quinta-feira, dezembro 28, 2006

Pobre Bock

A vida é isto mesmo, Fernando Oliveira.
Um golo mais, um gole a mais.
Fartura e esplendor, espuma e gás. Um ponta-de-lança com propensão para trocadilhos fáceis.
Fernando Oliveira nasceu no Porto, nos idos de 1975. Formou-se como jogador no clube local. Aí, presume-se, ganhou aptidões únicas. Uma relação orgásmica com o golo. Um epíteto que marca, de forma indelével, todo o futebol nortenho. Fernando é Bock, recebeu de braços e goelas abertas a sua notável alcunha. Bock é, sem complacências, um super goleador esquecido, poeta maldito do golo, homónimo de cerveja famosa, tudo num só corpo sedento de sentir as redes a balouçar.
Podia ser ficção. Talvez um Robin Hood das divisões inferiores. Quiçá um modesto Hercule Poirot a detectar as pistas do golo. Ou um rebelde incompreendido, o James Dean de Vizela. Mas não. Bock e a sua desdita são cruelmente reais, como mais um despiste no IP4.
A Bock só lhe faltou ser, realmente, super. Domingo após Domingo, Bock cirandou pelas hospitaleiras localidades entre Douro e Minho, no seu afã habitual por entre defesas incautos e guarda-redes desamparados. Labutou, porfiou, alcançou. Bock não parou. Bock facturou e facturou, encheu de alegria os adeptos locais. Glória. Esplendor. O terror dos adversários, sempre com um sorriso humilde a transbordar-lhe da boca.
Chuteiras afinadas e remates certeiros, a vida de Bock confunde-se com o golo, para ele vive, dele sobrevive. Bock libertou Freamunde dos jugos neo-imperialistas de Paços de Ferreira, vizinhos aburguesados da Primeira Liga, deu-lhes uma razão para acreditar que era possível ser maior e melhor.
Uma eterna promessa que aguardou pela concretização… A história de Bock é tão linda quanto trágica, porquanto Bock obteve um sucesso local esmagador que nunca extravasou os muros imaginários da II Divisão, a despeito de tanto golo, tanta alegria proporcionada, tanto abraço de companheiro e aficionado.
Bock podia ser mais uma atracção da tasca, mais um jogador de sueca ou dominó. Mas não; não se resignou e forneceu-nos, a todos nós, o verdadeiro sentido da vida: nunca desistir, sonhar até morrer. Em Freamunde ou em Castelo de Vide, resiste e esquece-te que te chamas Hilário Silva, a vida brilhará àquele que estende a esperança e a alegria aos que lhe seguem, figuras sombrias do fado que é esta vida de anonimato.
Este predador perdido no obscurantismo, vampiro da grande área, marcou que se fartou. Sempre mais ou menos ignorado pelos menos informados, mais interessados em produtos instantâneos ao olhar, nos grandes e caros artigos de montra, tipo Postigas, Nunos Gomes e Pauletas. Bock lá estava, atrás, furando marcações, atento à linha do fora-de-jogo, remetido para as prateleiras mais recônditas. Um modesto culto da personalidade, bem à sua imagem, desenvolveu-se à sua volta, reclamando-lhe o estatuto.
Passou por Maia, Amarante e Lixa, dali abalou como folha caduca voando ao vento, já com o olhar em Freamunde, onde explodiria, versejando ao ritmo do último toque em direcção às malhas. Pensavam os adeptos, este tem mesmo que sair, é muito bom, com demasiado gás para conseguirmos retê-lo por aqui, nos confins do semi-profissionalismo futebolês lusitano. Um Bock topo de gama. Saiu para o que muitos consideravam uma escalada progressiva rumo ao topo do mundo. O que se seguiu foi Trofense, Marco, Ermesinde, Marco e Leixões. A arrancada tardava. Bock lá ia amansando a bola, indicando-lhe com meiguice “o golo é já aqui”. Mas o sucesso, o reconhecimento, onde ficam?
A massa associativa de Freamunde resgatou de novo o seu filho adoptivo pródigo. Relançou de novo todo o seu instinto goleador. Hoje, a contabilidade dos golos já ultrapassa os cem, foi duas vezes melhor goleador dos campeonatos nacionais, médias inclusivamente superiores a um golo por jogo. E, já a perspectivar o ocaso desta incompreensivelmente desconhecida carreira, regressou ao segundo escalão português. Podia ser desta. Tinha voltado a subir o degrau, as ambições eram legítimas. Debalde. As nuvens não tardaram.
Os últimos ecos deram conta de um desaguisado entre o treinador dessa equipa, o Vizela, por sinal carente de golos, e Bock. Bock, pura e simplesmente… não jogava! Não tinha oportunidade de explanar todo o seu manancial de remates e cabeceamentos fatais, não podia fazer o que mais gostava. Mais uma vez, todas as portas ilustres se fecharam, desprezando o seu currículo construído com suor e golos. Não teve alternativa: empacotou a trouxa e regressou, outra vez, aonde lhe conseguiam dar crédito: Freamunde. A propósito da despedida, o amargurado Bock confidenciou:
“No dia da rescisão o técnico fugiu de mim, evitou falar comigo e não esteve na reunião que tive com a direcção. Tive de pedir ao presidente para me permitir ir ao balneário despedir dos colegas.”
Em Freamunde agradeceram. Com muita comiseração, assistem ao seu actual símbolo de volta aos únicos balneários onde sempre se sentiu acarinhado, mesmo sabendo que tal só é possível por manifesta desatenção dos grandes senhores do futebol. Ninguém quer saber de Bock. Ninguém quer olhar para os golos que Bock marca. Ninguém quer um avançado português competente nas suas fileiras. Ninguém quer mais um nome esquisito para ombrear com Sokotas, Kikins ou Buenos.
Bock resignou-se, enfim. 31 anos já não dão azo a grandes utopias. Está destinado a ser o profeta dos mais fracos, um anti-herói forçado pelas circunstâncias mais ou menos funestas que se atravessam no percurso da gente esforçada, mas sem o favorecimento dos astros. Uma história que acabou estranhamente como tantas outras, depois de tanto fulgor evidenciado.
Bock desabafou: “Encontro-me no auge das minhas capacidades como jogador e goleador e só lamento não conseguir concretizar o sonho de jogar na SuperLiga. Cada um nasce para o que nasce, e se calhar, por muito que dê nas vistas, não sairei deste escalão. Mas se tiver que ser assim, que seja sempre ao serviço do Freamunde”.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Dedos Pegajosos

Quando chegava ao fim de mais um dia, Eurico limpava os ouvidos. Não utilizava cotonete, servia-se do próprio mindinho. Esticava o dedinho e lá partia ele às entranhas auriculares, removendo todo o tipo de aglomerações resinosas que se acumulavam na orelhinha.
Pensava ele, filosófico, para com o tecto que fitava enquanto exercitava o seu mindinho incrustado de cera amarelada – tudo isto tem explicação, todo este nojo resinoso que extraio dos meus ouvidos aparece em quantidade proporcional às conversas que ouvi hoje. Eurico retirava cera dos ouvidos todos os dias, há largos meses. Qual prisioneiro, marcava todos os dias. Os dias particularmente porcos eram aqueles quando se estava numa aula, numa palestra, numa reunião, fosse ela de condóminos ou não. E depois os dias limpinhos, especialmente aos fins-de-semana.
- Ó Eurico, o que fizeste aos dedos? Estão pegajosos!
Eurico desculpava-se por este hábito questionável do ponto de vista higiénico. Leu numa revista que podia furar os tímpanos com aquela brincadeira. Ponderava. Valeria a pena sacrificar este medidor de interesse factual de conversas humano que é o ajuntamento de cera nos meus ouvidos? Em prol da saúde? Bem, mas se eu conseguir identificar correctamente quais as conversas que devo evitar, após análise da larga amostragem que já disponho, a minha saúde será óptima! Ouço aquilo que quero e estou certo que irei viver até aos 100!
- Está bem, Eurico, eu acredito. Para a próxima diz-me que eu guardo os teus rebuçados. Não precisas de andar sempre com eles nos bolsos, depois derretem.
Eurico acreditava em si. No seu método infalível. Em vender livros, ser guru de uma nova legião. Na ponta do dedo ao fim do mundo iria, dissecando o conteúdo semântico de cada conversa pelo meio. Do café ao cinema, do grupo de amigos ao emprego, Eurico planeou criar uma base de dados de lugares e gente, sublinhando pontos de interesse e de infâmia.
- Eurico, o chefe queixou-se de si. Diz que está sujo. Por causa de si, imagine.
Quiseram tramar os instintos de Eurico. Não reconheceram potencial comercial na tese de despiste de conversas desinteressantes pela limpeza de cariz otorrinológico de Eurico. Insistiu. Persistiu demasiado na sua tese, até a um ponto em que chegou ao pé do chefe e disse que a última reunião tinha-lhe deixado com a pele gasta de tanto esfregar os ouvidos. A gota de água que se seguiu não apanhou Eurico a nadar desprevenido no copo. Estava feliz por ter conseguido manter uma posição firme, apesar de ter perdido. Animou-se. Moral, moral, eu não ligo à moral puritana e vou continuar a tirar cera dos meus coratinhos, se tal for necessário para o meu bem-estar.
- Eurico… podes descolar o teu dedo do meu cabelo?
Eurico sentia a pressão da sociedade sobre si, cada vez mais gente a criar-lhe cada vez mais cera, caíram-lhe bolas de cera dos ouvidos enquanto andava na rua, tinha-se tornado um ser ultrajante de tanta abjecção.
- Estás bem, filho? Eurico… Fala comigo.
Perdera o controlo, todo o corpo era um bloco de cera viscosa em erupção, com epicentro nos seus ouvidos. Uma lava de cera brotou em Eurico, explodiu com toda a cera dentro de si. Ironicamente, quando Eurico pensava ter a solução, tinha afinal apenas garantido as razões para a sua morte. Quando descobriu a doença já não foi a tempo de ir buscar o remédio. Não tinha sido capaz de fugir às conversas desinteressantes. Estabelecera patamares pessoais de interesse que não conseguia acompanhar. Em todo o lado eram conversas parvas e chatas. Não existiria alguém que falasse consistentemente aquilo que Eurico queria ouvir? Isto Eurico não conseguiu prever.
Eurico foi devolvido à terra e com ele toda a cera de que se iriam alimentar os bichinhos. Deixou muitas sementes connosco, contudo. Quem não conhece alguém, pelo menos uma pessoa, que não passe o dedinho pelo ouvidito? Já alguém pensou verdadeiramente no significado que essas pessoas dão ao acto? Sabem que podem estar a pisar terrenos proibidos se pensarem mesmo a sério como o Eurico? A cera levar-nos-á à rendição. Queremos ter orgulho na nossa fé, compreensão perfeita das falas humanas nos nossos ouvidos.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Escusas de Tocar Outra Vez, Sam

