quarta-feira, maio 30, 2007

Bom Dia

- Cá estou eu, Óscar Alhinho, para mais um programa da manhã. Como está o trânsito, Ilda Masnãofoi?
- Bom dia. É o caos total.
- Caos total?
- Sim, caos total.
- Mas… está assim tão mau? Estás aonde?
- Não sei bem. Vendaram-me os olhos e ataram-me as mãos, meteram-me o microfone à frente e deixaram-me com os auscultadores. Estou completamente despida, repito, estou completamente despida. Todavia, devo alertar que não estou com frio. Prometo regressar às minhas condições térmicas dentro de alguns minutos, assim que trouxerem o termómetro.
- Bem, mas ó Ilda… o que vem a ser isso?
- É uma violação em grupo. Esteve um russo em cima de mim mesmo agora… ouço algumas movimentações… penso ser um africano o senhor que se segue… isto é um caos. Já não há respeito.
- Bem, vamos a outro ponto da cidade… Bernardo Lássefoi, como vão as coisas?
- Vão bem. Estou no helicóptero a sobrevoar os principais acessos à cidade. O pessoal dos helicópteros é um fartote, fartamo-nos de cuspir lá para baixo. É só rir.
- E o trânsito, Bernardo?
- Quero lá saber do trânsito, Óscar!... Estou a divertir-me imenso, mexendo nestes botões. Mas parece estar mau.
- Está mau, é verdade, este é o ponto de situação do trânsito. O trânsito está mau. Obrigado, Bernardo. Vamos já lançar a pergunta da manhã para o fórum seguinte - o que é pior: língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani? Liguem já para o 808 777 444 111. Para já, aqui fica o novo single da Banda Filarmónica de São Gião do Vouga, intitulado “Língua de Vaca Assada É do Melhor”.

- Temos o primeiro ouvinte para o fórum… como se chama?
- Eu não tenho nome. A sociedade tirou-me o nome. A sociedade tirou-me tudo.
- Hã… Pois… O que é pior? Língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani?
- A questão não é essa, Óscar. Já leste Matthias Jiranek ou qualquer autor da escola kankanditrista? Tu estás muito ao lado do cerne da questão, Óscar! Isto é tudo uma mentira! A realidade não existe! Tu não és eu e eu não sou tu e tu nem sequer chegas a ser tu e ele definitivamente que não sou eu nem está perto de ser tu como tu pensas, Óscar, e, no fim da linha do tempo, ninguém é tudo e nós não seremos qualquer coisa! Nós não somos nós, nós estamos noutro lado, num vazio transdimensional paralelo. Este programa não existe segundo a lógica thorstiniana e rantanplanística descrita por Tudor & Filhos no seu ensaio épico sobre mutilações de mamutes em ambientes tropicais! Nós precisamos de ser mutilados física e psicologicamente, Óscar! Precisamos de ser perversos antes de sermos pervertidos por esta sociedade, Óscar!
- Está bem, Sr.. Mas responda à pergunta e não deprima os nossos ouvintes, por favor…
- Mas qual depressão? A depressão não existe! É um conceito ultrapassado! Quanto muito existe uma transfiguração da percepção onírica que me percorre a espinha dorsal e que…
- Ohhhh! Que pena! Este simpático senhor foi abaixo… sem responder à pergunta. Sim, a realidade é tramada mas nós não queremos saber de conversas fiadas para explicar as suas frustrações… nós queremos respostas! Temos mais um ouvinte. Como se chama?
- Eu tenho a rapariga.
- Sim? Língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani?
- Eu quero entregar a rapariga.
- Sim… entrega lá a rapariga. Mas por favor responda: língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani?
- Eu não quero esta rapariga. Quero outra. Outra ainda mais nova. Mais loura.
- Bem, parece que estou a falar com um raptor pedófilo, certo?
- Correcto.
- A rapariga está bem?
- Afirmativo.
- Você quer trocar esta rapariga por outra?
- Efectivamente.
- E o que é pior:
língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani?
- Você não está a perceber, eu começo-me a enervar e depois…
- Nós não queremos pessoas nervosas, sr. raptor pedófilo. Sr. raptor pedófilo? Olha… foi abaixo…. Estamos com azar, ainda ninguém respondeu à pergunta. Vamos ouvir as previsões meteorológicas enquanto aguardamos por uma resposta que tarda em chegar. De permeio, eis o som que está a colocar toda a Europa de Leste em polvorosa: o duo hermafrodita Caracolzein a cantar uma versão dos Rammstein à cappella. Recorde-se que este duo foi, até à semana passada, constituído por Björn e Anna, mas agora Björn é Utte e Anna é Christopher da cintura para baixo e Rubens Barrichello da cintura para cima. Espectacular, como só eles sabem.

