sexta-feira, junho 30, 2006

Smashing Pumpkins "Siamese Dream" (1993)


Os Smashing Pumpkins não deveriam chamar-se “Smashing Pumpkins”. O mais correcto era designarem-se “The Billy Corgan Band”. Pronto, com alguma boa fé, deveriam chamar-se “The Billy Corgan and Jimmy Chamberlin Band”. Agora Smashing Pumpkins?

Esta foi (é?) uma banda fetiche dos anos 90. Cresceu e morreu com a década. Por volta de 1996 eram a maior banda rock do mundo. Corgan andava nas nuvens, após um duplo-álbum concebido especialmente com o propósito de tomar o mundo de assalto. Depois vieram os problemas, como seria de esperar. A partir de 1998, com o advento do nu-metal, o progressivo esquecimento das bandas que formavam o “core” do rock anos antes, dissipado o fantasma de Kurt Cobain, Corgan e a sua banda caíram a pique e em 2000 programaram o ridículo que foi a última digressão, fazendo com que todos que os presenciassem pudessem afirmar “Pai, Mãe; esta foi a última vez que viram esta banda ao vivo”. Foi uma atitude claramente virada para os bolsos e não para o sentimento, embora perfeitamente legítima. Eu, como fã, recusar-me-ia a participar nessa fraude… caso tivesse tido a oportunidade. Contudo, compreendo quem os foi ver. Afinal, sempre havia grandes momentos para recordar. Podiam eram ter tido uma saída mais digna – para mim, um comunicado de imprensa em que se lesse “acabámos” seria mais digno. Mas isso sou eu, com as minhas ideias utópicas sobre integralismo ideológico dentro do universo rock.
Corgan andaria depois por outra banda, os Zwan. Este projecto foi claramente assumido como sendo “Billy Corgan e mais uns amigos”, ao contrário dos Pumpkins… embora a lógica fosse sensivelmente a mesma: um grande baterista, um ou dois guitarristas low-profile o suficiente para nunca entrar em conflitos com o enorme ego de Corgan e uma mulher baixista com pinceladas góticas, capaz de atrair um público diferente e de fazer as “backing vocals” com um toque sensual. Mas os Zwan, descobriu-se depois, não eram assim tão amigos e após um álbum decepcionante terminaram. Desta vez não houve “festa de despedida”, até porque os Zwan não tinham motivos para festejar.
Corgan insistiu e, pela primeira vez em 15 anos, teve a hombridade de assumir-se como um artista a solo. Nem sequer ouvi esse álbum. Ouvi dizer que vendeu muito mal, se é que vendeu. E Corgan pensou de novo em reformar a banda, como está tão em voga. Quanto a mim, é um sinal claro de três coisas: que Corgan sabe que a mística reside no seu projecto Pumpkins; que os Pumpkins estão com dificuldades de tesouraria e provavelmente enfrentam uma depressão emotiva; que a cena rock actual e as novas bandas que despontam são tão más que mais vale voltar a ouvir bandas do passado a tocar as mesmas coisas “over and over again”, como uma pilha Duracell. Citando os Metallica, “sad but true”.

Escrevendo sobre o que interessa, voltemos a 1993. Os Pumpkins eram uma banda imberbe (especialmente a D’Arcy), buscando o seu lugar ao sol após a explosão de Seattle. Consta que Corgan, de Chicago, estava francamente deprimido e que trabalhou de forma compulsiva neste álbum, como terapia para libertar-se desses tormentos que o afligiam. Foi o apogeu da primazia de Corgan sobre a banda, pois Corgan fez todo o álbum sozinho, desacreditando as colaborações de todos os restantes elementos da banda, excepto a do excelente baterista Chamberlin. Os outros, basicamente, apenas apareceram no “inlay” do álbum. O japonês James Iha ficou deveras satisfeito por Corgan lhe ter presenteado com a co-autoria de três faixas, em jeito de agradecimento por ele não fazer muitas ondas relativamente ao seu papel mais que secundário.
Corgan estava decidido a que este álbum lhe abrisse as portas do sucesso, depois de ter sido aceite sem grande alarido dentro do segmento “alternativo” após o álbum anterior, “Gish”, de 1991. “Gish” tinha sido um sucesso mediano, agradável “ma non troppo” para as ambições de Corgan, decidido a ser uma “rock-star”. Curiosamente, tanto em “Gish” como em “Siamese Dream” utilizou o mesmo produtor, Butch Vig, que por sua vez tinha estado no álbum que definiu o som da década: esse mesmo, “Nevermind”, dos Nirvana.
O que aqui se ouviu foi, discutivelmente, a “banda” no seu auge: ainda sem atingir o pretensiosismo épico-gótico do subsequente “Mellon Collie and The Infinite Sadness” (veja-se só o nome), que lhes escancarou o caminho para o mega-estrelato; já sem se reter unicamente a esteoreótipos “indie” evidenciados na produção de “Gish”; acima de tudo, feito com o querer e a paixão de ter algo a provar e esforçar-se por fazer um álbum que ficasse para a história.
Para o mundo, foi um álbum que revelou os Pumpkins como uma banda muito promissora, sem chegar aos calcanhares dos Nirvana, mas competindo com a atenção dada aos Pearl Jam (embora as filosofias destas bandas fossem bem diferentes entre si); para Corgan, funcionou como um balão de oxigénio que lhe tonificou a alma, mas ainda sem o super-estrelato desejado; para mim, foi o resultado mais honesto da banda, mais enfocado que “Mellon Collie”, mais desenvolvido que “Gish”, mais ajustado à realidade da época e qualitativamente superior, bem superior, a qualquer registo pós-“Mellon Collie”.
Corgan ainda não se rendera totalmente ao fascínio gótico; as canções eram essencialmente rock, com bastante distorção, amplificadores bastante altos (a famosa expressão “muralha de som”), guitarras a guinchar solos por entre ritmos tecnicamente evoluídos desenhados por Chamberlin na bateria; ou então, baladas “poppy”, metendo violinos e tudo, com Corgan suspirando as interessantes letras ao microfone. Corgan, honra lhe seja feita, era um compositor prendado e prolífero (não consigo, assim de repente, lembrar-me de ninguém que tenha escrito tantas e tão boas músicas e letras como ele em tão pouco tempo), um intérprete bastante razoável e um liricista apreciável – isto até 1996.
Depois, rapou o cabelo, vestiu-se de preto (aquela T-shirt do “Zero”…) e mandou o “rock alternativo” às malvas, abraçando as grandes arenas. Pior para ele, pior para nós. Poucas bandas representaram tão bem o espírito dos anos 90 como os Pumpkins. Se bem que os Pumpkins eram Billy Corgan e Billy Corgan era os Smashing Pumpkins, isto é, uma perfeita redundância falar-se dos dois, quando se pode falar só de um. Acho que ele(s) irá(ão) voltar em breve…