Deleitem-se os subúrbios. Olá Brandoa, como vais Charneca?, Miratejo, tudo fixe?, props para o Bairro de Angola. O abraço mais sentido vai para Chelas, berço de personalidades ímpares na cena nacional. Creio que o próximo primeiro-ministro será de Chelas; a zona do abecedário em concreto, J, K ou L, de que ele ou ela provirá é que ainda está por decidir.
Porque se devem deleitar os subúrbios, e mais concretamente o betão colorido com graffittis de Chelas? Não, não é por causa do futuro primeiro-ministro, mas por causa de Samuel Mira e do seu novo álbum, apropriadamente acompanhado por um videoclip ultra sugestivo.
Sam, como é conhecido, estreou-se no mundo do hip-hop/ rap/ vontade incontrolável de rimar com gestos desengonçados (riscar o que não interessa; daqui em diante, designarei esta corrente artística como “YO” – para simplificar) muito cedo, daí o seu apodo “The Kid”. Tal e qual como o cowboy que lhe deve ter servido de inspiração, Sam foi intrépido e marcante logo no debute, com isso granjeando ouvidos e ouvidos que lhe deram um status privilegiado no mundo do “YO”.
Entre skates, graffittis e mais um leitor MP3 roubado numa paragem de autocarro, Sam debita versos a uma velocidade superior à da quebra dos vidros das janelas de um prédio de habitação social. É mais incisivo que uma ponta-e-mola, mais intimidador por si próprio do que quando acompanhado pela sua pandilha de aspirantes a delinquentes e mais observador que o agente policial que teima em aborrecê-lo. Ele é tão profícuo a nível lexical que os seus álbuns têm nomes que não cabem numa só palavra, tendo de as decompor em duas: “Entre(tanto)”, “Sobre(tudo)” e “Pratica(mente)”. Fabuloso. Genialidade criativa superlativa. Aposto que o próximo álbum será “Guarda(chuva)”, para aí.
Este Sam já não é a next big thing do “YO” português; ele já é a big thing. Vejam o videoclip dele. Não sei o título da música (?), nem do que ele fala (percebem-se algumas palavras soltas no meio do comboio de sons vocais que sai da boquinha afiada dele), mas suspeito que está a falar mal dos artistas portugueses que cantam em inglês e a defender os que cantam em português. Para tal, rodeou-se da sua trupe de vizinhos de Chelas, da qual nunca um bom “YO” se separa e sem a qual parece perder a faculdade de respirar, e foi assaltar uma emissora de rádio, expulsando tudo e todos do ar e transmitindo a sua mensagem de uma forma, no mínimo, um pouco agressiva. Não se coibiu de passar pelo estacionamento onde 4 personagens faziam o mesmo que eu aqui, dizer mal do mestre Sam, aparentemente à espera que o mesmo Sam fosse ter com eles e os educasse num tom ríspido – momento hilariante que recomendo. Também obteve a solidariedade, paga ou não, devidamente contextualizada ou não (quero acreditar que não, mas nunca fiando…), de Pacman, Rui Veloso, Zé Pedro e do jornalista Pedro Mourinho para a elaboração do videoclip e, eventualmente, para a tomada da estação emissora. Ecos distantes do Verão Quente, quiçá, com Pacman a dizer, num registo claramente responsável e didacta, que esse é o caminho a seguir, invadir um espaço público para impor os gostos pessoais de Sam, The Master (Formerly Known As The Kid).
Agora, permitam-me caluniar um pouco mais o Sam, já que actuo sob pseudónimo e ele já confessou não ler muito, o que me faz sentir deveras seguro deste furacão das palavras que é Sam.
O “YO” português é capaz de ser tão bom ou melhor que o “YO” americano ou francês, que nos chega ao conhecimento através desse excelente, mas levemente repetitivo, canal da grelha da TV Cabo que é o MCM. A principal diferença será que os “YO's” portugueses não conseguem arranjar carros suficientemente espalhafatosos nem mulheres deslumbrantes com grandes mamas e pequenas saias para se fazerem acompanhar. Cá não há Cadillacs abertos em Hollywood, com um clone ainda mais azeitado que a própria Jennifer Lopez dum lado e o pittbull do outro; há Citröens Saxo “tuning-ficados" a passar no Martim Moniz e as irmãs gordas do vizinho a mascar pastilha enquanto brincam com o seu novo piercing no lábio – e se conseguirem arranjar uma “dama” suficientemente provocadora, então ela tornar-se-á o objecto central do videoclip. O pittbull lá se consegue arranjar, pelo menos. Mas apesar do “YO” português estar ao nível dos demais, isso não quer dizer que o “YO” seja bom. Também não será necessariamente mau (embora para o meu gosto seja, e o meu gosto vale o que vale); é o espelho da cultura que temos hoje em dia.
E a cultura que temos hoje em dia está pelas horas da morte. Nem me refiro ao conceito “cultura” como uma forma de expressão humana; falo mesmo do estado das mentalidades contemporâneas. Particularmente num país onde reina a indiferença, o laxismo e o compadrio. Claro que Sam, e os seus amigos “YO”, se julgam virtuosos no mundo onde estão. Só que Sam e os “YO” estão apenas a aproveitar-se da degradação vigente, onde uma estação televisiva que tem como nome “Music Television” só passa, a níveis limitados, o que tem potencial comercial, por entre “reality shows” verdadeiramente execráveis importados da terra das coisas boas, os EUA, e onde o excesso de mau gosto quebra recordes emissão após emissão.
No que concerne à música em particular, é perfeitamente hipócrita a mensagem de Sam. É claro que ele defende-se com argumentos válidos, do género “não percebes nada”, ameaçando de permeio com uma carga de porrada (sempre com os seus compinchas a apoiar), Como bem notado pelas 4 personagens no estacionamento, se Sam fosse coerente, chamar-se-ia “Sam, o Cachopo”. Mas não, foi atrás dos dogmas “YO” americanos. Se Sam fosse contra a corrente, expressar-se-ia numa forma não necessariamente na moda como é o “YO” (embora Sam, que gosta de se vitimizar, considere que o “YO” ainda é “alternativo” – será que a televisão e a rádio já chegaram a Chelas, afinal?). Se Sam fosse mesmo bom, escusava de acusar outros companheiros de vida (admitindo que ele é mesmo músico). Se Sam não fosse invejoso, não se preocuparia com o sucesso dos Moonspell.
Sam diz que as grandes influências para ele são Carlos do Carmo e Ary dos Santos. Nota-se. Até diz que ouve Marco Paulo. Isto é, só portugueses. Talvez mesmo Paco Bandeira, o Demis Roussos alentejano! Este rapaz é mesmo sectário, nem os brasileiros, que também se expressam em português, lhe interessam: apenas e só produto luso. Certamente que mesmo Linda de Suza deve ter sido samplada numa ou noutra ocasião. A questão é que o “YO”, musicalmente, é mesmo isso: apropriação do trabalho dos outros. Se noutras áreas musicais ainda podemos falar em influências, em produtos demasiadamente parecidos com outros já feitos, no “YO” só falamos em influências – pois o “YO” nunca cria nada de novo, limita-se a parasitar-se em algo já feito e adicionar umas palavras que rimam e que parecem ser muito urbanamente poéticas e sagazes. Chamem-lhe o que quiserem, mas até o Emanuel é mais criativo a nível musical que o “YO” e qualquer escritor, tipo Margarida Rebelo Pinto, deve ter mais conteúdo nos seus trabalhos que este “poeta da nova geração” que é Sam, que se limita a rimar sem restrições auxiliado por um dicionário. A própria glorificação da malta “YO” como o derradeiro bastião de divulgação da língua portuguesa é algo que me incomoda e que me dá o quadro real do estado da arte da língua portuguesa: pavoroso. É a arte entregue aos bichos, literalmente.
Cá para mim, Sam só se exprime em português porque não consegue fazê-lo em inglês. Não consegue construir frases ou versos noutra língua que não a sua, e mesmo na sua língua, que é a minha, não o consigo entender. Falta-lhe conhecimento. Falta-lhe… cultura. Ele bem que queria expressar-se em inglês como o David Fonseca, os Blind Zero ou os Moonspell, ou mesmo como os Mind Da Gap já fizeram… mas não consegue e enerva-se. José Cid queixava-se que os portugueses não passam na rádio. Agora até passam, mas isto não quer dizer que cantem em português – cantam naquilo que lhes apetece e naquilo que lhes soa melhor. Sam, qual novo Cid, reclama igual atenção. Orgulhos patrióticos à parte, até a demanda de Sam parece desajustada nesta altura. Não gostas de ouvir portugueses a cantar inglês? Muda de estação – eu já nem ouço rádio, por exemplo. Muda de país – há rádios para emigrantes portugueses que só passam o que Sam gosta. Faz-me esse favor.
Deviam os visados reagir perante a ameaça de Sam? Não, senão desceriam ao nível deste rapaz conflituoso. Deveriam eles parar tudo e ignorar o que fizeram só para ouvir Sam e perceber que no português é que está o caminho? Isso seria tão absurdo como ver os Moonspell a cantar fado. E, já agora ó Sam, porque não cantas fado, esse sim, produto genuinamente português? Porque é que fazes de macaquinho de imitação dos “YO” da terra do Tio Sam? Só virtudes, este(s) Sam(s).
O rock morreu? É capaz. Levem-me ao seu funeral e deixem-me ficar por lá. Permitam aos subúrbios rejubilar com o mediatismo do “YO” do seu Sam e protejam os vossos haveres. É um conselho pacífico que Sam parece não estar disposto a dar.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

