quinta-feira, agosto 12, 2010

Sobre Uma Rapariga

Larissa acordou e despiu-se. Isto é, tirou a cuequinha de renda que lhe incomodara de sobremaneira o sono. Agora já estava mais à vontade. Livre. Esbelta, com os seus trinta quilos de silicone e uma arroba de botox. Foi ao Photoshop retocar-se e saiu para dar uma volta. Toda a gente olhava para ela e Larissa ficou apavorada. “Queres ver que me esqueci de tirar uma peça de roupa”? Mas não. Estava tudo normal. Os bicos da mama já estavam quase a rebentar com uma montra e ela desceu a mão até ao seu grelo rapado para se certificar que tudo estava como devia ser. Ou seja, nu. E estava. Seria o quê, então? Os sapatos, que estariam a tapar os tornozelos? Então descalçou-se. Sentiu-se mais livre. Mas as pessoas continuavam a olhar, os homens babavam-se, as mulheres desviavam-se para não serem atingidas pelas suas majestosas mamas – que já asfixiaram javalis adultos e abriram 50 cervejas de seguida sem um único arranhão –, as crianças pediam leite e as mamãs diziam “aquilo não dá o leite que vocês querem, só recebe o leite que vos fez”. E as crianças ficaram na dúvida, pelo menos até aos 12 anos. Larissa sorria e tentava perceber o que ia errado. “Parece que nunca viram ninguém despido”. Seria do sinal na cara? Devia ser o sinal na cara. Na televisão as pessoas nem notam, mas ao vivo é tramado. Aquele sinalzinho irritante parecia uma poeirazinha naquele universo curvilíneo de carne e plástico, mas sobressaía indecentemente e sem piedade. Larissa tinha a certeza que só podia ser aquele maldito sinal e ficou triste. Toda a gente com os olhos postos nela, só para criticar o seu inestético e horripilante sinalzinho. E então despiu-se, como protesto. Mas já estava nua e descalça. Então cortou um bocadinho o cabelo, para se sentir mais à vontade. E sentiu-se mais livre. Mas as pessoas continuavam a olhá-la.
O desconforto provocado por Larissa nas outras pessoas despertou-lhes reacções estranhas. As mulheres, enquanto a contemplavam com um misto de estupefacção, repulsa e inveja, eram atravessadas por pensamentos impuros. Que iam do “esta gaja mete nojo com o seu corpo pré-fabricado”, passando pelo “eu matava esta gaja só para acabar com as manias dela”, fazendo um desvio pelo “eu também podia ser assim, mas não quero” e acabando no “ela pode ter um grande par de mamas mas eu tenho uma mala melhor que a dela”. Os homens, vencidos e com uma enorme inércia físico-mental, pararam o que estavam a fazer. Mesmo aqueles que não faziam nada deixaram de o fazer para serem colhidos pela surpresa. Os seus cérebros bloquearam. Tudo deixou de fazer sentido, tudo convergiu para aquele corpo plastificado que atraía como um poderoso íman. Bocas escancaradas, olhos bem abertos, um fluxo de sangue a ferver pelo corpo. Paralisados, com um sorriso parvo, declararam logo rendição incondicional. O que enfureceu ainda mais as mulheres e as fez arrepender de alguma vez terem proferido a frase “o meu Felismino? O meu Felismino não é igual aos outros”. Ah pois não. E se as crianças estavam confusas com as reacções dos adultos, os gays estavam claramente indignados com a enorme demonstração de liberdade da Larissa: é que ela nem precisou de uma parada folclórica para se mostrar. Porém, como ficava mal criticá-la por fazer aquilo que eles sempre sonharam fazer e só não faziam porque não tinham tomates para fazê-lo, remoeram em silêncio a atitude desprendida de Larissa.