- Como está o tempo, Zélia Aversetehavias?
- Vento moderado de leste de manhã e vento forte de noroeste com o decorrer do dia nas regiões altas a norte do cabo Carvoeiro, com previsão de ocorrência de aguaceiros nas regiões altas, mas com abertas para o fim da tarde nas regiões altas. Temperatura agradável para a época nas regiões altas, com a mínima a situar-se nos 9 graus e a máxima nos 21. É provável a formação de neblina ou nevoeiro matinal nas zonas adjacentes às regiões altas do litoral. Nas regiões baixas não faço ideia. Está fresquinho, pelo que sei.
- Está fresquinho, pelo que ela sabe. Agasalhe-se bem, sr. ouvinte. E já sabe o que é pior: língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani? Eis uma nova chamada. Quem fala?
- Horácio Fuimasjánãovou, de Paio Pires.
- Sr. Fuimasjánãovou, o que é pior: língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani?
- Isso é um absurdo incomparável. Eu queria antes contar uma anedota para entreter os ouvintes…
- Não, Sr. Fuimasjánãovou, aqui quem diz as piadas sou eu. E, já agora, sabe como é que os alentejanos fazem toucinho do céu?
- Bolas, era mesmo essa que eu…
- Atiram o porco ao ar! Ahahahahahahah! Isto é humor! Isto é… Bom Dia, na Rádio Plutão, 203.4 MhZ, com Óscar Alhinho! Outro ouvinte em linha… será que é agora que vamos decidir o que é pior: se língua de vaca assada ou a nova música de Gwen Stefani? Bom dia, como se chama?
- Eulália Aiaiaiquevoucair, de Borba. Não gostei da sua piada. Você deve pensar que somos todos parvos, não é?
- Ora essa, Sra. Aiaiaiquevoucair!... Precisamos de nos rir de nós próprios, não é? Diga-nos o que é pior: língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani?
- É preciso ser descarado! Também sei uma anedota: sabe como é que um lisboeta leva no cu de…
- Parece que a Sra. Aiaiaiquevoucair… caiu mesmo! Estamos mesmo com azar, Miriam Decoteaberto…
- De facto, Óscar. Vamos pôr mais uma música a rodar no ar. E quero ver todos de mãos em cima nos transportes públicos com esta que vamos passar! É uma loucura! São os Madredeus acompanhados pelo Coro Fúnebre constituído por Vitorino, João Gil e Rui Veloso a gemer “Ai Que Este Furúnculo Anal Não Se Vai Embora”. Fiquem lá com esta malha!

- Bem, estamos no fim de mais uma hora de entretenimento puro na Rádio Plutão, 203.4 MhZ, este é o Bom Dia com Óscar Alhinho. E ainda não sabemos o que é pior, se língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani. Temos mais alguém a querer participar… Bom dia, como se chama?
- Aníbal Estábemestá. Eu tenho uma opinião muito bem definida sobre essa temática.
- Muito bem, Sr. Estábemestá. Diga-nos o que é pior: se língua de vaca assada ou a nova música da Gwen Stefani?
- Claramente, a língua da Gwen Stefani é pior que a nova música da vaca assada.
- Como?
- Perdoe-me, o que eu queria dizer era que a Gwen Stefani assada é pior que a música da língua de vaca.
- Sr. Estábemestá, você está bem?
- Sim. Estou bastante confuso. Estou de greve. Estou mais ou menos. Não sei.
- Bem, o Sr. Estábemestá não conseguiu aguentar a pressão que envolve esta questão que colocámos para o fórum de discussão, Miriam Decoteaberto.
- É verdade, Óscar. O grande público foge aos momentos das grandes decisões. Se calhar, vou passar o “Final Countdown” dos Europe… que é para o público espevitar.
- Bolas, Miriam, cá entre nós: escusas de passar essa porcaria todos os dias. Desde 1986 que ninguém pode com isso.
- Só mais uma vez, Óscar. Vamos tornar esta manhã a manhã mais alegre e radiante de sempre!
- Que se lixe… fiquem lá com o “Final Countdown” dos Europe.