Classificação: 8/10
Faixas a reter:
“Cherub Rock”;
“Quiet”;
“Disarm”

terça-feira, junho 27, 2006

A Mala


Quando o desespero aperta, procuram-se os melhores remédios. Não há clarividência nem tempo que permitam buscar por prevenções possíveis – interessa é o resultado final, a resolução definitiva, esgotadas que estão as alternativas pacíficas de conciliação. Em gíria futebolística, dir-se-ia que chegara a altura do “chuveirinho” para a área contrária.
Alfredo sabia que não tinha espaço de manobra. Urgia resolver a encrenca onde se enfiara.
Os amigos, diz-se, são para estas ocasiões. Nada melhor que um velho conhecido que fosse dealer.
Tó M., como lhe chamavam os íntimos, era um dealer de quase tudo o que fosse ilegal. Ele conseguia, com imenso “savoir-faire”, traficar droga, mulheres, influências e até cromos impossíveis de arranjar para completar colecções de futebol. Alfredo buscava por um meio radical de resolver o seu problema e Tó M. certamente saberia dar um seguimento viável ao seu tormento conjuntural.
Imbuído por esta luzinha de esperança, foi de manhã cedo até Chelas. Encontrou Tó M. de boxers no seu T1, acabado de acordar e já com um risco de cocaína em cima do tampo da mesa, ao lado do pacote de manteiga que derretia sob o calor da torradeira.
- Então qual é o problema, man? – questionou Tó M., aura de gangster calejado após mais uma baforada no cigarro que acendera e que viera no último carregamento contrabandeado.
- Tenho um ganda problema, Tó M.. Voltei a ser apertado… - respondeu um preocupado Alfredo, aproveitando a oferta de um cigarro que acendeu nervosamente, enfatizando as reticências no final da sua frase.
Tó M. sorriu, olhos cerrados pelo fumo. Sabia a solução. E Alfredo estava com sorte, ainda ontem tratara de orientar os instrumentos para tratar deste tipo de situações.
- Man, és um gajo de sorte. E és um gajo fixe, que não faço isto a todos. Anda cá.
Alfredo acompanhou Tó M. até à casa-de-banho. Dentro da banheira estavam 3 caixas fechadas e mais um fardo de haxixe que largava um forte perfume, o que permitia a Tó M. não pensar em ambientadores, mesmo para a mais terrível diarreia. Com uma calma orgulhosa explicou o que ali repousava.
- Man, o que vês ali no primeiro pacote é uma arma de bolso israelita, calibre 16, bastante eficaz, utilizada pela defesa pessoal do primeiro-ministro deles. É discreta e fácil de manejar. A ti até te arranjo o silenciador. Um tiro bem dado e o sacana nem vai sentir o que o limpou. É uma arma do mais preciso que podes encontrar.
- Pois, mas não é bem isso o que queria… - explicou Alfredo, arrebitando as sobrancelhas em sinal de desilusão.
- Man, não digas mais nada! – apaziguou Tó M. – De vez em quando aprecias um espectáculo mais sangrento, não é? Eu também curto. Ao lado está uma caçadeira de canos cerrados utilizada pelos caçadores de ursos do Canadá. Um balázio destes dá cabo dos cornos de qualquer um, torna o cabrão irreconhecível. Man, os bacanos que se meteram contigo vão fugir para Marrocos, de tão cagados que vão ficar ao ver o chefe deles assim!
- Eh, pá, mas eu não quero o chefe de ninguém nem quero ser apanhado a dar um tiro em alguém! – frisou Alfredo, já perturbado com a falta de alternativas evidenciada por Tó M. Tó M., por seu lado, não desarmou, consciente que detinha a chave que abria as portas iluminadas para Alfredo sair da sua embrulhada.
- Já sei o que queres, meu malandro… Queres dar logo cabo do gang todo sem meteres a mão na massa. O que tens ali no pacote mais ao lado é uma metralhadora de calibre de guerra, utilizada pelos maomés no Iraque. É um bocado barulhenta, mas a um preço inigualável. Man, nem sabes o que foi convencer o sócio para trazer esta arma! O gajo já estava todo passado, ah e tal, não pode ser, na Brandoa pagam-me melhor, mas, pronto, cá está ela. E se quiseres eu falo aqui com uns ciganos que por uns milhares de euros limpam-te o sebo ao gang. Mas o gang tem de ser de fora, sabes como é que é, os gajos não chinam pessoal de perto. Se forem da Margem Sul, esquece.
- Não é isso, Tó M.! – exasperou Alfredo – O que eu quero é uma mala.
- Uma mala?
- Uma mala. Para a Marisa.
- Man, tu queres uma mala para a tua mulher?
- Uma mala cor-de-rosa, de preferência. O ideal é ser igual a esta do catálogo – e Alfredo exibiu a folha de papel que retirou do bolso. Tó M. coçou a cabeça e apagou o cigarro na retrete. A situação complicara-se.
- Man, como é que eu vou arranjar uma mala dessas? Tu já viste na Louis Vuitton e na Longchamp?
- E na Hermés e no Corte Inglés também. Estive ontem o dia todo no Colombo, revistei tudo o que era Chloé. Nada parecido – Alfredo afundou-se no bidé, em franco desconsolo.
- Man, foi um stress para arranjar uns sapatos verdes que condissessem com os corsários cremes dela, juntamente com a mala que ela trouxe da H&M no ano passado… lembras-te que tive de raptar o canário do dono da loja e ameaçar a filha dele com uma seringa infectada, não te lembras?
- Sim, mas ela agora mudou de estilo. Largou o estilo casual e quer algo mais executivo, mantendo ainda alguma jovialidade nas cores.
- Eh pá, o estilo executivo-jovem é o mais difícil… tentar vestir-se nesse estilo é como andar num campo de minas: uma peça de roupa desfazada de outra e tornas-te na pessoa mais ridícula do teu escritório… - Tó M. reconhecia a gravidade da situação. Alfredo não aguentou e começou a chorar desalmadamente. Tó M. abraçou Alfredo, num claro sinal de solidariedade apenas ao nível da melhor máfia siciliana.
- Eu sei Tó M., eu sei! – balbuciou um ruborizado Alfredo, limpando os olhos – Eu não me devia ter esquecido dos anos dela. Agora é tarde demais! Estou perdido, perdido… É o divórcio… Adeus casa, adeus Sport TV…
E aí Tó M. reagiu – espera lá, sem Sport TV? Agora que o negócio das boxes quebrara com o início da transmissão digital, era imperioso conhecer alguém que pagasse pelo serviço legal. Senão, adeus jogos grandes. Ir para o café da esquina era improvável, pois já estava a dever largas quantias de dinheiro a todos os cafés das redondezas.
- Temos de nos orientar, man – concluiu Tó M. – E que tal se ofereceres uns brincos rosa, tipo argolas, com uns efeitos degradé nas pontas? São giros – avançou Tó M., enquanto acariciava a metralhadora iraquiana olhando para o espelho partido sobre o lavatório.
- Não pode ser… Ela já os tem… Só falta mesmo a mala.
- Man, eu só consigo uma mala dessas dentro de 2 semanas, no melhor dos cenários, e isto se falar com o Chico Monhé, que está com problemas no pâncreas e não tem andado por aí…
- Estou fodido! – convenceu-se Alfredo.
- Estamos nós – juntou Tó M.. Mas este, célere no raciocínio, logo adicionou mais uma alternativa – Man, e se eu te raptar por 2 semanas? Tu desapareces, dás tempo para que eu oriente a mala e ela ficará duplamente contente quando receber a mala e te voltar a ver!
- Isso é estupendo! – exaltou-se Alfredo, erguendo-se do bidé – Mas tem que parecer um rapto real, de preferência com ela a assistir!
- Sem problemas – confirmou em tom pausado o experiente Tó M. – Queres ser raptado por brasileiros do Rio ou por pretos da Damaia? Se quiseres, violamos a Marisa para parecer ultra real…
- Deixa estar a parte da violação… – dispensou Alfredo – Rapta-me como for melhor e mais convincente.