Pressentindo que a sua presença era demasiado incomodativa, Larissa decidiu ir para outro sítio. Foi para a praia. Mas não para uma praia de nudistas. “Não me sinto à vontade”, confessou. Mas não que achasse mal; aliás, ela já se tinha despido. De preconceitos. Há muito tempo. “Não sei, parece que há sempre um ou outro exibicionista pelo meio que estraga o ambiente numa praia de nudistas”. E na praia sem ser de nudistas ela sentiu-se mais confortável. Já nem toda a gente lhe olhava da mesma forma, habituada ao costumeiro topless aqui e ali. Ao fim de algum tempo, e após ter rechaçado um engraçadinho que queria jogar à bola com uma das suas mamas (“Vá lá, a minha bola foi para o mar… E tu também podes vir jogar, se quiseres…”), Larissa sentiu-se mesmo feliz. E então resolveu despir-se para comemorar. Mas ela já não tinha nada para despir. Como tal, ficou triste outra vez. Deprimida, vagou solitária no caminho até casa, cabisbaixa, insegura, até que descobriu uma loja de roupa. Em promoção.
Larissa adorava roupa. Embora não parecesse. Gostava de grandes casacos de pele. Sabiam melhor quando se despia, por serem mais pesados. E tinha um guarda-roupa impecável. A roupa nunca se estragava nas mãos dela. Aquilo era para usar uma vez e guardar como espécie de registo histórico. “Aquela blusa”, comentou, “vestia-a em Agosto de 2008. Depois despi-a e nunca mais voltei a vesti-la”. Tinha custado duzentos e tal euros. Era já uma peça de colecção procurada pelos seus fãs, como, aliás, todo o seu guarda-roupa. Especialmente os soutiens. Eram mais de mil, cada um adaptado à forma das suas mamas ao longo do tempo. Ela começou no tamanho 28, tinha ela 7 ou 8 aninhos, e já ia no 74. Mas como o silicone pode deprimir-se consoante a pressão atmosférica e a forma como ela dorme, por vezes veste do tamanho 40 ao 56 na mesma semana. “Na semana passada, comecei com um 56”, exemplificou, “mas depois de me ter entalado numa porta na 5ª feira, tive que mudar para dois 40, porque as mamas ficaram temporariamente mais pequenas e mais verticais. Mas apliquei-lhes um sifão na 6ª feira e depois regressei ao 52”. Agora, comprou outro soutien e umas cuequinhas, só para se proteger do ar-condicionado. E depois foi para a rua despir-se. Desta vez, num acto puramente hedonista. Ela já se tinha despido para protestar, para celebrar, para incentivar e até para matar – houve um tipo que morreu afogado, e feliz, no seu peito, ao que dizem foi suicídio premeditado. Mas desta vez estava a despir-se só porque sim. Porque lhe apetecia. E quando o fez sentiu-se muito livre. Como um passarinho. Ou como a sua passarinha, que respira ar puro muito melhor que certos narizes.
Depois Larissa foi comer qualquer coisinha. Um ramo de salsa, meia cereja e um sumo de alperce. Depilou-se na paragem dos táxis, que ela notou dois ou três pêlos a florir junto ao seu fértil clitóris, que se assemelhava a um berbigão gigante insuflado de botox. Era ver os taxistas a atropelarem-se uns aos outros para conseguirem ficar com aquela cliente. O mais esperto dos taxistas, uma espécie de divindade local, ganhou expectavelmente o concurso. Tentou fazer conversa com ela, enquanto ajeitava o retrovisor. Era notório um brilho nos olhos e a costumeira desatenção no trânsito aumentou significativamente; não houve vermelho que fosse respeitado e a regra da prioridade foi completamente subvertida. Como quase sempre. Mas era Larissa que estava no banco de trás, maquilhando-se com batons e pozinhos e espalhando creme anti-ferrugem nas mamas. Pelo sim pelo não. O taxista quis arrancar-lhe umas palavrazinhas. “Então, já viu este tempo”? Mas a conversa não era o forte dela. “Então, e o nosso Benfica”? Mas o futebol não era o forte dela. “Então e viu os ladrões do nosso Governo”? Mas a política não era o forte dela. “Então e aqueles tipos do programa da dança, hã? Aquilo é que é entretenimento”! E ela lá reagiu com uma risadazita parva, que coisas parvas já eram mais o seu forte. Em abono da verdade, os únicos pontos fortes da Larissa eram os seus bicos da mama e o ponto G; tudo o resto era de uma mediocridade exasperante. Mas isso nunca a impediu de ser popular. A meio da viagem, Larissa sentiu-se agoniada. Aquele sumo de alperce tinha sido demais, ela não estava habituada a ingerir quantidades de líquidos tão elevadas que não sémen. Soltou um arroto brutal. O táxi tremeu, mas o pior foi a sua mama. Não resistiu às ondas de choque e rebentou. A mama explodiu e largou uma poia de silicone bem em cima do assento. O taxista ficou pior que o seu banco, que estava estragado. E Larissa também ficou muito desconsolada.