PS: Língua de vaca assada é pior que a nova música da Gwen Stefani, por uma escassa margem de 4 votos contra 3. Refira-se que Gavin Rossdale votou na nova música da Gwen Stefani.

segunda-feira, maio 28, 2007

Taça é Taça

Confesso que me assolou um pensamento impuro aquando da vitória do Sporting na Taça de Portugal. Impuro por ser uma afronta ao meu coração verde e branco, um sacrilégio às minhas convicções enraizadas desde o século passado no Estádio José de Alvalade. Mas não nego que me soube bem, este meu pensamento sportinguisticamente obsceno.
Era muito simples e consistia no seguinte: na majestosa e inusitada (e, refira-se, assaz despropositada para o cariz do troféu) festa de consagração, os jogadores preparavam-se para entrar um a um no relvado de Alvalade. Estava lá tudo a postos: o brilho dos holofotes, o som dos Delfins mais o seu “Fogo do Leão”, entrecortado com o CD da Juve Leo (já com cinco anos), videoscreens com as imagens de glória verde-brancas, “barely legal” cheerleaders apetitosas, saltitantes e sorridentes com os seus pompons verdes e as exíguas saias brancas (para condizer com a cuequinha), público ansioso e delirante arremessando confettis coloridos e os incasáveis animadores de programa, sempre de microfone em punho, incentivando uma malta já de si muito animada.
Foi nesse cenário, e imaginando uma câmara de TV de frente para a saída dos balneários, que me ocorreu o tal pensamento. Passo a explicar o contexto: a câmara já lá estava, no lusco-fusco, aguardando a saída triunfal dos jogadores do balneário, para gáudio do público, até das cheerleaders impúberes. Um rufar de tambor ecoava pelas bancadas. O animador espicaçava os nervos ao alongar-se com insistência: “Eeeeeeeeeeeeeee agoraaaaaaaaa… quem vem lá com a taçaaaaaaaaaaa?... Queeeeeeeeeeeeeeem serááááááááááááááá?…”.
Deu-me para isto, não sei se pelo nome, se pelo cabelinho que pede meças ao próprio treinador, se pela angelical cara que disfarça os instintos mais ou menos violentos, normalmente escondidos no fundo de um bom central de marcação… mas lembrei-me do Tonel, diminutivo de António Leonel, sinónimo de pipa, natural de Lourosa, formado no Futebol Clube do Porto, actual número 13 do plantel. Um bom central. Filmei mentalmente esse momento fictício. O animador exulta finalmente: “Éééééééé eleeeee… aí vem ele com a taçaaaaaaa… Aí está: Toneeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeelllllllllllllllllllll!!!!!!!!!!”. Tonel surge, rápido e sorridente, com a sua carinha de menino tímido e bem comportado, subindo as escadas de taça orgulhosamente erguida, sob o brilho dos flashes e a música dos momentos de vitória. Por norma, não seria o jogador a iniciar as hostilidades, mas para efeitos desta fantasia foi ele o escolhido. As câmaras filmam tudo com uma proximidade perturbante. É aí que o caldo se entorna: Tonel, inebriado pela conquista, tropeça no último degrau de acesso ao relvado, cai desalmadamente na primeira relva do rectângulo, bate desamparadamente com a cabeça no chão e deixa cair a taça para a vala protectora do estádio. A câmara treme com o incidente e volta-se para o animador, que, atrapalhado, tenta sorrir com a situação. O estádio emudece. As cheerleaders tapam a boca de espanto e os videoscreens param as imagens. Tonel fica agarrado à boca, gemendo sonoramente e contorcendo-se com dores; tinha embatido violentamente com a cara voltada para o chão. A música volta rapidamente a ecoar na aparelhagem, mas o mal estava feito: auxiliado por paramédicos, Tonel fica a saber que partiu os dois dentes incisivos frontais e perdeu parte da língua ao trincar-se, o que explica o sangue abundante, e é provável que não volte a jogar futebol por não conseguir encarar-se a si próprio nem o gozo dos colegas no treino; a taça, essa, escangalhou-se no cimento do fosso de Alvalade e nem as fitinhas decorativas se aguentaram – ficou feita em pedaços e nem a melhor cola do mercado fará alguma coisa de razoável com os destroços. Partidinha de todo, com lágrimas de leão a servir de mortalha à sua memória. Paulo Bento nem queria acreditar. Soares Franco pensou em devolver a taça partida à Federação como retribuição pela atribuição de bilhetes para o Jamor. O sonho leonino de acabar com mais um título na sua galeria terminava assim, com a subida de Tonel ao relvado para aclamação. Houve título, mas não houve taça. Um a um, os adeptos saem cabisbaixos do estádio, após uma festa que acabou antes e muito pior do que começara. Em casa, a risota é geral, especialmente a dos invejosos vermelhos, que assim garantiram o único título da época: rir-se às custas do rival vencedor por conta dum insólito.
Eu ri-me e ri-me a pensar isto cá para comigo, num delírio perfeitamente sado-masoquista. Concluí que talvez não devesse ter tomado nada enquanto via o jogo.
Mas do que eu gostei mesmo foi da conquista da taça. O “Outra Louça” presta assim o seu singelo tributo aos vencedores.