O Café e o "Café"

De entre todos os fenómenos com implicações sociológicas contemporâneas, o café será o mais enraizado. É um pretexto para inúmeros encontros, sejam eles de cariz profissional ou pessoal. É praticamente impossível discutir algo hoje em dia sem ser à mesa dum “café”, ou melhor, tasca, bar ou restaurante que foi apropriadamente renomeado como homónimo do seu produto com mais saída (e dos que mais margem comercial retribui aos donos dos estabelecimentos), como se o produto mais importante açambarcasse todo o espaço para si, desprezando outros pares como a cerveja, o tabaco, as moelas ou os pipis, só para citar alguns itens da parafernália que usualmente se encontra disponível.
- Eh pá, não estou certo que a contenção de custos passe pela reestruturação da área comercial. Não queres tomar um café para falarmos disso? – diz o director-adjunto para outro director-adjunto.
- Há quanto tempo não nos víamos! Vamos tomar um café para colocar a conversa em dia? – diz o ex-emigrante para o seu conterrâneo, ao encontrá-lo a passear junto ao adro da igreja.
Ou então no bilhetinho:
“Ronalda: gostava de te conhecer melhor. Queres ir tomar um café aqui ao café da esquina? PS: não fui eu que te apalpei no intervalo, foi o Chico Ranhoso”.
O fascínio pelo café é transversal a todas as idades, credos e estatutos sociais. Vício moralmente aceite, desperta mentes e espevita espíritos. Ganhou claramente a batalha do politicamente correcto a produtos de balcão como o tabaco e a cerveja, embora manche os dentes, contribua para hálitos imundos e esteja, consoante o gosto mais ou menos aventureiro, impregnado de cafeína. Mas o café é o café e a cafeína uma droga tida como menor. Nem sequer interessa que o seu preço generalizado tenha passado de 50 escudos para 50 cêntimos de euro em 4 anos, uma subida de 100% que nem o tabaco, que sofre de uma elevada carga tributária, conseguiu igualar – pagamos o que for preciso para sentir aquele líquido fervente a escorrer-nos pela garganta, por muito parcos que sejam aqueles breves mililitros de café. O café é um bem precioso, indispensável, é mais do que um simples prazer, não restem dúvidas.
- Então, ó Clotilde, não se trabalha? – indaga um chefe rezingão.
- Ó chefe, deixe-me tomar o cafezinho a seguir ao almoço, senão fico com tremeliques! – desculpa-se,
- Ah, então está bem. Eu aproveito para ir consigo.
A máquina de café. Altar sagrado de confraternização laboral. Por vezes, o único lugar onde se conhecem mesmo os colegas de trabalho é junto da máquina de café.
O bar que serve bicas e cimbalinos, italianas e pingados, “o café”, como é conhecido, é a maior atracção social do momento. Pululam como coelhos na planície os estabelecimentos do género. Cada subúrbio que se preze terá 10 ou 15 “cafés” na mesma rua e mesmo no interior escondido haverá um “café” central, quando não 2 ou 3. Por cada boutique de pronto-a-vestir que encerre, abrir-se-á uma loja de chineses. Ou um “café”. Toda a gente conhece, pelo menos, um gerente de “café”, mesmo que nem se beba café e só se fique pela imperial com tremoços e o cigarrinho enrolado da praxe. Já todos devemos conhecer o ritual da extracção de um café, os manípulos que há que manipular, as rodas que há que rodar, nem que seja só pela repetida observação. Todos nós nos encontramos, com menor ou maior frequência, num “café”. É lá que nos reunimos com familiares, para que não sujem a nossa casa. É lá que marcamos engate com uma mulher, convencidos do anonimato inerente a um simples casal numa mesa a beber café. É lá que nos encontramos com os amigos, porque o café que sacamos em casa não presta. Como tudo é falacioso: geralmente os estabelecimentos estão sujos, sabe-se que a gente que bebe café tem como ocupação principal espiar a mesa da frente ou do lado e o café sabe mal em todo o lado, por muito que nos tentem convencer do contrário e por muitos produtos que se adicionem.
- E suave, negro, espesso… sente-se aquela ligeira torrefacção característica dos cafés das zonas tropicais… - diz a menina do anúncio. É mentira. O café é água a ferver e suja por bagos moídos de uma planta remota e ainda por cima tem contornos aditivos. Porque não uma mania semelhante pelo chá, que também é água quente aromatizada por ervas exóticas?
- Ah, não, o chá é para meninas (Roberto, camionista).
- O chá não tem a intensidade que os grãos de cafés parcialmente moídos através de métodos tradicionais da África Central (Roberta, a menina do anúncio)
- O chá não me acorda (Rolanda, viciada na cafeína)
- O chá? Isso é para os ingleses! Café com cheirinho é que é! (Rodolfo, proprietário de um “café”).
Ah, isso é que é! Um belo bagaço, inflacionado no seu percentual etílico, despejado por cima de um líquido enegrecido e amargo, mesmo com o natural pacotinho de açúcar concentrado no fundo da xícara… uma bomba apenas ao alcance dos mais fortes. A escada natural para se alcançar um bafo respeitoso e inesquecível. Um teste de segurança ao coração.
Depois do suspiro de satisfação pelo último trago, o cigarrinho da ordem. Levanta-se um burburinho de desconforto, indignação, irritação, paternalismo e desconsolo, entre outros sentimentos residuais.
- Desculpe, não se pode fumar aqui.
- Vamos lá para fora acabar o café, que aqui a chaminé já começou a trabalhar!
- Hão-de morrer com cancro, desgraçados!
- Toda a gente sabe que faz mal, porque é que fumam?
- Estas pessoas fumam sem se preocuparem com mais ninguém! Já estou com os olhos a arder!
Se beberem um café, tudo isso passa…

quinta-feira, novembro 30, 2006

Perdido na Floresta

“Isn’t it good to be lost in the woods, isn’t it bad so quiet there, in the woods?” – Syd Barrett, “Octopus”

Mapas para mim são demonstrações de resultados. Balanços. Saldos contabilísticos. Impressionantes os números dos resultados operacionais do último semestre. Gosto de me espalhar sobre as razões das dívidas de longo prazo, debitar do lado oposto ao crédito no T do relatório e contas. Trato com reverência os balancetes, venero o EBITDA quando o sinto a crescer com pujança. Não me atrapalham as siglas, sejam elas o ROA ou o IVA, nem me perco com empréstimos obrigacionistas. Procuro saber se a yield curve a curto prazo pode ser favorável. Alavanco. Acciono. Jogo com as tendências do Brent. Dou ordens de compra. Vendo a descoberto. Torno-me bilingue. Influencio índices de rentabilidade. Reinvento taxas. Oh, felicidade! O sussurro de percentagens que ecoa nos meus neurónios inflacionados pela vertigem do superávit. A cor monetária das curvas dos gráficos. A certeza tranquilizadora da fraca exposição ao risco cambial. Pesos certos em balanças afinadas como as regras da produtividade definem. Papéis verdes sobre jornais rosa. Gravatas e auriculares, portatibilidade e mobilidade.
É uma pena as coisas boas não durarem para sempre. Felizmente que a seguir ao feriado geralmente vem o trabalho.
Subsiste, porém, o senão da pausa. Inquietante é o dia fora do escritório. Seja na cidade ou no campo. Não há bússolas. Não há regras. Não há teorias infalíveis. Há bonés e sacholas. Bonés e sacholas não nos levam a lado nenhum. A selva é lá fora, no mundo real. Na floresta podia haver um javali à espreita, a colocar-nos sob alarme permanente. Mas não há nada. Os grandes não são assim tão maus nem os pequenos assim tão bons. A realidade é francamente intragável. E depois, a gente medonha que profere banalidades ultrajantes em tronos preenchidos com vácuo. Liguem-me à rede. Dêem-me a senha. Retiram-me o soro que me mantém aceso. Não há beleza num monumento grafitado, num prado verde e chilreante, num centro comercial apinhado. Há pedaços animados de carne que se movimentam sem sentido. Descubro amores loucos nos outros, olhos carregados com uma fantasia tal que me suga a noção das coisas. Perco o controlo das coisas, sinto que me espezinham a personalidade como se de nada tratasse. Isto é o nada, a vã roda-viva da vida dos estranhos à minha volta, aqueles que me rodeiam todos os dias mas nos quais nunca reparo. Não arranjo disponibilidade para sequer beber até cair. Tenho insónias a pensar no tempo que perco por não conseguir dormir. Esborracho moscas no vidro durante o fim-de-semana, descarregando a minha torpe fúria da folga naquilo que posso. Não vivo, o bicho também não viverá. Perco a fome aos Domingos. Perco a paciência. Não suporto o riso das crianças. Abomino a tosse dos velhos. Rasgo fotografias de memórias perdidas. Preservo apenas o apetite pela destruição dos que não vivem o stress. O stress não é o meu mal, é o meu sal. O condimento indispensável do refogado em que eu me tornei. Sempre a preparar qualquer coisa que me faça sentir útil para alguém acima juntar o creme por cima. O mundo não tem objectivos e eu só tenho metas. Separei-me da tal forma do comum cidadão que me metamorfoseei no seu lado obscuro. Não me interessa se estou por cima ou por baixo, eu pressinto apenas que não estou em lado algum. Dói-me sentir que os outros sentem coisas que eu não consigo sentir. É das poucas coisas que me consigo diagnosticar, esta concreta e crescente incompatibilidade com o resto. De resto, vou escavando ódios infundados em lugares recônditos da minha mente, qual passatempo diabólico, até chegar a manhã seguinte.

segunda-feira, novembro 20, 2006

O Teu Clube!