Foi para casa chorar em posição fetal, lacrimejando agarrada aos restos da sua mama e acariciando a sua outra mama, protegendo-a de possíveis agressões externas. Apetecia-lhe despir-se, numa perspectiva de fazer as pazes consigo mesma, mas não estava em condições de se ver ao espelho. Então lembrou-se que tinha uma Jabulani que tinha trazido do Mundial da África do Sul. Procurou o pipo da bola, puxou-o para fora e introduziu a bola no buraco deixado pela sua mama desaparecida. Estava ali um belo substituto. Já podia despir-se outra vez à vontade. Para se sentir livre. E seria o que tinha feito, se não estivesse já nua. Então lembrou-se que ainda tinha maquilhagem. Despiu-se de maquilhagem. Ficou feliz. Foi vestir um soutien para tomar banho, que a água pode misturar-se com o botox e inchar e depois ela ficava tipo boneco da Michelin, como aconteceu no Natal de há dois anos, em que o pai dela ia mordendo-lhe os seios, pensando que aquilo era o peru. Mas apareceu um tipo do Círculo de Leitores e ela foi atendê-lo. Como homem que era, o tipo do Círculo de Leitores engasgou-se e foi incapaz de traduzir por palavras as recomendações do mês, apontando para fascículos de História ao calhas. Larissa não percebeu e não ia comprar nada, que ela não era dessas coisas de ler e pensar e fazer continhas com pauzinhos e bolinhas, mas percebia como poucos de cremes faciais. Para não deixar triste o tipo do Círculo de Leitores, julgou que seria uma boa forma de animá-lo se se despisse. E toca de sacar as mamas cá para fora. O bico da mama ainda boa acertou-lhe como uma bala nos olhos. E ele desmaiou. Ela riu-se e fechou a porta, concluindo que o desmaio era o derradeiro sinal de satisfação.
Já deitada no seu leito, com uma tanguinha para que nenhuma migalha perdida nos lençóis entrasse sem pedir licença em sítios impróprios, Larissa sentiu o sumo de alperce ainda a remoer-lhe no estômago. As tripas, que, como o resto do corpo, estavam debruadas a silicone, começaram a grunhir. O gás a subir. E Larissa mandou um arroto que se ouviu no fim da rua. Resultado: furaram-se-lhe as nádegas. Três buracos assim de uma assentada no seu traseiro. Ela ficou triste. E então despiu-se. Sentiu-se mais livre. Mas amanhã teria de voltar ao médico dos implantes e plásticas. E rezar para que não fizesse muito calor, senão ainda derreteria como um sorvete ao sol a caminho do consultório.

terça-feira, agosto 03, 2010

O Sinal da Besta

[António está sentado numa cadeira giratória com a largura de uma pista de aeroporto. Na mesa à sua frente repousam vários CDs, LPs, uma caveira, algumas correntes e papéis soltos. Nas paredes à sua volta estão afixados posters e bandeiras com gajos vestidos de preto envergando camisolas de outras bandas e ostentando grandes cabeleiras. Behemoth, Sacred Sin, Metallica (anos 80, ainda com o Cliff Burton), Queensryche, Entombed, Celtic Frost, vampiros, enfim, não se consegue ver a cor da parede. Chega o Nuno.]
Nuno (N) – Então, pá?
[Trocam um cumprimento com os punhos direitos a encaixarem um no outro enquanto desviam o cabelo com as mãos esquerdas.]
António (A) – Tudo em cima?
[Nuno faz o sinal da besta, ou aquele gesto dos corninhos com a mão. Ensaia um headbanging.]
N – Metal up your ass!