quarta-feira, maio 23, 2007

O Elixir do Tiroteio Despropositado

- Prof. N’Gonka, está aqui um paciente para atender. A cara dele não me é estranha.
O Prof. N’Gonka afasta uns quantos amuletos da sua mesa, incluindo um papagaio malawiano empalhado, disponibilizando assim espaço para apoiar os cotovelos, e abre a cortina de veludo escuro, deixando a luminosidade penetrar e iluminar o seu pequeno escritório numa zona degradada de baixas rendas em Lisboa.
- Manda o paciente entrar, Kabumba.
O paciente entra, cumprimenta o Prof. N’Gonka, que retribui delicadamente, quase sem emitir um som. Identifica-se como sendo Raimundo Retrovisor, o tal que atraía todas as maleitas possíveis.
- Não se lembra de mim, Professor? – questionou Raimundo.
- Sabe, eu comunico com várias pessoas por dia… - respondeu, vagarosamente, N’Gonka – É você o Sr. do mau-olhado lançado pela vizinha do lado?
- Oh!, se tivesse sido só isso, Professor!... No último ano, foi mau-olhado, desgostos amorosos, despedimentos, várias doenças crónicas e agudas do foro hepático, sanguíneo, nervoso, cardiovascular, pulmonar e gástrico, falta de auto-estima, problemas monetários, depressões ocasionais, macumba, vudu, cegueira, surdez, mudez, mau hálito, infertilidade, impotência, vários pneus furados por dia, obesidade mórbida, falta de fé num deus qualquer, sisudez, mongolismo, autismo, baixa responsabilidade cívica, libertação de gases em momentos inconvenientes, violações, raptos, contagem de anedotas sem graça, negação da personalidade jurídica, paludismo, escorbuto, vítima de ataques de animais supostamente dóceis, diabetes, alergia ao esparguete e à morcela, fortes odores corporais, gravação de sons obscenos em festas de aniversário de crianças desconhecidas, alcoolismo, toxicodependência, lepra, tremeliques em plataformas ferroviárias, sinusite, extrema transpiração nas axilas em pleno Inverno, esquizofrenia, personalidade bipolar, caspa, utilização imprópria de lavabos públicos, bulimia, acessos momentâneos de pedofilia nos feriados municipais, menstruação desregulada e fortes reacções cutâneas ao vinagre. O Professor curou-me de tudo! Não se lembra de mim?
- Ah, sim, claro! – iluminou-se N’Gonka – O meu úni… er, o meu melhor cliente! Como vai, Sr. Raimundo? Está melhor da constipação?
- Sim, Prof. N’Gonka. Graças às gotas óleo de rim de aborígene australiano e a duas caixas inúteis de antibiótico, consegui melhorar. Agora tenho um problema bem maior, Professor. Algo que me tem atormentado nos últimos tempos… para aí desde as 9:30 de hoje – e Raimundo, abatido, passa pelo mão no cabelo, tenuemente desesperado, expirando bofes de desagrado.
N’Gonka, algo admirado, reclina-se na cadeira forrada a pele de leopardo, junta as mãos e assume uma postura de ouvinte atento.
- Ora diga lá então o que a medicina alternativa deste humilde Professor doutorado na Universidade de Ciências Ocultas de Monróvia com aproveitamento máximo e inigualável por mais alguém pode fazer por si, Sr. Raimundo…
- Sabe, Professor… a vida tem estado muito fácil para mim. Eu quero que o Professor me arranje um mal qualquer. Um mal que não consiga sarar facilmente.
- Como? – espanta-se N’Gonka.
- Eu sinto a falta dos meus queixumes. Hoje em dia obtenho mulheres com um estalar dos dedos. Acordei como o homem mais rico do mundo por não ter feito nada. Toda a gente é amiga e compreensiva para comigo, tenho filhos inteligentes e amorosos, descobri várias fórmulas científicas que atrapalhavam os grandes cérebros mundiais a ver uma competição de pólo aquático, salvei personalidades importantíssimas da morte certa sem sequer reparar, não invejo ninguém, não tenho medo de nada, possuo uma saúde de ferro que serve de referência a toda a classe médica, cresceram-me os dois dentes da frente que tinha partido há 10 anos, fui designado o “Português do Século” sem nunca ter entrado na votação… não tenho nada para me queixar.
- Sr. Retrovisor, peço desculpa, está aqui um indivíduo a querer oferecer-lhe um avião e a sua voluptuosa filha de 19 anos por o Sr. ter segurado a porta de entrada do prédio para ele… devo deixá-lo entrar? – interrompe Kabumba.
- Não, obrigado… Diga que eu depois lhe telefono… Está a ver, Professor? Eu não fiz nada para ser tão bom, eu quero voltar a sentir algum insucesso outra vez… - comentou Raimundo, abatido pela sua sorte estupidamente imbatível.
- Estou a ver… Mas, como sabe, a minha especialidade é curar e reabilitar as pessoas… eu exorcizo o mal, afugento-o… não consigo atraí-lo – adverte N’Gonka, ajustando a sua camisa multicolorida.
- Professor! O Professor consegue! Você é um grande especialista! Curou-me de tudo e mais alguma coisa! Quem percebe tanto destes desígnios humanos, deve, com certeza, saber inverter os procedimentos de forma a causar mal… - implora Raimundo, segurando nas mão de N’Gonka. Este, incomodado, levanta-se da cadeira e põe-se a pensar.
- Sr. Raimundo, devo avisá-lo que esta situação não é normal… Tem a certeza que quer ter problemas?
- Sim, Professor! Eu não sou normal! Estou à procura de preocupações, desatinos e aflição! Por favor, faça-me algo mau! Torne-me feio! Tire-me a vontade de viver! Eu já não aguento ser tão bom e adorado!
- Hmm… deixe-me pensar – e N’Gonka afasta-se, esconde-se por detrás de uma cortina decorada com penas de pavão.