Assim foi. O rapto correu bem, o automóvel foi interceptado numa esquina escura da cidade, às tantas da madrugada, após uma inusitada viagem nocturna proposta por Alfredo a Marisa, que nem estranhou. O gang levou Alfredo, partiu os vidros da viatura e ainda apalpou Marisa, que ficou apavorada, em estado de semi-choque. Alfredo ficou na casa de Tó M.. durante duas semanas, a ver Marisa em pranto nos telejornais clamando pela sua vida, pela sua restituição, pela punição exemplar dos facínoras que o levaram. E ele ali, calmamente, enquanto Tó M. controlava a situação. Ao fim de 13 dias chegou a mala, embrulhada em plástico amarelado. Alfredo poderia partir à sua vida normal.
- Sabes, man – virou-se Tó M. – o Chico Monhé tinha uma outra mala cor-de-rosa, da nova colecção. Era espectacular, tinha uns folhinhos de lado muito giros e combinava na perfeição com um casaquinho branco com umas golas fenomenais, do mais chique que vi ultimamente… mas como era esta que estava prometida…
- Eh, pá, obrigado, Tó M. – agradeceu Alfredo, emocionadíssimo – És um ganda amigalhaço!
- Depois diz-me se ela ficou contente.
Marisa ficou radiante, pelo regresso de Alfredo e pela mala que ele trouxe. Beijou-lhe imenso e prometeu-lhe uma sessão de sexo arrebatadora nessa noite. O casamento dos dois estava são e salvo, bem como a Sport TV. Tó M. diria depois:
- Man, os amigos são para as ocasiões. Se tens algum problema, fala aqui com o Tó M..

segunda-feira, junho 26, 2006

Adrenalina

Um destes dias, vou enfiar-me pela auto-estrada em contramão.
Puro prazer, o que me estará reservado. Enfrentar destemidamente as luzes de carros de gente normal sem Via Verde, sem jantes de liga leve, sem luzinhas lilazes por baixo da viatura, sem sistemas de alta fidelidade a ocuparem a bagageira, sem vidros fumados, a desviarem-se aflitas contra os rails de protecção ou a esfrangalharem-se contra a berma. A minha máquina a semear quilómetros de terror no lado errado da estrada.
Vou recordar o Zé Miguel, ás dos piões na rotunda lá do bairro – o tal que se despenhou do viaduto ao perder o controlo do seu Citröen Saxo a 140 a hora e só parou nas pedras graníticas que ladeavam a Ribeira de Matamouros. Irei honrar a sua memória a altas rotações.
Sonho com o momento em que a Brigada de Trânsito me aguarda com os seus pirilampos cintilantes, qual criminoso à solta em Los Angeles, numa barricada montada aparatosamente perto de uma estação de serviço consumida por famílias inteiras em pânico.
Quero sentir a pressão mediática dos telejornais e estar acompanhado por um psicólogo que me vai dizer “é mais um grave desequilíbrio afectivo que merece ser observado pormenorizadamente tendo em vista a reinserção social do indíviduo”.
Ambiciono falar com a minha voz distorcida e com a câmara a filmar a minha sombra na gravilha enquanto defendo o espectáculo de uma contra-ordenação de trânsito desta envergadura.
Espero corresponder às expectativas da malta que me apoia nas corridas lá na terra, com buzinas e aplausos, após mais uma audaciosa aceleração. Não vai haver óleo no asfalto nem pneus furados que me detenham.
Não tenho medo. S. Cristóvão está junto ao CD que penduro no espelho retrovisor.
E tu, queres vir comigo?