[António mostra um ar de enfado enquanto demora 15 segundos a rodar 45º com a sua cadeira, sentindo-se o chão a estremecer.]
A – Meu, tu és tão estereotipado...
[Nuno fica surpreendido como se visse os Manowar no Pine Cliffs da Quinta do Lago a tocar para 200 vips.]
N – Qual é, meu? ‘Tás stressado com alguma cena?
A – Eh pá, não, pá. ‘Tou aqui a pensar numa cena.
N – Que cena, meu?
A – Pá, tu ‘tás a ver a teclista dos Eternal Suicide?
N – Então não? A gaja que já ‘teve nos Gorefiction?
A – ‘Tás a pensar na Kristina Stuvenslud, não é?
N – Stuv quê?
A – Não ‘tás a pensar nessa?
N – Não, pá. Quer dizer, acho que não. Uma gaja loura com uma tattoo de um pentagrama no antebraço esquerdo, não é?
A – Meu, essa é a Frida Hertzbaum dos Motherkill.
N – Ah pois é. Não faças caso. Mas a teclista dos Eternal Suicide já tocou nos Gorefiction, não já?
A – ‘Tás a falar da Kristina Stuvenslud, não é?
N – Pá… acho que sim…
A – Sim, ela foi a teclista dos Gorefiction, mas já saiu dos Eternal Suicide há 3 anos, depois daquele EP lançado em conjunto com os Mastodont Pain para aquela label independente sueca, a Distasteful Records.
N – Quê? O “Beastfest”? Aquele que tem a faixa de 10 minutos que foi o grande êxito underground da Finlândia do Verão de 2007, o “Nightwish for Blood”?
A – A faixa tem 10:59, pelo que tecnicamente é uma faixa com 11 minutos. E o “Nightwish for Blood” foi um relativo sucesso, na senda dos trabalhos mais convencionais que já tínhamos presenciado em “Carnage Birthday”, o seu debute de 1998. Mas o melhor foi o B-Side do single “Christmas Overkill”, o épico “Unecessary Slaughter”, que abriu novos caminhos para o speed-gore-symphonic-metal.
N – ‘Pera aí… mas os gajos não lançaram uma compilação com B-Sides há pouco tempo, o “Undercover from Hell”? Não me lembro de ver lá o “Unecessary Slaughter”…
A – Era uma faixa escondida.
N – Ah…
A – A seguir ao “Pretending You’re Jesus”. Havia um silêncio de 2 minutos, depois uma leitura satânica em reverse durante 30 segundos e começava o “Unecessary Slaughter”.
N – Ah… Pois, está bem. Eu sempre gostei mais do “Christmas Overkill”. Curtes os B-Sides deles? Eu nem estava certo que eles tivessem lançado B-Sides…
A – Meu, não vamos começar a discutir B-Sides, pois não? Lembras-te daquela aposta que eu fiz contigo sobre o primeiro B-Side oficial dos Molesting God?
[Nuno nem se quer lembrar disso, sacode o cabelo para trás e mete as mãos nas ancas, mesmo por cima da corrente.]
N – Iá, iá, em que eu tive que ouvir o CD dos Creed a altos berros enquanto passava de carro com vidros abertos junto ao Hard Rock Café e depois tive que entrar lá dentro de tronco nu e gritar “can you take me higher?” e a tocar em air guitar o riff logo a seguir – que era “tan-dan-dan-dandradan” – até que os gajos me metessem fora dali? Sim, foi um momento infeliz… nunca mais me meti em apostas…
A – Pá, tu é que quiseste começar a falar de B-Sides… Eu ‘tava aqui na minha e tu começaste com cenas sobre os Molesting God, a dizer que os tipos eram a next big thing de Leipzig e que tinham aparecido logo com um álbum arrasador do ar, que nem demo tape tinham nem nada, e eu “’tás-te a esquecer do primeiro single deles lançado por uma label sediada em Magdeburgo que tinha um B-Side que iria marcar toda a sua carreira dali em diante” e tu “ah, ‘tás a ler” e eu tumba, vai uma aposta? E pronto, assim que te mostrei um LP que comprei numa feira metal-underground de Salzburgo e meti as liners notes à tua frente ficámos todos esclarecidos. Pá, a culpa foi toda tua.