Imaginem um clube homónimo de massas alimentícias que se dizem boas. Coloquem esse clube numa ilha e, dentro dessa ilha, numa encosta nebulosa com vista para o mar imenso. Nessa encosta, aproveitem o mais curto espaço disponível para desenhar um campo de futebol, tão curto, tão curto, que só haverá espaço para uma bancada e três muros de cimento a ladear o rectângulo de jogo (pelo menos, enquanto as necessárias obras de beneficiação não terminam). Para finalizar, as pièces de résistance: uma bizarra claque histérica feminina (perdoem-me o pleonasmo) e um presidente aprendiz do inesquecível João Vale e Azevedo.
Muitos de vós (os dois ou três) que estão a ler este texto já descobriram, decerto, este enigma que nem chega a sê-lo: falamos do Clube Desportivo Nacional, Nacional da Madeira, como será melhor conhecido.
Este é um clube insular, talvez demasiado insular. Na equipa de futebol, pontificam nomes que pouco corroboram o “nacional” que, enganadoramente, ostentam no nome. Juliano Spadaccio (que ia dando na tromba a um dirigente… do seu próprio clube! – um caso actual a acompanhar), o ríspido Ávalos, o desconhecido Rafael Bracali, o durinho Cléber, Chi-Chi-Chilikov, o relógio suíço que é Diego Benaglio, o evoluído Marchant (não de arte),… enfim, um onze pouco “nacional”, mas que tem vindo a recuperar paulatinamente alguma portugalidade através de nomes como Bruno Amaro, Ricardo Pateiro, Patacas e o já saudoso Nuno Carrapato. Longe vão os tempos dum Sylvanus, Murphy, Gilmar, Leiz, William, Heitor, Dino, Serginho Baiano, nomes que tornavam o CD Nacional um dos maiores viveiros de brasileiros do nosso campeonato. Essa honra cabe hoje ao rival Marítimo, que, imitando as grandes constelações galácticas do Velho Continente, poderá muito bem entrar em campo sem um único jogador nascido no país do campeonato onde joga. Sim, a tradição já nem sequer existe para ainda poder ser o que era.
O clube é assaz pitoresco, como podemos constatar no paradoxo da nomenclatura acima exposto, encontrando ainda mais paralelismos com a América Latina.
Por exemplo, o seu actual presidente, no cargo há 12 anos. O CD Nacional sempre foi um clube relativamente estável e sem grandes disputas de poder, como atestam os apenas 14 presidentes nos 96 respeitosos anos de História (mandatos médios de quase 7 anos), mas este Presidente parece apostar em derrubar recordes de estabilidade. Para além duma modéstia fora do comum, que fez com que baptizasse o estádio (?) do seu clube com o seu próprio nome, o estilo intempestivo com que intervém publicamente é claramente decalcado dum qualquer chefe de guerrilha sul-americano (ou Alberto João Jardim, se não quisermos ir tão longe). Ele simplesmente não encontra dificuldades em absorver qualquer disputa de poder interna… se é que ela existe. Este senhor projectou com a sua vaidade pessoal, o gel no cabelo e os indissociáveis óculos escuros da moda o nome do CD Nacional até às competições europeias de futebol por duas ocasiões recentes. Presenças europeias que, contudo, não passaram de viagens pouco mais que turísticas a Espanha e à Roménia. Pessoalmente, e sempre que pode, lança a confusão como Jesus lança comida aos pobres, na Liga de Clubes ou na forma ousada de resgatar reforços que eram virtualmente de outros clubes para o seu emblema.
Este Engenheiro, apodo do qual nunca se separa, como forma de manifestar a validade das suas opiniões e actos, chegou a comparar o grandeza do seu clube a um outro clube de natureza, essa sim, nacional (e até internacional), na época passada. Deu-se mal e a partir daí retraiu-se um pouco… mas, lá no fundo, só aguarda por uma próxima oportunidade para sobressair – deixem o CD Nacional ganhar uns jogos e ele lá aparecerá, ufano de si mesmo.
Bem, se calhar o facto do presidente em exercício do clube emprestar o seu nome ao estádio (??) nem é assim algo de tão extraordinário – Avelino Ferreira Torres, no Marco de Canavezes e Vieira de Carvalho, na Maia, salvaguardando as distâncias que, presumimos, existam, abraçavam situações com muitas semelhanças. Se calhar vale mais a pena recordar o vazio directivo que assolou o CD Nacional durante 6 anos, entre 1948 e 1954 – o clube não teve presidente, segundo informações oficiais, que nem sequer confirmam a existência duma Comissão Directiva! Isto é, viveu completamente à deriva. Foram tempos difíceis? Imaginamos que sim. Mas se calhar com lideranças mais honradas do que a presente.
Não nos podemos esquecer que o CD Nacional, na sua grandeza virgiliana e homérica que o Engenheiro presidente assegura que tem, apenas ingressou nos campeonatos nacionais de futebol em 1975, isto é, lá perto das suas bodas de diamante. Portanto, o relativo sucesso é recente e até aquém do verificado pelo rival Marítimo. É um clube jovem nas caminhadas do estrelato da Primeira Liga e aberto às excentricidades características da juventude. Aqui entra a claque feminina, verdadeira particularidade alvi-negra.
Seja pelos cânticos honestos ou pelas vozes irritantemente esganiçadas atrás do banco forasteiro, estas senhoras marcam uma época nos anais das claques em Portugal e, arriscamo-nos, no mundo. As bravas mulheres adeptas do CD Nacional não regateiam esforços no gritar e no aborrecer treinadores visitantes. Coadjuvadas por outros grupos de apoio de menor singularidade, apoiam-se em versões musicais “nacionalizadas” doutras claques e na sirene de ambulância que é já um marco no apoio desportivo português, suplantando os bombos de Caxinas e o trompete do Dragão. Pontapé de canto contra o CD Nacional é garantia do som de ambulância a ecoar pelo betão que ladeia o relvado. Um bom som, refira-se, capaz de assustar qualquer maqueiro desprevenido.
Não lhes perdoamos é o desplante com que colam na parede de cimento da superior norte do estádio (???) a superior arrogância: “Nacional – o Teu Clube”. Por que raio haveria de ser? Rai’s partam as confianças!... Ainda bem que elas não vêm para o Continente, limitando os seus guinchos à exígua Choupana.