sexta-feira, junho 23, 2006

O Casamento



A igreja estava francamente iluminada. Os olhos de muitas mulheres avermelharam e deixaram escorrer uma lágrima ou outra, salpicando os seus vestidos de gala com um misto de felicidade e de deslumbramento. Os homens, mais sérios, mas com a mesma formalidade no vestuário, assistiam com um descomprometimento natural, como se estivessem a observar um jogo de futebol entre o Estarreja e o Valecambrense. O padre, solene, dirige-se ao noivo:
- Inácio, aceita Acácia como sua legítima esposa, amá-la e cuidar dela, nos bons e nos maus momentos, até que a morte vos separe?
Inácio franze a testa, olha para Acácia impregnado de dúvidas e não consegue calar a sua inqueitação, rompendo o sepulcral silêncio da igreja, que apenas admitia uma resposta: “Sim”. Ou então “Sim, sim”. Ou ainda “Pois sim”. Qualquer partícula afirmativa.
- Sr. Padre, nos bons momentos, sim; agora nos maus momentos?... Não sei, ela é um bocado chata…
Espanto generalizado na igreja. Cristo arregalou os olhos na cruz, os santos cochicharam com os anjos, os convidados entreolharam-se abismados. O padre deteve-se um pouco, olhando os noivos por cima dos óculos e reformulou a pergunta:
- Inácio, aceita Acácia como sua legítima esposa, amá-la e cuidar dela, nos bons mas não nos maus momentos, até que a morte vos separe?
Inácio, mais aliviado, ainda não estava plenamente satisfeito.
- Sr. Padre, essa parte dos “maus momentos” , tudo bem; mas cuidar dela não me parece muito bem. Ela já tem 27 anos, é crescidinha, e eu nem sequer sei fazer comida nem passar a ferro.
- Que parvo, Inácio! – reagiu baixinho a noiva, para que só Inácio ouvisse. Estava indignada, embaraçada com a situação. Um burburinho invadiu a igreja, aos pais dos noivos brotavam as primeiras gotas de suor na testa, a incredulidade tomou os sacristães de assalto. O padre agastou-se.
- Ó Inácio, você devia ter pensado nisso antes de vir ter ao altar de Deus…
- Sr. Padre, a mim disseram-me que ia haver um ganda almoço com comes e bebes à descrição, só isso…
- Inácio! – gritou a noiva, abafando o grito com a mão em concha em frente da boca. Desatou a chorar. Foi um escândalo. O som de fundo de um mar de comentários alagou o santo edifício, compromentendo seriamente a cerimónia. Os pais da noiva saltaram em seu apoio, agarrando-a e disponibilizando os seus ombros para que ela libertasse a angústia das infâmias que ouvira. Inácio defendeu-se, tentando colocar água na fervura.
- Meus amigos, não me levem a mal, mas acham que eu estaria aqui se não fosse para comer e beber? A gente já leva 5 anos de casamento na prática… moramos juntos, já fui com ela a Badajoz abortar, eu já tenho filhos ilegítimos da nossa vizinha Daniela, já lhe fui às trombas umas 2 vezes por lhe ter encontrado com o canalizador… Qual é o stress?
(Nesta altura, blasfémia das blasfémias, ouve-se Marlon Brando como narrador em voz off, citando languidamente o seu papel em “Apocalypse Now”: “The horror, the horror…”)
O horror. Crianças irromperam num choro convulso e protestos ecoaram por toda a igreja, a água benta começou a ferver e as hóstias partiram-se em bocadinhos, irritadíssimas. O padre já nem conseguia dizer nada, benzia-se o mais rápido que podia, a tentar afugentar os maus desígnios que emanavam do descarado e ímpio Inácio. A noiva já soluçava de tanto chorar. Os pais dela estavam assombrados.
- Filha, – indagou cuidadosamente o pai – o… o que o… Inácio disse… é verdade?
Ela só conseguia chorar, não confirmando nem desmentindo. Inácio, frontal, desiludido com o rumo da situação:
- Pois é, meus amigos… a vossa filha é uma maluca do pior… Enganou-me com esta tanga do casório, é o que é… eu a pensar que iria apanhar uma ganda bubadeira e o que ela afinal queria era fazer-se passar por uma pessoa de bem junto dos seus amigos e familiares… ‘tá bem, ‘tá… quem não lhe conhecer que lhe compre…
Alguns convidados mais exaltados começaram a gritar para o altar, exigindo o escalpe de Inácio. A mãe da noiva desmaiou e o pai da mesma apontou-lhe um indicador enfurecido, ameaçador. O organista estava estarrecido, de boca aberta, incapaz de tocar mais algum “Avé Maria”, e as meninas do coro eram encaminhadas para fora da igreja pelas beatas mais conservadoras, não fossem ouvir e contar mais do que já tinham ouvido e podiam contar. Perante este cenário de crise, o padre, que tinha aguentado silenciosamente todas as calamidades proferidas por Inácio, insurgiu-se e berrou de forma a acalmar toda a igreja:
- CHEGA! CHEGA! Vamos lá acabar com este degradante espectáculo! Deus está bastante desgostoso destes Seus filhos, gente impura de casta duvidosa que poluiu este espaço sagrado com expressões demoníacas! Ouvi o que tenho para dizer!
Todos olharam para o padre, que suava e ruborizava, espumando levemente ao canto da boca. A igreja voltou ao silêncio.
- Inácio, queres ou não casar-te com Acácia?
- Bolas, Sr. Padre, eu só quero comer e beber…
- SIM ou NÃO?!?
- Eh, pá… não.
- Acácia, queres ou não casar-te com Inácio?
Acácia ainda estava demasiado emocionada para articular algum som que se parecesse com uma palavra.
- Eu considero isso um não. Protanto, declaro-vos não-marido e não-mulher. Agora, DESAPARECEI DAQUI!
Aborrecidos com toda a situação, os convidados dirigiram-se para fora da igreja, tomando lugar para as fotografias da praxe antes do copo-de-água. Inácio estava visivelmente mais feliz que Acácia, que se extinguia, quase sem água no organismo de tanto chorar, apoiada pelo pai – pudera, o almoço seria numa casa de renome, famosa pela qualidade dos seus enchidos e vinhos.