Detrás da cortina, a salvo dos olhares de Raimundo, sussurra para o seu assistente Kabumba:
- Estou tramado. Acho que fiz um trabalho bom demais com o tipo… e agora, Kabumba? Não devia estar aqui para o mal… quer dizer, também não devia estar para o bem, só devia dançar como um maluco, falar monossílabos desprovidos de sentido, vender chás baratos como poções milagrosas e artefactos de madeira rasca como ídolos sagrados… Mas não posso desapontar o cliente, senão ficamos sem sustento para a renda e voltamos para as obras…
- É lixado, Professor – anui Kabumba – Temos de inventar um novo mal para o gajo. Já o metemos como sócio do Benfica?
- O gajo está tão bem na vida que já nem liga a futebol, vê lá…
- Hmm… e se lhe colocarmos um papão à noite no quarto?
- Qual papão, Kabumba?
- Sei lá. Olha, o Zé Tikotiko, que é grande como o caraças…
- Ó Kabumba, o Zé Tikotiko a partir das seis da tarde está a cair de bêbado, quer lá ir fazer de papão a casa de um maluco qualquer…
- Então temos de lhe criar uma doença qualquer, alguma coisa séria…
- Mas o quê? O gajo já teve de tudo! Depois de ficar doente, volta cá e eu curo-o, como já o curei!
- Tudo, tudo, Professor? Ele já teve raiva, piolhos e febre aftosa?
- Já! E já experimentou a morte súbita dos bebés que dormem de barriga para baixo… e ressuscitou! Não sei, Kabumba… - constata N’Gonka, inquieto por estar em vias de perder o seu cliente.
- Eh, pá, estes gajos só mesmo com um tiro na cabeça, de tão parvos que são!…
- É isso, Kabumba! – exalta um entusiasmado Professor – O tipo ainda não foi psicopata assassino! Temos de torná-lo num psicopata!
- Boa! Mas como?