sexta-feira, novembro 17, 2006

O Racismo Intelectual

Arménio é um quadro superior da sua empresa. Aparenta 50 e muitos anos. Detém um curso, superior ou não, relevante ou não, ninguém sabe; apenas diz que tem um curso e isso é suficiente para que obedientemente lhe tratem por “doutor”, o que reforça ao escrever e falar de uma forma literária, demasiado cuidada, mesmo se está a pedir uma fotocópia de um documento sem importância. Até aqui, tudo bem. Já o facto de ser alguém socialmente inserido que não vive de biscates é bom. Nada de muito concreto podemos apontar ao Arménio por enquanto, embora quando a colega do lado chame “doutor Arménio” esteja lá no fundo a soltar um pouco as pontas da sua ironia e a levantar suspeitas sobre a inatacável idoneidade de Arménio.
De facto, Arménio tem um grave problema. Insanável, para mais considerando a sua quase 3ª idade. Arménio caíra nas garras do politicamente correcto, afundara-se nas entranhas da demagogia.
Arménio passa por pessoa que lê muito, mas não sabe ler; Arménio pensa o que outros pensam e não pensa por si; Arménio age como já alguém agiu e não é capaz de sair do carril onde se enfiou; Arménio defende o óbvio sem sequer ousar considerar que poderá existir algo não directamente visível; Arménio julga que já viu tudo e que nada lhe surpreende; Arménio acha que o futuro estará aberto apenas para si e nunca para outro alguém.
O modo de acção é simples: pega-se num tema qualquer e adiciona-se uns pozinhos de polémica. Haverá um ou mais lados em confronto. Arménio, qual máquina afinada, escolhe invariavelmente o lado do socialmente e eticamente responsável, inclina-se favoravelmente e sem hesitar para a maioria. Conservador? Nem por isso. Se a moda for progressista, ele também será. Vira-casacas? Não necessariamente. Mas já foi um fervoroso adepto do Algarve no Verão e agora acha isso ignóbil, seguindo a corrente actual. Sendo português, eis alguns exemplos concretos daquilo que Arménio é: católico, casado e pai de filhos, benfiquista, residente num grande centro urbano, mordaz com os políticos irresponsáveis que nunca nomeia e, acima de tudo, muito melhor orador do que executante. Obras feitas? Talvez o quadro espetado por cima do aparador na sua sala.
Quando sujeito a críticas, leia-se, quando beliscam aquilo que protege afincadamente de forma a preservar uma imagem de indivíduo socialmente bem inserido, Arménio enerva-se. Foge para a frente. Desvaloriza sem pudor os oponentes. Diminui-os como se tivesse uma força redutora e com isso apazigua o seu espírito rígido. Não tem uma resposta credível, não consegue ser irónico, nada. Apenas tenta destruir o foco de ameaça. Nisso, Arménio e Penicos (personagem abjectamente fascinante no prime-time da sua vida, conforme relatos dum amigo comum) são iguais: não admitem que haja linhas de pensamento divergentes das suas. As suas personalidades são o umbigo do mundo e qualquer discordância faz tremer o cerebrozinho acostumado duma forma avassaladora, como relâmpago disparado do inferno directamente ao Olimpo das suas personalidades, derrubando os místicos pedestais de superioridade mental onde se tinham auto-instalado. Mas enquanto Penicos esforçava-se por ser o mais diferente, Arménio esmerava-se por ser o mais igual. Eis como pólos opostos se tocam.
Num dos colóquios frequentados por Arménio, algo que prazenteiramente aceitava, pois colóquios e prestígio movem-se em paralelo, um jovem idealista, certamente irresponsável por não saber a quem se dirigia, expôs-lhe as suas ideias – que eram terrificamente contra o senso comum partilhado, naturalmente, por Arménio. Diga-se de passagem que as ideias nem seriam assim tão revolucionárias, mas até aí pertenciam exclusivamente a um nicho não muito querido da população, o que, igualmente de modo natural, repugnava o consensual Américo. Foi como um ataque à bomba a todo o edifício intelectualmente imaculado de Arménio. Soaram alarmes ribombantes na sua cabeça.
Os truques eram sobejamente conhecidos. Passavam por esconder a sua inexistência de argumentos e a incapacidade de lidar com diferentes opiniões. Arménio primeiro declarava-se não estar surpreendido, que já esperava aquelas reacções. E porquê? Porque o jovem interlocutor era, sem rodeios, um “rapazinho sem provas dadas” (atente-se no sufixo “–inho” – mais sarcasmo do que este não se encontrava em Arménio…), “imberbe”, “inconsciente” e que devia olhar para Arménio e aspirar, como se alguma vez fosse possível, um pouco do seu digníssimo conhecimento das causas e das coisas. A mensagem era simples: o jovem “NÃO PRESTA!”, o jovem “NÃO SABE O QUE DIZ!”, o jovem chegava a ser “OBSCENAMENTE INCULTO!”, e com isso Arménio arrumava a questão. Arménio extremava posições, dando largas ao seu racismo intelectual: eu e só o que eu penso; o resto é igual a nada. Para rematar, recomendou que o jovem lesse o autor X, que nada diz, mas que muito vende; e que visitasse o lugar Y para ter uma impressão daquilo que acabou de dizer e verificar que, “claramente”, não faz nenhum sentido – embora o lugar Y fosse um cemitério de vaidades fora do prazo, lixeira de costumes e ideais gastos de tanto uso, amplamente conhecida pelo próprio jovem, pois lá desenvolvera o seu asco e gerara anti-corpos formais com que sustentara na sua intervenção.
Na audiência gerou-se um burburinho, mas as reacções acabaram por ser de apoio a Arménio. “O Arménio é limpo e recto, confio nele”, “Pensando bem, aquilo é um puto que não sabe o que diz”, “Nunca ouvi nada tão disparatado”, “O Arménio lá sabe”. O toque final foi ouvir Arménio disparar frases feitas e expressões de repúdio banais ao som dos aplausos do público e despedir-se do jovem com o generalizante “vocês, os novos, têm muito que aprender comigo, se querem ser alguém no Mundo!”, para gáudio de um público que mergulhava na prateleira social por onde Américo se estendia. O jovem, esse, foi chutado metaforicamente para o canto donde, se fosse sábio, nunca deveria ter saído. O rótulo espetado na sua cara e a inferior catalogação imediata não lhe fizeram, porém, mudar de opinião. Ficara, talvez, um pouco espantado com a gratuitidade dos veementes protestos contra algo que julgava válido, mas, enfim, sempre podia ser líder ou parte de um subgrupo marginal condenado ao fracasso, segundo o clarividente Arménio. Resposta era algo que sabia que iria cair em saco roto, daí o seu abandono do colóquio, sob vaias solidárias com a posição de Arménio.
Arménio pulula por aí, sempre pronto a abrir a boca e repudiar tudo o que não pareça são e que não jogue exactamente como os preceitos estabelecidos ditam. Livrai-vos, pensadores alternativos, de encontrar Arménio pela frente. Ele dá cabo de qualquer esperança de discussão construtiva e declara-vos impróprios para consumo. Mas como diria a colega dele, baixinho, quando o impoluto Arménio fecha a porta do escritório e se acomoda no cadeirão junto do computador:
- O Arménio? Só gosto dele quando está calado a ler o jornal.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Quebrei Uma Corrente

Há muitas acções preponderantemente negativas. Acções que marcam um dia, uma semana, uma época, uma vida. Acontece até aos melhores. O político não será esquecido pela aquela gaffe em que exortou ao voto no rival, o guarda-redes pelo frango que eliminou a sua equipa, o namorado pelo aniversário que deixou passar. Eu próprio senti a mão pesada do destino sobre mim. É verdade. Hoje quebrei uma corrente.
Não se pense que estava aprisionado e que empreendi uma fuga heróica digna de ser registada pelos jornais sensacionalistas. Bem gostava. Mas o que fiz foi rejeitar enviar o mail que ameaçava “anos de inimizades”, “séculos de infelicidade”, “eternidades de dor” se eu não o reenviasse rapidamente a uma amálgama de personagens, desde os 5 amigos mais próximos até a 1000 pessoas aleatoriamente designadas como destinatárias. Pesa sobre mim uma consciência dorida e um ardor estranho no peito. Se este post não chegar ao seu fim, provavelmente serão efeitos deste mail enfeitiçado.
Para cúmulo, já não é a primeira vez que quebro a corrente. Pecado dos pecados, tendo facilmente a ignorar as ameaças destes mails. Julgo que fui longe demais desta vez. Apareceu-me uma tosse esquisita e estou a ficar esverdeado na pele. É só o começo, pressinto, assustado com a minha própria negligência atroz ao cabo de tantos mails do género. Chegou o tempo de pagar todas as minhas incúrias de uma vez só.
O arrependimento de nada serve. Ignorei de forma ostensiva os avisos que me foram dirigidos e agora sofrerei com as consequências. Lia-se nesse malfadado mail “SE NÃO ENVIARES ESTE MAIL A 5 PESSOAS CONHECIDAS DENTRO DE 1 HORA E A 20 PESSOAS À TUA ESCOLHA AINDA HOJE, IRÁS MORRER COM UMA DOENÇA DESCONHECIDA ALTAMENTE FATAL. POR CADA MINUTO QUE TE ATRASES UM NOVO POTENCIAL CANCRO IRÁ REBENTAR DENTRO DE TI. AO FIM DE 10 MINUTOS DE ATRASO IRÁS PERDER TODO O AMOR QUE TE É DIRIGIDO. AO FIM DE UMA HORA PERDERÁS A CAPACIDADE DE AMAR. MAS SE ENVIARES O MAIL SERÁS AMADO POR TODA A TUA VIDA E RECEBERÁS POR CORREIO REGISTADO UM DOS GATINHOS QUE VISTE NO SLIDE SHOW DENTRO DE 5 DIAS (não terás, porém, capacidade de devolução se o gato vier com defeito)”. Eu não deveria ter sido tão curioso e ter ido até ao fim, ao menos tinha retirado um prazer enorme em contemplar os gatinhos adormecidos sobre lençóis cor-de-rosa dos primeiros slides e tinha-me mantido na ignorância das punições que estavam reservadas aos incumpridores como eu. Sabem como é, a ignorância anda de mãos dadas com a felicidade.
Agora já não há nada a fazer. Sinto convulsões internas e espasmos musculares. Vómitos e diarreias enjoam-me. Desenvolvi escamas na região lombar e o meu fígado buzina que nem taxista atrás dum veículo parado em semáforo verde. Não vejo bem. Tenho a boca seca e ardente. Os meus colegas perguntam-me “Estás bem?”, mas eles sabem bem que não. Eu quebrei a corrente. “Ah, já percebi”. Um ou outro ainda dirá, lá ao fundo da sala, baixinho: “Bem feita, nunca gostei desses gajos que quebram correntes. À pala destes e-mails já salvei a vida a 15 pessoas, oferecendo o meu sangue, e descobri 3 crianças desaparecidas”. Como eu gostava de ter sido assim, dedicado e obediente, altruísta e responsável. Mas pensei apenas no meu próprio bem-estar, desprezando favores que me pediam. Se calhar, eu mereço esta desdita.
Ao menos, vá lá, acabei o post. Despeço-me como culpado, mas apresentando convenientemente o mea culpa. E se vocês me lêem, por favor não incorram no meu erro e passem esta mensagem a todas as pessoas que realmente gostam. A sério.

