanos fizesse o resto. No fim, os varredores municipais tratariam dos restos mortais do suposto culpado, ou o canil municipal viria recolher o farrapo humano que ainda restasse. A justiça estaria feita, a sede de vingança satisfeita.
Há bastantes pontos positivos nesta “grande justiça popular”: não se paga a advogados; não se sobrecarregam os estabelecimentos prisionais; não se perde tempo; dão-se castigos exemplares; sendo uma justiça “do povo”, assegura-se que a solução agrada à maioria; a fúria incontida observada no trânsito pode ficar reservada para estes eventos e com isso beneficiar os números da sinistralidade rodoviária; os reformados veriam um novo sentido para a sua existência, que seria o de torturar um assaltante de ourivesarias sem complexos nem temores; etc.. Até fico a pensar que ainda só não se avançou para esta forma de justiça porque o lóbi dos advogados é realmente muito forte. E se calhar por causa da invocação dos Direitos Humanos, algo realmente irritante nestes casos. Talvez por isso.
Dir-me-ão, “mas isso subverte as normas instituídas em qualquer Estado de Direito”. Mas… estamos num Estado de Direito? – esse argumento de subversão cai logo por terra pela falácia no seu pressuposto inicial.
Dir-me-ão, “mas isso é completamente injusto”. Mas… a justiça tem sido justa? Com certeza, não ficaríamos pior.
Dir-me-ão, “mas isso abrirá uma caça à minoria, seria a nova Inquisição”. Mas… e que tal pensarmos na maioria que é o Povão, para variar? Ele lá sabe o que é bom para ele, na sua cegueira inculta de “olho por olho, dente por dente”. E a Inquisição não era bonita? Com todas aquelas fogueirinhas giríssimas e mais todo o folclore da procissão… e, além do mais, serve de base para sketches de comédia inesquecíveis, os Monty Python que o digam.
Dir-me-ão, “mas isso é profundamente fascista, estalinista, etc., o “ista” que se quiser, e é aberrante”. Mas… não andamos todos excitados com as aberrações diárias que vemos? Esta seria apenas mais uma, mas justa, por definição. E quase todos nós temos o sonho secreto de ser um pequeno Hitler ou Estaline e exercer o poder discricionariamente, apenas existe quem conserve essas ambições lá no fundo do armário ou quem seja um mero animalzinho de estimação domesticado.
Por mim, força. Avancem com a popularização da justiça popular, ganhamos todos com isso. Menos os criminosos, claro. Também já está na altura de eles começarem a perder, como nos filmes.

domingo, setembro 14, 2008

O Político Cadáver

Político sagaz, venceu as eleições na Eslovénia com o seu quê de espanto. Nenhuma sondagem o indicava como favorito e vencer com maioria absoluta tomou todos de surpresa. O ministro cessante, que aparecia na linha da frente para ser reconduzido ao novo mandato, deu a mão à palmatória da forma mais desportiva possível, bebendo água com gás para ajudar a engolir o enorme sapo.

Por feliz coincidência temporal, pouco tempo depois da sua eleição, a Eslovénia sucedeu a Portugal na Presidência do Conselho Europeu (PCE). O ministro aproveitou esta ocasião para espalhar o seu charme nos mais variados gabinetes desta Europa, com o seu estilo peculiar. Ninguém ficou indiferente. Especialmente os portugueses, que lhe endossaram as pastas e dossiers e utilizaram esta proximidade para se tornarem o mais íntimos possíveis de tão cativante personalidade. Nuno Severiano Teixeira mal conseguiu calar o seu desejo.

A habitual bonomia de Luís Amado fez com que a sua abordagem fosse mais discreta. Ainda assim, o seu convite não passou em claro. O mui requisitado esloveno mal conseguiu conter o seu pasmo perante as insinuações lusas.

Mas não se pense que Portugal foi o único a deixar-se levar pelo canto de sereia do esloveno. O próprio Sarkozy, presidente do país que sucedeu à Eslovénia na PCE, não evitou deixar bem vincada a sua amizade com o notável esloveno, mesmo considerando a sua recente e mediática relação com a ex-modelo Bruni. Esta, aliás, ficou alegadamente muito desgostosa e dedicou-se à música como escape para a sua frustração, com os resultados conhecidos. Sarkozy não se coibiu dos sorrisos e abraços quando acompanhado pelo esloveno de aparência sui generis.