N – Vá, mas continuando, a teclista dos Eternal Suicide…
A – Mas ‘tás a ver bem quem ela é, não é? Não é a Kristina Stuvenslud, que essa já saiu e agora está nos Martirium Horrendus. E a fazer uma bela bosta de álbum.
N – Como sabes?
[António sacode o cabelo para trás, inspira fundo e revela o seu orgulho.]
A – Pá, tive acesso à demo deles, através do meu amigo Jonas Olafsson dos Vampyryah. Sabes como é, eu ‘tou dentro da cena e conheço uns tipos e tal e talvez um dia lance o meu próprio projecto de lírica onírico-gótica, mas adiante… Meu, os tipos agora estão a fazer um crossover entre o sludgemetal e o neo-gótico e aquilo não se parece. A Kristina está perdida no meio daquilo tudo. Os Martirium Horrendus nunca mais foram os mesmos desde que o vocalista saiu para ir trabalhar para uma cadeia de supermercados na Lapónia. Longe vão os tempos dessa grande malha que era o “Ask Me To Die”, de 1995, e que chegou a entrar numa colectânea promovida pela revista francesa, entretanto descontinuada, que era “Le Sphinx”.
[Nuno entusiasma-se.]N – G’anda som, pá! Aquele baixo sempre a dar, aqueles breaks de bateria,… man!... Tipo, como é que era? [Faz voz cavernosa e cara de fúria.] “Digest my pain, the beast runs you dry, it’s driving you insane,…”
[António entusiasma-se. Abana a cabeça e o chão treme. Demora alguns segundos a levantar os braços e a fazer o sinal da besta. Faz voz cavernosa.]
A – “… Now ask me to diiiiiiiiiiiiiieeeeeeeeeee!... Slow in pain!...”
N – Yeah!, ganda som, ganda clip, quando os tipos passam pelo matadouro e começam a contemplar as cabeças de gado decepadas…
A - … iá, iá, e depois passam umas imagens de pessoal a rezar numa igreja do sul dos EUA com os Martirium Horrendus na assistência…
N - … e depois os tipos começam a ficar possuídos e aparece uma boazona de cabedal e arranca-lhes os corações e vai-se a ver e o padre afinal era Lucifer e as velhas começam todas a gritar e a saírem-lhe pequenos elfos pela boca… pá, brutal!
[António pára. Fica a olhar para Nuno com uma expressão mista de incredulidade e reprovação.]A – Meu, não eram elfos. Eram as imagens das próprias pessoas cobertas com lama e musgo a saírem delas mesmas. Era uma crítica deveras profunda ao extremismo religioso.
N – Ah era?
A – Era.
N – Pá, pareciam elfos.
A – Mas não eram. Achas que os Martirium Horrendus iriam entrar por esses caminhos de espectacularidade mórbida gratuita?
N – Pá, parecia mesmo… Desculpa lá, não ficava mal…
[António quase que tem um enfarte. Responde com um tom de voz mais alto e esbugalha os olhos, como se fosse para possuir Nuno. Só a mente, não o corpo. Até porque se quisesse possuir o corpo de Nuno teria de se mexer, o Nuno iria perceber e podia fugir durante os cerca de cinco minutos que levam ao António processar a informação que chega do seu cérebro aos seus membros e proceder ao ataque físico ao Nuno.]
A – NÃO FICAVA M… meu, meu, meu, qual é a tua, pá?!? Que é ‘tás para aí a dizer? NÃO TEM NADA A VER, OK? Fosga-se, qualquer dia ‘tas a dizer que Nostradamus Erectus é folk-progressive-grindcore-metal, não?
N – Bolas, ó António, qual é a tua, pá? ‘Tava na boa… Para dizer a verdade, nem os conheço muito bem, só vi umas cenas deles no YouTube…
A – Pois é, Nuno, pois é… a tua cena é que não conheces bem as cenas e depois dizes cenas que… eh pá, nem vou qualificar, meu. Fica só entre nós que é para não te envergonhar.
[Nuno descai o cabelo como um cãozinho coloca o rabo entre as pernas.]