segunda-feira, novembro 06, 2006

O Metropolitano em Terras de Bouro

A grande novidade do momento é a chegada do Metropolitano a Terras de Bouro. Durante anos, a vila minhota ansiou pela concretização deste projecto essencial para a sua própria sobrevivência. Prometido pelos diversos executivos que ocuparam os cargos do Governo e da autarquia local ao longo dos anos, hoje foi finalmente inaugurado o primeiro troço, de Santa Eufigénia até Escroto de Boi, com a extensão de 5,5 quilómetros.
O presidente da câmara partilhou connosco a sua satisfação:
- Quero assinalar, neste dia grandioso para a nossa população, que esta obra só foi possível graças ao esforço e empenho destas gentes maravilhosas da nossa querida e estimada vila e também ao meu cunhado, que por acaso é secretário de Estado em Lisboa. A todos vós, o meu grande bem-haja.
O vereador sem pasta preferiu salientar os benefícios que resultam do Metropolitano em Terras de Bouro:
- Não podemos esquecer o enorme potencial de escoamento de estrume, animais e mesmo de alguns quilos de leguminosas que o Metropolitano possibilita. Em menos de 3 minutos, o agricultor pode levar o seu bode, ou mesmo uma saca de batatas, ou os dois, se conseguir, desde a estação de Farelos Molhados até às Picheiras. Por apenas 50 cêntimos, evita-se todo o trânsito da vila, nomeadamente as carroças e as motorizadas Famel Zundapp, poupando-se tempo e evitando confusões. É uma obra fantástica.
Pela tarifa única de 50 cêntimos, o Metropolitano estará acessível a pessoas, animais e cargas que não excedam os 200 quilos. Mesmo qualquer terrorista perdido que queira gasear as instalações do Metropolitano será bem-vindo, se conseguir atrair as atenções e turismo para a vila. Desta forma, Terras de Bouro passa a ser a vila com o sistema de transportes mais liberal de todo o noroeste de Portugal. Apenas serão penalizados, com uma coima que pode ir até aos 50 euros, os arrotos injustificados durante a viagem, segundo o regulamento. Quisemos saber porquê.
- Ah, não ligue a isso, tínhamos que proibir qualquer coisa de modo a que não pensem que isto é a bandalheira total. A história dos arrotos foi o Zé do Chiqueiro que propôs, achámos graça e ficou. Não se preocupe, se o bafo cheirar a álcool está justificado o arroto. Como vê, é mais uma formalidade do que outra coisa.
A generalidade da população aprova o empreendimento ora estreado.
- Isto é uma grande alegria. Estivemos muito mal, o campo não nos tem dado nada com a falta de chuva e o empobrecimento dos campos, mas agora o Metropolitano veio salvar-nos, graças a Deus. Sabe Deus quanto eu rezei para que houvesse alguma coisa que fizesse crescer as couves lombardas e as batatinhas… e agora foi de vez! Foi o melhor que podia ter acontecido.
Nós questionámos se esta pessoa estava ciente do que seria mesmo o Metropolitano.
- Vocês vêm lá de Lisboa e pensam que sabem tudo e que os outros são parvos, mas a mim não me chamam parvo! Ora essa, é preciso ter descaramento para perguntar uma coisa dessas! Eu, que estudei na Suiça, sou ávido leitor de Kant, Sartre e Popper, aprecio as árias de Verdi e Bach, consumo arte de Monet e Matisse e cavo alfaces e cenouras de Segunda a Sábado, a ser confrontado com esta ignomínia!... Não, por acaso não sei bem, mas acho que é um regador gigante com rodas, que apita e deita adubo.
Com 12 paragens previstas inicialmente, o traçado não reúne o consenso. Se há alguns que vêem com bons olhos as oportunidades que renascem com o Metropolitano…
- Ah, é muito bom!... Há quase 3 anos que deixei de sair de casa para cultivar o campo e só ia à taberna por causa da falta do Metropolitano… Foram tempos duros, só vivendo com a reforma de 3000 e poucos euros do exército e espancando a esposa para ver se o tempo passava melhor… mas agora que abriu a estação da Mosca Chata mesmo à frente da minha casa, já posso espancar a minha mulher na praça de Terras de Bouro.
…outros lamentam a opção de terminar a linha em Escroto de Boi, deixando as pessoas mais a leste, como é exemplo o lugar de Milheiral-o-Novo, fora do caminho do progresso.
- É sempre a mesma coisa! Uns são filhos e outros são enteados! Eu por acaso sou órfão, mas não há direito do Milheiral-o-Novo ficar de fora se o Escroto de Boi tem Metro! O Manel Diospiro, que eu conheço bem, mora no Escroto de Boi e pode levar os seus garrafões à vontade porque tem o metro a 50 metros do quintal e eu tenho de andar, no mínimo, 200 metros, isto se alguma das minhas cabras não se perder pelo caminho. Isto só é possível num país onde domina o compadrio e o favorecimento de alguns indivíduos! Eu paguei 1000 euros ao engenheiro e o Manel Diospiro pagou 500 euros e 10 garrafões de aguardente reles e ele é que fica com a estação! A porcaria é a mesma de sempre!
A opção de fazer o interface na estação de Santo Ambrósio ao invés da mui concorrida estação de Centro de Terras de Bouro É Mesmo Aqui Não Ande Mais É Aqui Que Você Deve Sair também não escapou às críticas.
- Essa é outra. Quer dizer, eu, que vou todas as noites das Picheiras até à Vacaria Grossa para ver as meninas, tenho de ir no ramal 1 até ao Escroto de Boi e depois voltar para trás no ramal 2 até Santo Ambrósio, demorando quase 20 minutos, quando se houvesse logo correspondência em Centro de Terras de Bouro É Mesmo Aqui Não Ande Mais É Aqui Que Você Deve Sair demorava apenas 15! E se fosse a pé demorava só 10 minutos! Com a minha idade, gasto muita energia nestes transbordos e depois não sobra nada para as meninas! Estes doutores andam a brincar com o povo… mas pronto, isto com o tempo vai lá.
A empresa pública responsável pela exploração, a METERRA, fez saber, pela voz do ministro da tutela, que o objectivo é fazer do Metropolitano de Terras de Bouro a maior amálgama ferroviária urbano-rural-humano-animal-mercantil-civil do norte português, “depois do híbrido eléctrico-comboio-metro do Porto, que ainda me faz corar de vergonha”. Sublinhou a importância da obra e desvalorizou o repúdio da oposição, que apontou irregularidades no processo e acusou o executivo de despesismo fútil. “Tudo atoardas de pessoas sem formação”, reagiu o ministro enquanto cuspia no chão.
Ambicioso, o ministro revelou ainda que está satisfeitíssimo por ter sido um “sucesso a todos os níveis” este projecto de transporte simultâneo e subterrâneo de pessoas, cargas e animais, registando com agrado o facto da sujidade dos porcos sair com facilidade dos bancos, graças a um material especial concebido pela Universidade de Aveiro. Como nota final, o ministro formulou os desejos para que, em 2020, “este seja o transporte preferencial das pessoas a norte do Tejo, com cerca de 40 milhões de pessoas e cabeças de gado de tráfego por ano e 200.000 postos de trabalho gerados directa, indirecta e artificialmente”. Oficiosamente, contudo, sabe-se que o crescimento será lento e que em 2020 a linha deverá apenas crescer até ao quintal da Sra. Arminda, no Bocafastal, ficando a ligação Lisboa – Terras de Bouro concluída, segundo a opinião especializada de alguns engenheiros optimistas e de outros alcoolizados, por volta do ano 2500, se entretanto Portugal ainda existir.

segunda-feira, outubro 30, 2006

A Tatiana Fez Uma Tatuagem

- Tatiana, o que é que isso representa?
- É fixe, não é? Isso representa muito para mim.

Uma história feita de pontos altos muito baixos. Sobrevivendo na penumbra, perdida entre a multidão que deambula pela cidade. Sonhando com dias de fulgor embrenhada nas profundezas da estação de metropolitano mais decrépita. Sorvendo o pó do cimento como substituto do pó das estrelas. Um cigarro aceso com um isqueiro Bic. Tatiana, eras mediana.
Olhavas para os cartazes que pululavam pelos passeios com aversão. Porque eram sinais do capitalismo selvagem que contestavas e porque podias perfeitamente encarnar a personagem, fazendo melhor figura. Sim, possuías uma beleza inata, segundo a tua perspectiva. Sim, eras de esquerda. Escrevias à esquerda, andavas à esquerda pela escada rolante, os teus amigos diziam que a “esquerda vencerá” e os gajos do Bloco são pessoas “altamente”, sempre prontas a fumar uma ganza contigo. A direita é para os “betos”, para os gordos que conduzem o 4x4 na avenida e que comem nas assassinas cadeias de fast-food. Eras de esquerda porque sim. Eras de esquerda porque tinhas de ser, se querias estar na moda. Só a esquerda é jovem, só a esquerda tem piada. Tu eras jovem e cheia de piada, mas a tua vida não tinha luminosidade. Eras uma árvore de Natal viçosa e esbelta mas sem enfeitos. Uma foice resplandecente sem martelo, uma MTV sem hip-hop.

- O que vem a seguir?
- Quero fazer uma outra no pescoço, aqui atrás, com o nome do meu sobrinho.
- Já sabes como ele se vai chamar?
- Deve ser Tadeu. O que importa é que tenha tudo pronto para mostrá-la na manif contra a tourada do próximo mês.
- Altamente. Os touros sabem ler?
- Acho que não. Mas sentem as vibrações positivas.

Como elevar a tua personalidade acima do lodo onde te acomodavas? Havia que pôr cobro à pasmaceira. A monotonia do mundo é quebrada diariamente com espectáculos de malabarismo na Baixa, com músicas étnicas debitadas a alto no som no quarto do teu T3 na nova urbanização, ritmos sacados da Internet rápida que o teu pai instalou lá para casa. Fazias o possível para mudar o mundo. Mas ainda faltava revolucionar-te a ti própria, Tatiana. Não a nível do pensamento, já que esse está sintonizado com o que de melhor existe na tua sociedade de jovens – eras consciente, vegetariana, anti-globalização e os teus amigos estão sempre no topo das prioridades. Decidiste que o teu visual não estava adaptado às novas exigências. Não te respeitavam sem um aspecto que não chocasse. A tua mentalidade de desafio requeria um corpo aberto ao manifesto. A Branca de Neve não era apelidada como tal se fosse uma preta do Uganda – e tu não serias a mais radical jovem do teu bairro se continuasses a ter um aspecto tão trivial.

- Eu acho o máximo teres os braços e as pernas cobertas de tatuagens, mas…
- … e as costas, também. Não te esqueças que tenho um sol, um cavalo e um desenho tribal nas costas.
- … e as costas, mas eu não era capaz, falta-me coragem.
- O que custa é a primeira. Depois elas fazem parte de ti, marcam-te para a vida. Não me vejo sem tatuagens hoje em dia. Quero encher-me delas!