quarta-feira, junho 21, 2006

Maniche & Nuno Gomes "A Selecção de..." (2006)


Hoje em dia, toda a gente percebe de tudo. Basta que venda. Não interessa qual a especialidade de cada indivíduo - se houver público, há mais um perito.
Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo. O Professor (com “P” grande) deixou de nadar nas águas poluídas do Tejo, porque isso arranjou-lhe mais preocupações de saúde do que votos, e passou a falar de futebol. O arregaçar da sua sobrancelha na TV e a letra cuidada dos seus postais germânicos n’ “A BOLA” não enganam – estamos na presença de um doutorado. Já sabíamos que sim; agora a questão é: Vossa Excelência a falar de futebol, Professor? Qualquer dia temos o Marcelo a treinar o Celoricense por 3 semanas, ao jeito de um Luís Campos… Enfim, Marcelo percebeu, na sua douta magnificência cognitiva, que consegue fazer figura de parvo também a falar de futebol e com isso atrair mais gente parva para o ouvir a falar durante mais tempo, multiplicando o número de aparições na comunicação social, promovendo progressivamente a sua imagem. Um doutorado, que ninguém tenha dúvidas.

Mas não é só a Marcelo que são permitidas veleidades de cross-over entre vários domínios artístico-científicos. Reparem nestas capas.

Maniche, nome artístico de Nuno Ribeiro, proveniente desse berço de estrelas que é o Bairro da Boavista e desse feudo de intelectualidade que foram os sucessivos balneários das camadas jovens do Benfica, espelha as virtudes renascentistas na era virtual. Não só joga bem à bola, especialmente quando carrega uma imagem de Mourinho para dentro do campo, dominando na perfeição o bambolear de ancas, o vestir e a pose necessárias a um manequim, a arte de espalhar gel no cabelo e de espalhar cremes na cara, a inteligência de ter escolhido um pseudónimo estrangeiro de forma a poder vender no estrangeiro e a parecer sofisticado em terras lusas, como alia tudo isto a uma rara sensibilidade comercial digna do melhor criador de playlists das rádios nacionais e a um gosto musical perfeitamente adequado ao seu status de estrela futebolística da moda.
Senão vejamos: Busta Rhymes, Black Eyed Peas, Eamon, Akon, Nelly, Boss AC, Ne-Yo (quem?), Rihanna, levando Paulo Gonzo ao barulho para dar o toque romântico de uma balada ao fim da tarde num resort de luxo. A faixa de Paulo Gonzo intitula-se “Fico Até Adormeceres”, em tom de desafio. Maniche não dorme; Maniche é sagaz, vence pela resistência. Vejam o seu olhar de maroto, como quem avisa “se adormeceres, roubo-te a carteira e o telemóvel!” – portanto, Maniche ficará por muito tempo. Assim como esta compilação verdadeiramente assombrosa na nossa memória colectiva.

Já Nuno Gomes parece, de relance, um pouco mais discreto. Mantém o mesmo fascínio pela moda, embora menos exuberante. Percebe-se: Nuno Gomes gostaria de ter nascido como a recatada Joana Vanessa e não como o avançado Nuno Ribeiro (curiosamente e não por acaso, homónimo de Maniche). Daí os tons rosa da sua t-shirt, o jeito do cabelo, a sensualidade feminina das suas mãos que apoiam a cabecinha sorridente, plena de inocência colegial. A pedir meças a qualquer modelo dos anúncios da Evax. Nos gostos musicais nota-se uma menor tendência para a Mega FM e mais para uma RFM, com uma maior predominância do espectro musical português – vide Ala dos Namorados (que escolha condizente, Nuno; sempre o teu imaginário adolescente de rapariguinha a sobressair…); Valha-nosDeus, perdão, Madredeus; Rui Veloso e os patrocinadores da selecção Da Weasel. Depois, um toque de erudição musical com Chico Buarque e uma rapariga com estilo, Joss Stone. A rematar coloca "Love Generation", uma excelente escolha para quem teima em quebrar tabus relacionados com a androginia. De permeio, coloca um desconhecido Vasco Rossi, como que a afirmar a sua predilecção por homens latinos. De comum com o CD de Maniche tem a faixa de Boss AC – quiçá porque Maniche sonha com o papel de Boss AC no clip, com toda a sua pinta de machão viril e engatatão, talvez porque Nuno Gomes almeja estar no lugar de Merche Romero e sentir as carícias aveludadas da figura-mor do gangsta-rap português.

Eu podia tentar perceber: mas eles são parte dum grande negócio do qual, se calhar, até são a parte mais explorada, e são obrigados a colaborar. Contudo, eu não consigo duvidar que eles se sentem muito bem assim e que os seus gostos musicais são mesmo estes, em traços gerais. Até porque se calhar nunca ouviram mais nada.