- Ó Kabumba, não sejas parvo também! – zanga-se N’Gonka – Só temos é que fazê-lo acreditar que se vai tornar num psicopata! Ao fim de algum tempo ele descobre que não é e volta cá para arranjarmos qualquer coisa mais! Entretanto, vamos pensando noutro mal qualquer. Está bem?
- Excelente, Professor! E como vamos enganá-lo?
- Enche aí esse frasco com água e coloca uns corantes e umas folhas de louro lá para dentro – vai ser “O Elixir do Tiroteio Despropositado”. Que tal?
- Muito bem, Professor! – deleita-se Kabumba, orgulhoso por fazer parte daquela trama sinistra – O Professor é uma máquina!

- Sr. Raimundo – diz, grave, o Professor, aproximando-se – isto de fazer o mal não é eticamente correcto no seio da Classe dos Grandes Mestres Curandeiros… mas, excepcionalmente, vou entregar-lhe este portentoso e obscuro elixir… o infame “Elixir do Tiroteio Despropositado”, receita secreta de tribo senegalesa… irá torná-lo num psicopata assassino, capaz de matar cirurgicamente personalidades públicas…
- Isso é óptimo! Grande ideia! – empolga-se Raimundo – Já me estou a ver todo preocupado a fugir da polícia e a esconder-me! Mas, já agora, o que seria mesmo bom era ser um genocida! Se é para me preocupar, quero preocupar-me a sério! Matar gente à grande!
- Genocida, hã? Também se arranja… Kabumba, anda cá – Kabumba chega e o Professor ordena – Reforça o elixir, se fazes favor.
- Como?
- Põe mais corante nisso – sibila ao ouvido o Professor.
Kabumba mistura mais corante à solução atrás da cortina, adiciona-lhe uma pitada de açafrão pelo sim pelo não, fazendo o elixir adquirir uma tonalidade amarela viva. Entrega o frasco a N’Gonka e este, solene, entrega-o a Raimundo.
- Cá está, Sr. Raimundo. O senhor será um futuro genocida de renome. É só tomar um colher de sopa todos os dias antes e depois das refeições, virado para oeste e sem nenhuma galinha branca por perto.
- Professor, o Sr. é fantástico! Resolve tudo! Muito obrigado! – saúda um agradecido Raimundo – Quanto lhe devo?
- Ora, 500 euros pelo aconselhamento, 175 euros pela taxa de assento no meu consultório, 76,4 euros pelo tempo, 42,32 euros pela chatice, 75 cêntimos pelo valioso elixir… são 1500 euros, por favor.
- Tome – providencia Raimundo, sem discutir – Você merece, Professor, você merece! Preocupações, venham elas!

N’Gonka e Kabumba fazem agora contas à vida. O negócio prospera. N’Gonka quase que nem acredita na ingenuidade de Raimundo. Mas aconteceu. O pequeno escritório torna-se grande na alegria.
- Sabes, Kabumba – confidencia N’Gonka – acho que vou ver um professor a sério, o Mestre Abdul Kabidelah. Acho que ele consegue saber até que ponto eu sou um grande professor. Já reparaste? Pelos vistos, curei mesmo o gajo de tudo! Quais são as hipóteses de tudo ter acontecido apenas por sorte?
- O Professor tem mesmo poderes, acredite – tranquiliza Kabumba – o Mestre Abdul Kabidelah só o irá confirmar.
- Vamos ver, vamos ver. Até logo, Kabumba. Vai pensando numas doenças esquisitas, entretanto.
Quando N’Gonka sai do consultório, encaminha-se para as escadas. No fim do primeiro lanço de escadas, encontra Raimundo parado à sua espera, perturbado, olhar furioso nos seus olhos, dentes cerrados e lábios secos, de arma na mão.
- Sr. Raimundo, então ainda por aqui? – cumprimenta, afável, N’Gonka.
- Pensavas que escapavas desta, não, macaco? MORRAM, PRETOS!!!!!!!
Com seis disparos à queima-roupa, Raimundo fulmina N’Gonka, que cai perfurado no chão de madeira, formando uma piscina de sangue. Raimundo não exibe remorsos alguns, larga uma sonora gargalhada e dá mostras de pretender prosseguir com o rasto da morte pelos subúrbios da capital. Raimundo tornara-se um genocida primário, apenas com uma colher de sopa do Elixir do Tiroteio Depropositado. Fabuloso.
N’Gonka morreu. Porém, morreu honrado, satisfazendo todas as necessidades dos seus clientes, transformando enfermos em heróis e heróis em genocidas. Mesmo que não tivesse sido esse o objectivo.