N – Pronto, desculpa lá, pá. Mas ias tu a dizer…
A – Pá, a teclista dos Eternal Suicide. A nova. A Olga Ruhr. ‘Tás a vê-la?
N – A Olga Ruhr? A que foi baixista das Witch Kraft?
A – Ooooora bem! [António sente um alívio e exala com satisfação, afastando assim metade dos papéis em cima da mesa, tal a força do seu suspiro.] Essa mesmo. Agora é teclista dos Eternal Suicide.
N – Mas ela não era extremamente limitada? Ouvi dizer que as Witch Kraft ‘tão bem melhor sem ela… E agora é teclista nos Eternal Suicide?
A – Não era nada limitada…
N – Então não era?
A – Não era nada…
N – Era, pois!
A – Ela esteve a aprender música entretanto…
N – Oh António, pá, até tivemos discussões de meia-noite por causa do som do baixo das Witch Kraft, contigo a dizer que até os Doors tinham um melhor baixo que elas…
A – Ih, olha lá, eu nunca me referi às Witch Kraft nesses termos tão comerciais… Quanto muito comparei-as aos Sarcastic Gallows…
N – A quem?
A – Aos Sarcastic Gallows. Aqueles das grandes malhas retro-death-hardcore… Que fizeram a “Schwaintreprock”, “Missiúgótago” e “Éniueideuindeblous”…
N – Hã?
A – “Éniueideuindeblous”.
N – Não percebi…
A – Não é para perceber. Eu falo muito junto do microfone, monocordicamente e rápido que é para ninguém perceber as minhas calinadas em inglês. E como digo muita coisa as pessoas pensam que eu sou um grande cromo.
[António inicia um breve momento de silêncio envergonhado. Nuno percebe e acompanha-o num respeitoso silêncio para evitar mais embaraços.]
A – Pronto, agora é que ‘tás mesmo a ver a Olga Ruhr, não estás?
N – Sim, a ex-baixista das Witch Kraft que não tocava nada e agora é teclista nos Eternal Suicide… Que é que tem?
A – Pá, não vais acreditar, mas…
N – Sim?…
[António dobra-se para contar um segredo ao Nuno. Passam-se 45 segundos de grande expectativa para Nuno. António segreda.]
A - … acho que vi a irmã dela quando vinha para aqui.
N – A… a irmã… a irmã da Olga Ruhr que foi baixista nas Witch Kraft e agora é teclista nos Eternal Suicide?
A – A irmã dela. Em carne e osso.
N – E… como é que sabes que ela era?
A – Bolas, eu conheço toda a vida da Olga Ruhr. Das fotos que vi numa promo shot e da reportagem do seu baptizado em 1987, tenho quase a certeza que era a irmã dela, a Vanessa Ruhr, que andava por cá a tirar Direito na Lusófona.
N – Como podes estar tão certo disso? A família dela é toda da Polónia…
A – Não é bem assim; têm uns primos na Alemanha e há um cunhado dela que é guitarrista nos Tormentt, que são checos. Apenas fiquei com algumas dúvidas porque ela não estava a ir a caminho da Lusófona.
N – Pá… e então?
[António nem quer acreditar na indiferença de Nuno.]
A – ENTÃO?... Fosga-se, a gaja é linda. Pá, aquele corpinho esguio, cabelo vermelho escorrido até ao rabo, vestida de preto, botas com saltos de 20 cm, cinto de cabedal com espetos de metal, lábios carmim, pele cor de leite, um sinalzinho junto ao nariz, olhos claros pintados de roxo, tatuagem do diabo junto ao ombro, capa à vampira e a ler uma revista com uma reportagem dos Holocausto Canibal. Ainda por cima, acho que ela estava a cuspir sangue por causa de uma infecção lixada nos pulmões que lhe fez perder os dentes todos e inchar-lhe as gengivas, mas eu passei por cima disso tudo. Pá, fiquei apanhadinho. Pensei em zarpar com ela logo ali para a Serra de Sintra e sacrificarmos uns animais, ou cortarmo-nos carinhosamente aos dois com uma faca de gume afiado numa matiné de Domingo a ouvirmos Abhorrent Religion, ou torná-la na baixista da minha banda, que banda que se preze tem uma gaja boa a tocar baixo. Isto se eu soubesse tocar alguma coisa, claro. Mas pensei em muitas coisas bonitas desse género. Pá, senti um chamamento interior mais forte do que quando me despi para ir à sessão de autógrafos dos Leechmind e meti o pessoal todo a vomitar.