Resumindo estes álbuns numa palavra: essencial.
De facto. Estes álbuns são essenciais para qualquer Marcelo Rebelo de Sousa que queira fazer-se passar por um entendido junto de alguém menos informado na matéria. A banda-sonora imprescindível para qualquer aspirante a guionista d’ “Os Morangos com Açúcar”.

Classificação: 2/10 pela música – o Nuno Gomes é, apesar de tudo, menos mau nas escolhas; 9/10 pelo instinto comercial – especialmente o de Maniche.
Faixas a reter: as capas falam por si.

O Supervisor de Evacuação

Hipólito (nome fictício) foi agraciado com o título de “supervisor de evacuação” do edifício onde trabalhava.
Pensou que teria a sórdida missão de observar os seus colegas de trabalho a defecarem nos intervalos, mas foi-lhe dito que afinal “evacuação” significava “fuga” do edifício, caso este fosse acometido de alguma catástrofe, e que ele seria o coordenador dessa evacuação. Era um título deveras pomposo e que encerrava em si bastante responsabilidade, mas Hipólito jogou com a lei das probabilidades e concluiu que mesmo a desgraça mais provável, que seria um incêndio, dada a antiguidade do edifício, só remotamente se verificaria.
Sendo assim, Hipólito não frequentou as acções de formação destinadas a preparar o bom supervisor de evacuação para situações de pânico e para dotá-lo de conhecimentos precisos sobre a localização de todas as saídas de emergência.
Eis que, num dia soalheiro, um cheiro intenso a queimado vindo do corredor, acompanhado por um fumo enegrecido, fez disparar os alarmes: FOGO! Ouvem-se gritos, gera-se o descontrolo, é o salve-se-quem-puder. Hipólito, heroicamente, pega no extintor. Os nervos fazem com que parta a cavilha de segurança sem forças para conseguir com que o extintor dê mais que uma mera cuspidela de espuma. Atarantado, larga o extintor e dirige-se atabalhoadamente para o elevador, à frente de todos os seus desesperados colegas. Ao ver que este não funciona, grita em pranto “Para as escadas!”, no que foi prontamente seguido pelos colegas. Ofegante, com pulsações elevadas, é o primeiro a chegar cá baixo. À medida que os bombeiros tomam conta da situação, Hipólito conta um a um os seus colegas e, aliviado, repara que todos escaparam ao incêndio. Suspira com o sentimento de dever cumprido.
No dia seguinte, foi chamado pelo chefe. Para a promoção, estusiasmou-se. Pura decepção. O chefe:
- Ó Hipólito, você não escutou com atenção o briefing, pois não?
- Como?
- Hipólito, Hipólito… Então você não sabe que deve haver sempre, no mínimo, 2 vítimas por cada catástrofe destas? O que acha que os accionistas vão pensar ao saberem que estamos constantemente abaixo das quotas de sinistralidade laboral? Já viu o que os jornais vão dizer: “Transvest S.A. volta a salvar todos os seus funcionários após mais um estrondoso incêndio”? Se você quer ser herói, vá ser herói para outro lado, Hipólito! É um aviso que lhe dou! Percebeu, Hipólito?

Hipólito não poderia facilitar daí em diante. Ansiou pelo momento em que pudesse demonstrar que estava ao nível da responsabilidade que lhe fora confiada. Até começou a despejar beatas acesas nos caixotes de lixo cheios de papel na esperança de iniciar rapidamente um fogo. E, num destes dias, lá o conseguiu – um violento incêndio começou junto ao economato, perigando seriamente as vidas dos funcionários.
Hipólito tentou encaminhar todos os seus colegas para uma sala apertada e sem possibilidade de fuga, mas todos o ignoraram e encaminharam-se segundo as regras para as escadas de emergência em direcção à saída. Hipólito nervoso, estava a falhar outra vez e já tossia com o fumo. Tinha de agir com celeridade. Pegou no extintor e foi atrás dos colegas, a ver se encontrava alguém mais atrasado. Deparou-se com o Raúl do departamento fiscal, que se prepararava para descer o primeiro degrau. Aplicou-lhe com um forte golpe de extintor na nuca. Raúl tombou desamparado no chão, sangue abundante a escorrer-lhe, cabeça aberta e gritos de dor incontida, por entre pedidos de misericórdia. Hipólito atingiu-lhe com mais 3 ou 4 bastonadas de extintor na cabeça, desfazendo-a em pedaços de ossos, carne, miolos, vísceras e sangue, assegurando-se que Raúl estava eliminado. Então surge mais uma retardatária, a Mónica da secretaria. Virou-lhe com o extintor e espumou-lhe a cara o suficiente para a cegar. Depois, empurrou-a escadas abaixo e ela desmaiou, moribunda, com a perna possivelmente quebrada. Hipólito correu mais do que podia para salvar-se, enquanto Mónica era deixada à sorte das labaredas que crispavam forte e cada vez mais próximo.
Foi um sucesso. Finalmente ocorreram as primeiras vítimas na empresa de Hipólito, após vários anos de tragédias. As acções da Transvest S.A. subiram 3% num só dia, invertendo uma tendência negativa que se vinha arrastando há alguns meses, atingindo um novo máximo homólogo e contrariando a descida generalizada do mercado. Os seus colegas, embora lamentando a perda de Raúl e Mónica, gabaram as capacidades de Hipólito, sabendo também que a empresa respirava agora bons augúrios, provavelmente até poderia expandir-se para o Brasil ainda naquele semestre. Hipólito, ufano, conseguiu a sua promoção passado pouco tempo, acumulando as novas funções com o título de “supervisor de evacuação honorário”.

terça-feira, junho 20, 2006

"Os Belenenses"


Belém. Belém dos pastéis bem direccionados ao estômago – ao contrário dos livres directos de Paulo Torres. Belém da Cruz de Cristo sobre o magnífico fundo azul – e com as flores do plantel do FC Porto junto ao busto do Pepe, como o cartão vermelho junto da mão do rigoroso Martins dos Santos. Belém da II Liga – mais uma vez, ao que parece, e com contornos mais disputados que um lance a meio campo que envolvesse Rui França ou Eusébio (não a pantera negra, mas o caterpillar de Aveiro e Braga).