terça-feira, maio 22, 2007

Lambedor de Janelas

Procuro carne. Carne da boa. Sem aditivos transgénicos mcdonaldescos. Só preciso do corpo, o resto deito fora.
Não preciso das caras. São todas iguais.
Não preciso das almas. Foram todas vendidas ao diabo.
Necessito um loop permanente dentro do teu sexo. Sem pretensões intelectuais, a minha única filosofia é usar, gastar e abandonar. Rápido e sem rodeios.
Não me importo de ser usado para os mesmos fins. Eu já não me importo com nada que seja importante.
Não me incomodo com falsas reservas morais. Perdi a moralidade há vários desgostos atrás.
Há quem me considere parasita da sociedade, vil amostra da corrupção de valores tão afecta ao quotidiano urbano-decadente. Eu não sei se sou. Talvez seja. E se for, isso implica a perda do meu prazer? Não? Então não vale a pena aborrecerem-me.
Esquece-te das caras e dos corações, são apenas acessórios. Aproveita o teu hedonismo como uma bênção da sociedade contemporânea. Dança com os ruídos mecânicos das tuas hormonas, mesmo que ninguém te tenha ensinado a dançar. A dança é apenas um movimento insano. Dança sob o brilho de um sol fumarento em lenta combustão.
Não permitas que os teus acessórios se tornem indispensáveis neste mundo realmente virtual.