Não estavas a acompanhar a evolução. Tinhas uma sacola a tiracolo com o símbolo da Cannabis, roupas largas, bombazine e buraquinhos na roupa. Cabelo desgrenhado e ténis sujos. Preenchias os requisitos da moda, com um senão: na praia, por exemplo, serias totalmente vulgar, igual a uma adolescente da telenovela. Isso era extremamente gravoso para a tua imagem, para a tua cabeça, Tatiana. Remoías-te por dentro, bolas!, eu não sou assim, isto é uma vergonha!, até os meus pais podiam gostar de mim! Fizeste uma tatuagem, como se desses um passo mais além. Escolheste algo do catálogo. Ainda com o receio do passo mais além ser para lá do abismo, perguntaste a medo:
- Essa tatuagem já foi feita a alguém?
- Não, não, eu garanto que não; tenho mais de 1500 desenhos em catálogo, era preciso muito azar.
Individualidade, Tatiana, individualidade. Um bem precioso. Tens de ser diferente dos demais, mantendo-te englobável no teu grupo. Depois daquela tatuagem começaste a cheirar um odor diferente na atmosfera - era o perfume da vaidosa superioridade estética. Elevaste-te acima dos demais. Ganhaste centímetros com o orgulho que aquela tatuagem fez parir dentro de ti. Tinhas de fazer mais, ser maior. Uma e outra mais, o corpo manchou-se de desenhos, caracteres esotéricos, riscos de diferentes cores e feitios. Tatiana, és um placard publicitário andante. Publicitas a tua mentalidade arrojada. Manténs os fantasmas da banalidade longe da tua vista e as vistas concentradas em ti. Afastaste-te da indiferença.

- Tatiana, gostava de ser como tu.
- Obrigada! Mas podes ser tu mesma, mesmo sem tatuagens. Cada um tem o seu espaço.

És magnânima, Tatiana. Sabes bem que és maior que todos os teus iguais, que mesmo que alcancem o seu espaço ficarão num plano de inferioridade perante a tua rebeldia fotogénica. Foste a primeira, tiveste a ideia, adquiriste o exclusivo. Neste jogo de aparências ganhaste este nível. Com as tatuagens ganhaste atenção, com a atenção ganhaste respeito dos teus pares. Pressentes que o teu corpo é demasiado pequeno para a tua ilimitada mente. Uma mente progressista, atenta às desigualdades do mundo, combativa, solidária para com os desfavorecidos, sempre em evolução. Ao mesmo tempo, uma mente que necessita dum aspecto distinto para ser.
PS: O álbum dos Rolling Stones foi escolhido pelo seu título ("Tattoo You") para ilustrar este post. Não existiu mais nenhum critério para esta escolha. O álbum em si contém "Start Me Up", uma das melhores faixas de sempre de Jagger/ Richards.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Os Transportes Públicos: A Glorificação do Condutor

Uma pessoa sem grande valor social, como um ucraniano, brasileiro ou mesmo um português de bigode e careca, passa na rua incólume e sem perturbações, pois o resto da população não os quer ver por perto. São indivíduos incluídos na base da estratificação da nossa sociedade, sendo portanto a evitar, como aliás aprendemos desde o berço. O mais provável é as restantes pessoas desviarem-se do seu caminho, como se o seu simples respirar carregasse alguma epidemia da qual fosse necessário fugir. Quanto muito, estes seres desprezíveis serão alvo de chacota e nunca conseguirão passar à frente de alguém numa fila.
Porém, há uma situação em que estes dejectos sociais são catapultados para a posição de semi-deuses: quando estão ao volante dum transporte público no qual somos passageiros.
Mal entramos no transporte público, entregamos a nossa fé nas mãos do motorista. O motorista, esse, sabe que pode contar com o nosso apoio incondicional. Então os velhos, essa casta analisada alguns posts atrás, prometem até fazer um bolinho para o motorista ou rezar por ele, desenvolvendo laços de proximidade umbilical com o homem do volante – à falta de um contacto palpável com algum santo, viram-se para o motorista, a concretização material dum emissário divino. O condutor do nosso transporte é, por uma graça inorexavelmente concedida, o melhor motorista do mundo: alguém que segue religiosamente os procedimentos de segurança rodoviária, que domina as regras de trânsito como ninguém, que nunca se engana no percurso e que respeita os demais na estrada como seus irmãos de sangue. O assento onde o motorista apoia as nalgas é um trono sagrado que emana poderes fantásticos. Não restem dúvidas: num transporte público, o meu motorista é sempre melhor que o teu.
Vide o taxista, por exemplo. Eis alguns comentários de pessoas fora do táxi:
- Fogareiros estúpidos! – vocifera a D. Carmelinda.
- Atrasados mentais com a mania que a estrada é toda deles! – vitupera o Manel Enfrascado.
- Deviam tirar-lhes o carro e queimar-lhes a carta de condução! – impugna o Sr. Matos.
Contudo, no interior desse mesmo táxi, as mesmas pessoas revêem a sua atitude para com o motorista, inspiradas pela aura mágica com a qual o homem que nos conduz nos inunda:
- Ó sr. taxista, o sr. não teve culpa no atropelamento, as pessoas é que são umas parvas que se atiram para o meio da estrada! – iliba a D. Carmelinda.
- Se calhar nunca viram uma inversão de marcha neste sítio, não? Vamos em frente, sr. taxista! - solidariza-se Manel Enfrascado.
- Estes gajos não sabem andar na rotunda, é o que é! E depois ainda buzinam! – aprova o Sr. Matos.
Quando ao volante, o condutor tem total liberdade para nos arranjar a melhor alternativa.
- Fez muito bem em ultrapassar aquele carro no semáforo vermelho, sr. motorista, aquele maluco estava a atrasar-nos a todos!
- Aqueles idiotas ficaram a gritar… andassem nos passeios, é para isso que foram feitos!
- Particular a circular na faixa do “BUS” devia dar prisão! Ignorantes, parece que não sabem ler! Já não há respeito!
Bem, ainda será possível, numa ou noutra situação, o estatuto de imunidade do condutor ser beliscado: quando não param na paragem e deixam as pessoas incrédulas, a ver o autocarro passar e elas de braço esticado, ou no caso de atrasos de horas. Ainda assim, obtêm-se explicações que atenuam a culpabilidade do motorista.
- Eu conheço aquele motorista e ele conduz melhor que ninguém. O problema é que ele vê mal ao perto e nem sempre nos vê a acenar…
- Ele se não parou tinha os seus motivos. Se calhar porque o autocarro vinha a abarrotar. Ou porque não lhe apeteceu parar. Sabe-se como é, ganha-se balanço e depois é difícil parar… Temos de aceitar.
- Isto do atraso é culpa da chuva e desses senhores que querem armar-se em grandes e trazer o carro para dentro da cidade com um tempo destes!
- Pois é, a camioneta avariou-se porque está para ir para a sucata! A companhia rodoviária não sabe apetrechar os excelentes motoristas que tem com as condições devidas! Eles fazem o melhor que sabem!
Estamos cientes que a travagem brusca pode provocar acidentes dentro do veículo. Quando existem uma ou duas travagens bruscas, a responsabilidade foi de alguém (“Estúpido! Anormal! Cabeçudo!”) que se atravessou à frente do nosso bondoso transporte. Mas se forem muitas travagens por viagem… o motorista cai em descrédito. Sim, as travagens bruscas podem destruir o prestígio dum condutor. O pedestal onde deveriam estar parte-se em cacos e a sua reputação ficará indelevelmente manchada durante o resto do percurso. Os mais ressentidos irão mesmo evitar andar noutro transporte conduzido por esse condutor durante algum tempo. Imaginamos como se sentirá o motorista, debaixo do coro de protestos que se levantam aquando da terceira ou quarta pisadela mais vigorosa no pedal do meio:
- Deve pensar que está a conduzir animais! – insinua a D. Carmelinda.
- Este tirou a carta ontem, de certeza! – raciocina o Manel Enfrascado.
- A empresa tem pouco dinheiro e depois vão buscar estes gajos que nem conduzir sabem… fiquei com a perna toda negra e ninguém me vai pagar as pomadas! – enerva-se o Sr. Matos.
Pois é, apesar de todas as vantagens, o motorista não pode abusar sem limites. Porque de “ucraniano” a “Sr. Sergey” e de “Sr. Sergey” para o “russo maluco” vai somente a distância de uma ultrapassagem rasante ou de uma travagem derrapante. Embora, feitas as contas finais, a profissão de motorista seja altamente moralizadora para quem está habituado a ser escória da sociedade. Ah, grande motorista, és o maior!