Houve uma Taça em 1988, cheia de Macaé, Baidek, Adão, Jaime, que ainda foi genial no futebol de praia, Galo, Juanico, o malogrado José António, Chico Faria e Jorge Martins, o veterano e anafado guarda-redes. Mas o declínio até à II Divisão, experimentado pela primeira vez entre 1982 e 1984, prosseguiu durante a década de 90, década na qual «Os Belenenses» sentiram fortemente o apelo da linha de água em diversas ocasiões. Quiçá inspirados pela estrela sem brilho, mas sempre com bigode, que foi Chalana; ou pela falta de cabelo de Mihailov (viram como ele recuperou depois de sair de lá?); ou pela ausência do último grande maestro que foi Mauro Airez, «Os Belenenses» viveram momentos desportivamente sofríveis no passado recente, mas ainda assim cromofilicamente frutuosos.

Principais responsáveis: logo à cabeça, um avançado que deu azo às mais variadas fantasias – Monga. A táctica nunca foi o seu forte e a técnica também não era muita, mas o seu nome chegou a um píncaro nunca antes visto. Monga. Rima com Bonga, o que não é bom. Monga. Diminutivo depreciativo de mongolóide, o que ainda é pior. Monga. Existiu, é verdade, não é invenção, estive vivo para presenciar e vivo estarei para transmitir a gerações futuras o nome que ainda hoje desperta sensações nas despidas bancadas azuis do Restelo: Monga.

Salam Sow quis chegar aonde Monga chegou. Mas falhou. Fertout procurou ser um bom jogador com um nome esquisito – não é fácil, sabia disso. Disfarçou apenas no início. M’Jid, embora voluntarioso, nunca ultrapassou o estigma inerente ao apóstrofe que tão distintivamente ostentava no nome – o de ser um jogador não mais que razoável, que desaparece ao fim de pouco tempo (a excepção mais honrosa foi, talvez, N’ Dinga). Honi Serge, camaronês promissor, deu-se mal com os ares do Restelo, tão propensos a ofuscar estrelas emergentes, vide Zoran Ban ou Adamczuk. Darci, poderoso brasileiro, não prometeu nem resolveu nada. Talvez Gonçalves, português remediado, ainda tenha sido quem mais remou contra a maré de vulgaridade que assolou esta zona nobre de Lisboa. Mas quando viu que andava a remar sozinho, exilou-se na Amadora e por lá desapareceu.

Estrategas tacticamente desenvolvidos, como o fantástico croata Bogicevic, não conseguiram fazer passar a sua mensagem ao balneário. Sorrisos como os de Milton Mendes e os de Nito não levantaram a moral do plantel. Corridas e fintas de João Paulo Brito, Carrasqueira ou Verona apenas deleitaram a espaços a “Fúria Azul”. Os arremessos laterais de Álvaro Gregório, que podiam ser a sua imagem de marca, perderam-se na mediania. Pedro Estrela acrescentou pouco brilho ao que seria esperado do seu nome. Pontapés e cabeçadas de Guto, Edmundo, João Manuel Pinto ou Orestes lá deixaram as suas marcas nos adversários, mas não marcaram golos. As bolas que Pedro, o Espinha, deixava anichar-se nas redes desesperaram os eternos suplentes Adamo e Justino. Nem a técnica perfumada de Taira, Tulipa ou de um velhito Abílio a conduzir jogo, com o apoio de Mauro Soares (que ainda andou pelo Algarve e conseguiu enganar fugazmente o Sporting), reconduziu os azuis a patamares superiores ao meio da tabela. Para cúmulo, duas das maiores promessas belenenses, Tonanha e Seba, que refinara a sua técnica invulgar no inevitável viveiro espanhol que foi o Desp. Chaves, abandonaram o futebol por problemas de coração.

E o coração destes adeptos, Velhos do Restelo, está um pouco como estes desgraçados cromos – aos solavancos. Para já, abandonaram os domínios da Superliga. Nós continuaremos por cá, atentos à fornada que está ao lume na fábrica dos pastéis. Na temporada que findou, os olhos estiveram postos em Dady, reforço que animou as hostes azuis, tanto como Rodolfo Lima e quase tanto como um pontapé de Ruben Amorim à barra ou mais uma bola de golo falhada escandalosamente por Ahamada, após trabalho esforçado de Fábio Januário na esquerda. Na próxima temporada, quem virá?