Mesmo a fria Merkel sorriu como jamais visto quando surgia ladeada pelo esloveno em aparições públicas. Tal era a folia, que muitos protocolos ameaçaram ser rompidos, valendo em última instância a presença igualmente feliz e apaziguadora do Presidente da Comissão, o conhecido José Barroso… que também não deixou de lançar mais achas para a fogueira mística do apaixonante esloveno.

O sexo feminino, aliás, cai aos pés deste verdadeiro fenómeno de popularidade. O fascínio perpassa nacionalidades e idades, como podemos ver neste último retrato: a formalidade está lá, as bandeiras e as estrelinhas também, não faltando duas belas secretárias de coração desfeito pelo desassombrado esloveno.

Todos lhe auguram uma carreira brilhante. Que, aliás, já começa a fazer escola. Rumores que nos chegam contam-nos que o Ministro de Defesa de Malta está a pensar mumificar-se um ano antes de concorrer ao cargo máximo do seu país, de forma a ganhar o balanço necessário para conquistar o seu eleitorado. E até uma deputada da Lituânia, numa tentativa de evitar a mais que certa eleição de José Couceiro, já fez uma operação plástica inversa, ou seja, em vez de retirar as rugas e papos, aumentou as rugas e papos e pediu conselhos ao Michael Jackson sobre como retocar o nariz – tendo já subido cerca de 10% nas últimas sondagens.
O corolário que todos os analistas retiram destes últimos acontecimentos é muito simples: o povo apercebeu-se que um político bom é um político morto.