[Nuno passou o tempo todo a curtir o estilo dos Wicked Erection of Jesus num poster que estava atrás de si, mas sentiu que tinha de continuar a conversa.]
N – E o que queres fazer?
A – Pá… eu queria convidá-la para sair… mas acho que não faço o estilo dela. Acho que preciso de fazer exercício, perder uns quilinhos, que achas?
N – Olha, já foste a um spa?
A – Não… o que é isso?
N – Pá, é uma cena para o relaxamento, ‘tás a ver?
A – Tipo uma balada dos Satanic Peephole?
N – Não, ainda mais calma… tipo Mr. Stampede em 1990, mas a 33 rotações…
A – Ena pá, ‘tou a ver… tipo, cena calmíssima mesmo, bué da melancólico, iá, ‘tou a ver…
N – Pá, vais lá, há pessoal que te mete cenas nos olhos, pepinos e isso, trata-te da pele, das unhas, vais tomar um banhinho, fazes um iogazito se conseguires, põem-te umas pedrinhas nas costas, alinhadas ao longo da tua coluna vertebral…
A – Pedrinhas nas costas? Essa cena resulta?
N – Ouve, o Dave Mustaine é doido por pedrinhas nas costas… dizem que aquela cena é uma técnica chinesa boa para caraças…
A – O Dave Mustaine mete pedras nas costas?
N – Então, meu, não sabias? O gajo é alto fã de spas e podes constatar essa influência ao longo do último álbum…
A – Eh pá, pois, não ando a dar muita atenção ao Dave Mustaine… Nem parece meu…
N – Pois é, pá, pois é… tens de alinhar nessa cena… senão estás lixado… a Vanessa Ruhr vai cagar para ti.
A – Eh pá, não sei… e achas que isso do spa pode resultar?
N – Na boa, pá, na boa… os tipos têm programas para gajos que vão dos 9 aos 90 anos, sejam eles magros, gordos ou morbidamente obesos. Ou elefantes malfeitos, como tu.
A – Vou pensar nisso, pá, vou pensar nisso…
[António demora 30 segundos a virar-se e começa a desenhar um plano de acção. Iria inscrever-se num spa, “preferencialmente junto ao Parque das Nações”, disse-lhe o Nuno, “é lá que andam todos os meus amigos e até o vocalista dos Tarântula já foi visto por lá num programa de massagens tailandesas para se compatibilizar com o seu eu interior”, e, num prazo máximo de 3 meses, sentir-se-á revigorado, com menos 120 quilos e perfeitamente capaz de abordar Vanessa Ruhr na rua. Depois de a conhecer, iriam ver um concerto dos Death On Arrival à Incrível Almadense, celebrariam o seu namoro com um mosh apocalíptico e iria com ela para a Polónia, onde António ganharia um free-pass vitalício para o backstage dos Eternal Suicide e arrancaria um autógrafo da sua irmã Olga Ruhr só para se armar junto do Nuno, porque António crê que a gaja não toca mesmo nada e só está na banda por não se fartar de mostrar as mamas durante os concertos. Só uma coisa parecia perturbar António neste caminho inexorável até ao sucesso.]

A – Pá, e lá no spa é possível trocar as flautas e os sons da natureza pelo primeiro álbum dos Heaven’s Brothel?
N – Talvez, pá, talvez. Mas tens de levar tu o álbum e se calhar tens de pagar a reprodução do CD como um extra.
A – Bacano, pá! Não há problema nenhum! Let’s rock!
[Nuno sente que António está entusiasmado. Compartilha com ele o gesto da besta e assume a posição de quem vai tocar air guitar, afastando as pernas e agitando a cabeça para cima e para baixo.]
N – Whoooa!!! Metaaaaaaaaaaal!!!!!!!!!!!