segunda-feira, junho 19, 2006

O Menino Que Chora


- Olha, se não te importares, posso fazer-te mal?
O pintor fazia um esforço para mostrar-se muito calmo. O miúdo ficou tentado a dizer que sim, inebriado pela claridade que furava a brecha na janela daquela cave despida e pelo canto de sereia do pintor.
- Vá lá. É só um bocadinho de mal, não vai custar nada.
O miúdo baixou a cabeça, saltou do banco. O senso comum berrou bem alto.
- Mas eu acho que se me fizeres mal isso não vai ser bom para mim...
- Eh pá, mas isso vai ser bom para nós, puto! - explodiu o pintor - É uma ideia que vai subverter todas as convenções da arte! Tu podes ser uma estrela! Ganharemos projecção internacional! Eu não te vou aleijar muito, prometo!...
- Uma estrela? Como a Maria Amélia d' "Os Morangos com Açúcar"?
- Mais do que a Maria Amélia! Muito acima dela! Estratosfericamente acima dela! - exultou o pintor, gestos largos por baixo da capa tingida por cores secas, boina a escapar-se-lhe da testa.
O miúdo mordeu os lábios e olhou para o pintor, que lhe fixava com um sorriso desenhado na cara, em expectativa, dobrado para si, braços estendidos para si.
- Qual é o mal que me queres fazer?
- Pouco mal, pouco mal!... Um poucochinho de mal... Um malzinho, vá lá. Pronto, eu nem devia chamar aquilo de mal... É mesmo uma coisa pouca...
- Tipo o quê?
- Tipo um pontapé nas canelas, daqueles que os teus amigos te dão quando jogas à bola...
- Não!
- Então um calduço, como se estivesses a jogar à batata-frita...
- Não!
O miúdo parecia começar a embirrar. O pintor insistia.
- Um corte com o x-acto no indicador da mão esquerda? Uma leve torção do pescoço? Um puxão nos cabelos? Espremer-te uma borbulha nas costas?
- Não! Não! Não! Não! Isso aleija-me!
- Mas não te aleijo muito, prometo... Que tal uma estaladita nas trombas?
- Não! Tens que me fazer mal sem me aleijar! Tens que me fazer um mal que eu goste!
O pintor exasperou. O miúdo não estava a cooperar.
- Dá-me um rebuçado... - pediu a criança, inocentemente.
O pintor anuiu, enfadado. Deu-lhe um caramelo espanhol que habitava no seu bolso há vários meses. Duríssimo. Mais resistente que as decrépitas paredes daquela húmida e secular cave.
- Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Que merda é esta que me deste? Os meus dentes!!!!!!!!! - e o miúdo deixou escapar uma lágrima.
Ficara aberta a porta para a eternidade.
- Chora, puto, chora... Isso... A dor de dentes é tramada, não é? Agora põe o teu rabinho em cima do banco e fica quietinho... senão comes outro caramelo espanhol!
- Que merda, pá! Este caramelo é pior que a sopa de agrião da avó!
O pintor mordiscou a língua que se escapulia pelo canto da boca e, com a mestria própria dos artistas predestinados, captou o escorrimento da lágrima sobre a cara luzidia da criança. Consta que não teve filhos nem molestou mais crianças durante toda a sua vida.

sexta-feira, junho 16, 2006

Kiss My Jazz "Doc's Place, Friday Evening" (1996)




Prosseguindo com o ecletismo anunciado no primeiro post deste blog: para mostrar que isto não vai ser só futebol, falemos agora de música.

Este não é o álbum do momento, definitivamente. Não é novo, não passa na rádio, não é inglês, não é americano, não é parecido com D’ ZRT (salvé, deuses da pitalhada) e a banda já nem sequer está em actividade. Por isso, e pela música em si, é que tem a honra de ser o assunto do primeiro post a sério (se assim podemos chamar) deste blog.

O nome desta banda é fabuloso. O álbum… sejamos francos, é de uma irregularidade monstruosa. Que é como todos nós somos – ou tu és daqueles que tem a mania que és maníaco-depressivo desde os 7 anos ou daqueles que pensas todos os dias que ainda vais ser astronauta? Todos temos os nossos momentos bons e maus… E este álbum tem boa música, daquela propriamente dita, e, simultanemente, tem vários momentos de não-música no seu sentido formal. É uma montanha russa em formato sonoro, sem nunca ser especialmente barulhenta. Digamos que é uma montanha russa dentro de um sótão apertado no centro de uma cidade pluviosa (Antuérpia deve ser assim, imagino).

Isto não é só jazz. Retém a improvisação, o espírito de uma jam, mas não é só jazz. Mesmo que fosse só jazz eu não saberia dizê-lo, não sou grande especialista nessa área. Sente-se que há por aqui algo mais. Há álcool, há gajos que apareceram no estúdio e mexeram com alguns intrumentos, estórias sobre amigos imaginários, sacos de plástico pretos, esquizofrenia, pedaços de canções descolados do seu contexto e doses de experimentalismo sonoro. Há funk, há noise-rock, há violinos, trompetes e conversas sobre chapéus. Não há hip-hop, nu-metal, folclore mirandês, R&B, nem sequer uma atitude muito rebelde para com o mundo em geral – isso é certo. Portanto, “música alternativa” é a máxima catalogação que consigo para este álbum. Muito suspirarão – “ganda seca!”

O álbum é muito bom, mas não considerem isto uma crítica. Não consigo ser imparcial com este álbum. Isto é mais uma opinião de um adepto sem muita credibilidade, apaixonado desde o início pelo espírito que a banda empresta ao álbum.

O álbum é tão bom que até gosto das faixas que são más. Isto é, aprecio de certa forma aqueles registos sonoros que ficam extraordinários ali, no alinhamento do álbum, como aperitivos entre refeições que enchem. O álbum ganha imenso com estes interlúdios, embora não os ouça isoladamente.

E é reconfortante saber que quase ninguém sabe que eles existem (ou que existiram). Deixem-nos estar assim.

Abençoados sejam estes belgas que seguiram pelos caminhos mais obscuros que dEUS abriu.

Classificação: 8/10
Faixas a reter:
“The Stud vs Drunk Kid”;
“Nails”;
“Mute Fish”

O Big Bang



Experiência... Som... Som... 1,2... 1,2...

Serei mesmo eu a entrar na blogosfera?

Este é um blog neo-surrealista-experimental-hardcore pimba-etc., como o nome indica.

Não vai tratar de nada em particular e de tudo em geral, salvo seja.
Parafraseando Herman José, vai ser a concretização física dum "sentimento de absorção ao contrário".

Se falar de futebol (MAS NÃO sobre o Mundial! Por favor, já estou farto de tantas conferências de imprensa!...), tanto melhor.

Deixo aqui um exemplo... [Capa d' "A BOLA" de Dezembro de 1986, após um famoso jogo no já demolido Estádio José de Alvalade]

Vamos ver como corre.