Olá Gatinha

As escolas preparatórias, secundárias, 2+3 ou C+S, como quiserem chamá-las, constituem um universo muito peculiar dentro do próprio universo. Ou constituíam, não posso falar da actualidade das escolas públicas com a revolução tecnológica e todas as novas potencialidades de ocupação de tempo que isso trouxe aos jovens de hoje. É claro que quando andávamos por lá a areia da ampulheta tardava a escorrer – que é como quem diz, nunca mais nos ejaculávamos, nunca mais tínhamos um bigodinho ou até mesmo borbulhas que nos pudessem guindar ao patamar mínimo da adolescência a partir do qual conquistaríamos as meninas cujas maminhas se começavam a fazer notar. Todavia, olhando para trás, todo aquele tempo que parecia infindável de mochila às costas e de leitinho com chocolate a meio da manhã ou da tarde foi fugaz como um relâmpago, embora pleno de historietas e personagens. Todos temos algo desse período que teima a ficar marcado indelevelmente nos nossos livros de memórias.
Se analisarmos bem, as personagens com quem convivemos têm muito de intrigante. Naquele tempo, éramos todos mais ou menos iguais: mais um casaco fixe ou não, um bocado mais gordos ou não, mas todos relativamente semelhantes, com os mesmos sonhos e esperanças. Hoje, se ainda mantivermos o rasto de alguns, vemos quão diferentes foram os caminhos que tomámos. E algures na linha do tempo, contudo, partilhámos espaços e tempos de profunda folia, de aventura desbragada ou de estaladas e pontapés a correr à volta do pavilhão. Esse tempo não deixou ninguém indiferente. Pelo menos, os que ainda têm acessos de nostálgica retrospectiva.
Se nos tivessem dito o que o futuro nos reservaria, teríamos ficado perplexos com quase tudo. Uns revelaram-se muito mais bem sucedidos na vida do que tudo faria supor ao tempo, de tão medianas que eram as suas notas; a estrela juvenil da altura teve uma prole de filhos prematuramente e agora mora num bairro social a viver de expedientes e a alcoolizar-se na taberna da esquina; a vedeta do futebol acabou por nunca singrar, nem no desporto, nem em nada de especial; o gajo que era tão tímido é um conceituado relações públicas que aparece nas revistas; o totó de eleição tornou-se um manequim famoso e actor de telenovela; o grande cérebro da turma é agora um obscuro funcionário público, maníaco-depressivo e constantemente desmotivado; a tipa boazona que nos parecia inalcançável está gorda que nem um pote a trabalhar numa loja de pronto-a-vestir; eu tornei-me no escritor que a professora de português suspeitou que eu seria, com o sucesso que, suponho, ela também sonhou que eu teria; e o tipo enfezado com leucemia provavelmente morreu mesmo. Surpresas houve muitas, todavia.
Seria impossível reunir todo este bando tão díspar outra vez. Pensar que houve uma altura onde fomos todos colocados juntos… onde nos falávamos com uma proximidade hoje impensável, sem saber que nos iríamos separar irreconciliavelmente. Partilhámos – eis a magia das escolas. Mas hoje nem nos atrevemos falar com o nosso ex-colega carteiro, ou temos vergonha de passar ao lado da nossa ex-colega que tem um todo-o-terreno para ir ao supermercado, ou orgulhamo-nos de dizer “este ministro andou comigo na escola”, embora secretamente reconhecendo que ele dificilmente faria o esforço de nos cumprimentar se ainda nos reconhecesse de tão velhos e insignificantes que estamos. E se pensarmos em namoradas, ou algo equivalente, então somos capazes de bater com o queixo no chão.
Nem falo daqueles trastes, que já eram uns verdadeiros trastes à época e sem grandes hipóteses de salvação, com quem trocámos uns linguados sabendo de antemão que só estávamos a passar o tempo numa estéril afirmação de masculinidade – que tudo aquilo seria para esquecer rapidamente, não só por mim, mas especialmente por todos aqueles que viessem a saber do sucedido, para que eu não fosse muito zombado. Vai daí, as tipas até se tornaram em algo decente, o que seria incrível, mas, de qualquer forma, essas nunca marcaram de forma decisiva, tal foi o esforço que fiz para as olvidar.
A gaja que me abriu as pernas pela primeira vez e que me deixou sugar os seus tenros e sinceros mamilos, naquilo que foi um feito apenas comparável à dobragem do Cabo das Tormentas, é hoje uma memória paralisada no tempo. Parece uma espécie de Jim Morrison ou Kurt Cobain, dos quais só retemos a imagem da sua juventude. Tal como eles, ela nunca passou à velhice. Para mim, ela ficou eternamente juvenil. Não sei o que é feito dela ao tempo de hoje. Se calhar, está melhor do que aquilo que estava. Se calhar, está muito pior. Não guardei nenhum contacto, nenhuma referência, nenhum cheiro particular, tenho apenas uns rabiscos no velhinho diário e uma ténue fotografia mental que se vai dissipando progressivamente e a qual surge de quando em vez, nestes assomos passadistas. Não sei mesmo nada. E se calhar é melhor não saber.
Talvez já desconfiasse do carácter meramente temporário dela na minha vida. Acertei neste caso, pelo menos. É verdade que os miúdos são bastante estúpidos, especialmente os rapazes, mas não éramos anjinhos. Lá no fundo, tínhamos uma noção rudimentar do potencial das pessoas que de vez em quando batia certo. E aquela rapariga, à altura, saiu tão rapidamente quanto entrou na minha “shortlist”: nunca acreditei seriamente no seu potencial. Nunca a vi como alguém a longo-prazo, como via os meus grandes amigos que hoje também não sei onde estão. Eu só queria dizer a alguém e sentir o que era ter estado com ela. Nunca me preocupei em saber o que eu significava para ela. Isso não interessava. Talvez ainda hoje não interesse. Quis aproveitar-me dela, sem contudo prever que agora, passados estes anos, estaria para aqui a reflectir sobre ela.
Hoje, creio, não poderíamos estar juntos na mesma cama outra vez. Já nos carregámos de conceitos, de filtros e de experiências que nos distanciaram. Apenas por acaso cósmico nos poderíamos sentir atraídos outra vez. Pessoalmente, tenho a convicção que ela terá um bigode ou que terá escalado à classe alta das intocáveis – acredito piamente que nada ficou igual, que nada nos faria tropeçar um no outro como dantes, naquela escola em que dividíamos os passos. Acho que seríamos capazes de nos embaraçar se nos víssemos por aí, na rua. Podia ser que virássemos a cara e fingíssemos não ver, até podia calhar que falássemos durante cinco minutos, mas depois iríamos à nossa vida. Esquecer-nos-íamos novamente ao virar da esquina.
Mas em tempos as nossas vidas estiveram coladas. É impressionante como nos descolámos. Desabrochámo-nos mutuamente para a vida e depois não quisemos saber mais de nós. São assim as coisas. Só temos que confiar que evoluímos e que tudo fez parte dum processo de aprendizagem onde os mais fortes sobreviveram e os outros por lá ficaram, vegetando na fila de trás à espera do toque de saída.

segunda-feira, setembro 01, 2008