quarta-feira, maio 02, 2007

Piscina de Fígado

Imaginem uma claque de futebol a cantar a brejeirice foleira, passe o pleonasmo, de “Tu Nunca Andarás Sozinho”. E depois a incentivar “Piscina de Fígado! Piscina de Fígado! Piscina de Fígado!”. Parece mal, não parece? Mas se cantar “You’ll Never Walk Alone” e incentivar “Liverpool! Liverpool! Liverpool!” parecerá bem melhor. No limite, até merecerá louvores.
O campeonato inglês é pródigo em nomes que, em tradução muito livre, se assemelham a profundas barbaridades em português. Eis alguns exemplos: Queimadura Negra (onde joga o Benny McCarthy, ironia das ironias), Castelo Novo, Homem Unido (em versão abreviada), Presunto do Oeste, Os Passeadores de Bolton, A Boca do Porto e Lendo. Mas é a Piscina de Fígado que me enche as medidas.
Que belo nome. Nós, por cá, apostamos no pueril sufixo “-ense” para múltiplas equipas. Não tem o mesmo efeito. Piscina de Fígado, isso sim! Que bom seria ter um modesto Barril de Escrotos em Leiria ou um tímido Alguidar de Pâncreas em Aveiro – aposto que os estádios teriam mais gente, nem que fossem adeptos fervorosos de filmes de terror hard-gore. O Piscina de Fígado é o clube de qualquer assassino em massa que se preze. Com camisola vermelha e tudo, lembrando o sangue da vítima que penou em ver o seu fígado retirado a sangue frio, sem anestesia. Sim, porque quem tem a veleidade de conceber uma piscina de fígados tem de ser suficientemente macabro para retirá-los a vítimas ainda vivas, dadoras de órgãos incautas (tipo Monty Python n’ “O Sentido da Vida”), e amontoá-los numa piscina onde todos pudessem contemplar os belos assassinatos perpetrados. Uma personagem tão mórbida que, quando nos abeirássemos dele em pleno Verão, perguntávamos:
- Eh pá, que grande casa que tu aí tens! E está cá um calor… Posso dar um mergulho na tua piscina?
E ele respondia-nos:
- Eh pá, é melhor não… depois de tantos assassinatos, comecei a colocar os fígados na piscina. Água só na torneira… a banheira tem os rins e a garagem as cabeças. Posso cortar a tua mão para fazer um cinzeiro?
- Pois não, corta-me a esquerda, por favor! Preciso da direita para serrar pescoços de crianças desdentadas! – esta última parte já não faz parte da fantasia, mas adiciona um toque ainda mais negro.
Conclusão: os adeptos da Piscina de Fígado são psicopatas ou descendentes deles. E ainda por cima, arriscam-se a ganhar mais uma Liga dos Campeões e a pintar de sangue o tapete verde de Atenas. Os jogadores da Piscina de Fígado são autómatos, vide Robbie Fowler e Peter Crouch. Não têm fígado. Se na Académica da lusitana Coimbra a praxe passa por receberem uns calduços na entrada em campo, enquanto correm em cima de batinas pretas, na Piscina de Fígado a praxe aos jogadores novos passa pela remoção das vísceras. Os adeptos exultam, os jogadores dissecados metamorfoseiam-se em mortos vivos com movimento, devido à ajuda de menos alguns gramas de órgãos que antes dificultavam a locomoção. O próprio norueguês Riise parece exangue por efeito dessa operação.
Os Beatles, ou “Os Ezcaravelhus”, provinham da Piscina de Fígado. Além do mais, o bar onde tocavam inicialmente designava-se “A Caverna” – tudo é sintomático do negrume espiritual associado à cidade. Os Beatles são produtos genuínos dessa terra atroz. Os Beatles merecem todo o desprezo que a Igreja lhes quis dar nos anos 60 só por esta razão ímpia. O John Lennon veio depois com os dias de cama pela paz, mas levou um tiro de um fanático que não lhe perdoou a traição aos princípios. O George Harrison rendeu-se lá aos deuses hindus e a toda uma espiritualidade de reconvertido, mas também já bateu as botas. O Paul McCartney, como castigo, nunca mais teve sucesso a solo. E o Ringo Starr optou pela penumbra e ninguém nos garante que já não pratique a acumulação de fígados na sua piscina.
Mais famoso que os Beatles nem Jesus; mais sádica que a sua terra nem Wayne Gacy. O próprio rio que banha a cidade é o Mersey, que é um quase, quase homónimo de “Misericórdia” em inglês. Razão: primeiro, os desprevenidos iam à “caverna” ouvir “os ezcaravelhus” com “Ama-me, Ama-me Sim”, assim como quem embala bebés. Depois, “os ezcaravelhus” e os vândalos do estádio da equipa de futebol, sediado em Anfield Road (ou “Estrada de Uma Campo”), conduziam as vítimas horrorizadas para as margens do rio e arrancavam-lhes as entranhas, perante pedidos de “misericórdia” (daí o “Mersey”). Os fígados, para a piscina; o resto, para o rio, para alimentar os peixinhos esfomeados.
Demasiada forçada esta relação? Certamente. Porém, já conheceram alguém que tivesse ido à Piscina de Fígado e tenha desejado regressar? Não, pois não? E já alguém lá foi? Não, pois não? Viagens para a Inglaterra só em low-costs para Londres, com voos de regresso a horas indizíveis da madrugada. A Piscina de Fígado não é como Portugal, onde acreditamos piamente que 90% dos turistas, quando não 100%, desejam ardentemente regressar ao nosso prendado país.
Quanto mais não seja, pela diversão. Por exemplo, ver um jogo de futebol entre o Close To The Sea e o Goodstay, que iria despertar risos no súbdito mais etilicamente carregado de Sua Majestade, fossem estes nomes mesmo traduzidos para o inglês. Ou entre um Sporting of the Birds – Goodsight. Um dos grandes tem um nome inglês, mas é um nome muito olímpico: é simplesmente “desportivo”. Um outro tem um nome demasiado simples: “Port”. “Port” de nada, nem sequer é porto de boca, de cotovelo ou de bexiga. O outro grande, sim, esse possui um nome que dá para ser glosado, ou não fosse um bairro de matriz arquitectónica urbano-depressiva-anos 60 da capital (como é, como demonstrei acima).
Mas pronto, risos são risos, são efémeros; nada se compara a um esventramento de um órgão humano, que é uma imagem forte. Espectacular, a visão de uma Piscina de Fígados ao sol, aquele vermelho vivo a escorrer sangue e o derreter daquela pasta gelatinosa consumida pelos inícios de uma cirrose hepática fulminante, sob os gritos lancinantes dos estropiados que gotejam sangue pelos dentes e sob os aplausos ébrios dos apoiantes de cachecol vermelho que nunca deixarão a sua paixão andar sozinha, não vá ela ficar igualmente sem fígado… Força Piscina de Fígado, os carniceiros estão contigo.