quinta-feira, outubro 19, 2006

O Trompetista

Este era o seu mundo. O seu pequeno mundo, aquele quarto. Meros 12 metros quadrados. Pequeno quarto e o mundo inteiro lá dentro. Lá dentro estava o computador, a televisão e uma cama, mais um armário que servia para guardar roupa e víveres. Um armário-arrecadação-despensa. Não precisava de mais nada, o Samuel.
De dia, trabalhava na câmara municipal, como almeida, varrendo ruas e becos. A sua cabeça nunca esteve lá, só os bolsos. Não espanta. Não é comum alguém idolatrar o lixo. Muito menos o lixo dos outros.
Ele adora o seu quarto. Faz-lhe lembrar a cela onde estivera preso por tráfico de estupefacientes, só que sem o aspecto pavoroso e com luxos, como a internet, que era basicamente para o que ele trabalhava.
O problema é que ele também injectara estupefacientes. Havia uma coisa que ele não conseguia perder, por maior que fosse o esforço para largá-la – a tendência para a adicção, que permanecia intacta.
Samuel queria chutar-se com o que lhe viesse à mão. Algo que o ocupasse, que o entretesse. Ele é um obstinado pelo vício, nunca perdeu o vício. Quanto muito, perdia um vício hoje para ganhar outro amanhã. O seu amado quarto era um vício, Samuel não podia chegar às dez horas da noite sem estar lá ou tremores e suores invadiam-lhe a mente e o corpo, sensações de pânico afligiam-lhe os sentidos. Por ser o seu refúgio, onde ninguém o incomodava e onde a anarquia reinante era água onde ele, Samuel, qual peixe, nadava feliz sem perturbações.
A heroína ficara lá para trás. Foi-se. Levou com ela anos de vida, alguns dentes e a qualidade dermatológica de Samuel. Ela foi mais que uma companheira assídua da sua vida, foi um desafio, exigia sempre mais e mais. Agora tinha ido embora. Mas parecia ainda espreitar em cada esquina, assobiar em cada canto, Samuel receava olhar para trás e vê-la sorrir em tentação. Tinha de se chutar com qualquer outra coisa que fosse desafiante.
Não se pense, contudo, que ele possui um carácter marcadamente ambicioso, sempre à procura de obstáculos por ultrapassar. Não, a sua ambição é uma não-ambição, é o não querer ser. Samuel exercia uma contra-força que se movimentava na razão proporcional e contrária à força da qual queria fugir. Se a heroína era um íman, ele buscava o anti-íman. O substituto mais próximo de agora era a internet.
Antes fora a bebida. Mas não lhe fez bem. Procurou a literatura, mas aborrecia-lhe. Experimentou o jogo, mas a batota minou-lhe a atracção. Viu televisão e cinema e, realmente, foi um bom escape. Tornou-se um ás no cinema de acção, assistiu a tudo o que era Van Damme, Chuck Norris e Bruce Lee. Sobrepôs a este vício o gosto pela música, que ultrapassou o carácter de vício para assumir a forma de paixão infinita. Nem Samuel sabia que tanta e tão boa música se fazia e se fizera por aí. Com a internet, satisfazia as mais pequenas curiosidades, sacava filmes, séries, bandas-sonoras e compilações. Com isto é que ele se tinha chutado recentemente.
Ele gostava de futebol. Também se divertia com ele. Houve um dia em que reparou que futebol e música se podiam conjugar numa entidade só, uma simbiose de alegria e humanidade: foi quando ouviu o trompetista das Antas.
Existiam os corneteiros apoiantes da selecção holandesa, também eles bem dispostos. Mas aquele trompetista, saído do Conservatório directamente para as frias bancadas das Antas ou para o pavilhão Américo de Sá, é que lhe despertava as atenções. O trompetista embalava os adeptos e a própria equipa da casa. Samuel ouviu trechos de “Yellow Submarine”, dos Beatles; música clássica e música popular. Apreciou a peculiaridade deste homem, que preferia soprar no seu trompete a assistir o espectáculo convenientemente. Este trompetista era um espectáculo dentro do espectáculo. “Tá-tá-tá Tátátárárá Tá-tá-tá Tátátárárá”, ecoava pelas bancadas.
Samuel via no trompetista uma pessoa como ele, teimosa, disposta a levar os seus vícios particulares avante, neste caso, o trompete e o desporto, sem reservas, deixando-os comandar as suas acções. Admirava-o. Julgava que ele vivia para apoiar a equipa de trompete, tal como Samuel vivia para satisfazer os seus pequenos prazeres na caminhada para fora da droga. Todos os jogos lá estava ele, trompeteando o seu reportório não muito alargado. Numa noite, instalado no seu quarto, deixou a internet de lado e pensou apenas em ver o jogo. A obsessão pelo trompetista, seu irmão de mentalidade e ídolo, abraçou-o com força.
A surpresa foi enorme. O estádio já era outro, novo, o trompetista não se ouvia. Um sentimento de desilusão percorreu-lhe a espinha. Outro e outro jogo passaram e nada de acordes musicais no estádio. Ouviu-o apenas esporadicamente e sem a verve anterior num ou noutro jogo. Samuel perdeu um irmão. Percebeu que o trompetista cumprira um ciclo da sua vida, outras coisas mais importantes se teriam levantado. Será que haveria mais alguém que fizesse dos seus vícios belas expressões de arte contínuas capazes de fascinar como aquele trompetista? A única coisa que Samuel sabia é que o trompetista tinha cessado o seu vício mas que ele próprio sentia os seus intactos. Voltou para a internet.
Felizmente, a internet tem tudo. Conseguiu arranjar a música da claque com cânticos e uma música de trompete. Colou uma por cima do outra e conseguiu uma cópia quase fiel do velho trompetista que tantas afinidades partilhara consigo. Pronto, o som não era exactamente o mesmo, mas Samuel reconfortava-se suficientemente com aquelas memórias.
Toca esse arranjo no seu quarto. Vendo a internet e deixando ligada a televisão. Samuel acumula vícios por cima de vícios num ritmo frenético. O ritmo frenético com que se dedica fá-lo sentir relaxado e realizado. Aliviado. O mundo que é o seu quarto ia crescendo, sem nunca se mexer fisicamente. Agora com o som do trompete que um dia também passou a ser seu. Talvez para sempre.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Os Transportes Públicos: A Problemática da Idade

É matemático: num transporte público qualquer encontramos sempre um ou outro idoso. Em qualquer dia e praticamente a qualquer hora. Principalmente à hora de ponta.
Partamos à análise deste grupo social que preenche com fervor os seus novos santuários que são os interfaces de transportes públicos.
Andamos nós carregados de pastas e papéis a tentar arranjar espaço para, ao menos, segurarmo-nos bem, e o máximo que conseguimos é um lugar recatado junto à saída. Haverá um ancião qualquer que se aproximará, com folgada distância espacio-temporal da próxima paragem, e nos vai interrogar, de uma forma mais ou menos cândida, com mãos mais ou menos tremelicantes: “Vai sair na próxima”?
Que respostas esperam estes animais (não no sentido literal) dos transportes públicos? “Sim” ou “Não”.
Se for “Sim”, irão colar-se a nós (num sentido já mais literal), esperando com alguma impaciência que chegue a paragem. O objectivo que perseguem, e que jamais revelam, é o estar apoiado na porta, assumindo a pole-position para saírem – julgamos que por sentirem o pânico, fundado, de não conseguirem ser lestos o suficiente para percorrer o caminho desde que se levantam do seu assento até saírem pela porta. Ou, receio dos receios, verem as portas fecharem-se à frente e terem de sair na próxima paragem, para depois apanharem o transporte no sentido inverso e fazerem mais uma paragem.
Se for “Não” estamos tramados. O olhar dos velhos torna-se inquisitório e eles não terão pejo em questionar a nossa posição privilegiada junto da saída. Exibem os galões da sua idade. Exigem respeito da juventude. Mesmo se não tivermos opção, temos de obter uma. Rapidamente. É o mínimo que um jovem atrapalhado com as suas cargas tem de fazer para satisfazer o idoso doente que apanha o transporte público para esperar nos bancos dum posto clínico qualquer ou, na pior das hipóteses, simplesmente espairecer.
Os velhos gostam de espairecer. Gostam de passear. Para esquecer maleitas várias. E por isso andam de transportes públicos, aproveitando o facto de existirem passes sociais a preços convidativos, mesmo com as reformas actuais. Os casos mais graves de isolamento requerem uma boa dose de calor humano. E os velhos nesta situação povoam com uma devoção quase diária os nossos transportes públicos nas horas críticas. Muitos dirão que eles atrapalham a marcha normal de quem se sente atrasado para chegar ao emprego. Não é verdade, só pessoas injustas poderão dizer isso. Na verdade, eles são mais que simples empecilhos – são pragas.
Como todas as pragas, possuem um objecto de fixação: os bancos. Aliás, estamos em crer que se não fosse para refastelarem as suas nádegas num bom banquinho usado e gasto nem se dariam à chatice de apanharem um transporte. Esta obsessão inicia-se logo na paragem: os lugares sentados de espera são deles. Se não forem, sê-lo-ão através dum pedido simples (“Posso sentar-me?”). Porém, na maior parte dos casos, basta arrastarem-se suficientemente lentos, de cabeça baixa, exalando com dificuldade, na direcção do banco – provocando a pessoa que lá está a ceder-lhe o seu lugar, sob pena de ser rotulada instantaneamente pelos restantes que estão de pé e pelo próprio idoso de “jovem sem respeito pelos demais”. Amiúde também se pode escutar “o mundo está perdido; a juventude de hoje não tem futuro”.
Uma vez instalados nos bancos já dentro do transporte, inicia-se uma guerra psicológica. E aqui os velhos demonstram muita frescura física e mental. É que o banco onde eles se sentam pela primeira vez naquele transporte nunca é o melhor – ou porque vai sentado de costas relativamente à direcção que o transporte leva, ou porque está muito longe da saída, ou porque tem um guineense mal-cheiroso ao lado. Portanto, é necessário obter um banco melhor. Quando as pessoas se levantam do seu lugar para sair eles actuam: eles já conhecem as caras de todas as pessoas que apanham aquele transporte àquela hora e por isso fixam os movimentos das pessoas; pensam para si “aquele vai sair; tenho de ir para o sítio onde ele está”; e, com uma agilidade que desconhecíamos, erguem-se e já lá estão, prontos a tomar o lugar da pessoa cessante. Essa pessoa, não raras vezes, até tem dificuldades em sair, tal a marcação dos velhos, que, obviamente, não se preocupam com mais nada a não ser no melhor sítio para aconchegar o rabo. Nem sequer na pessoa que já estava há 45 minutos de pé à espera duma oportunidade - pois a prioridade é um exclusivo deles, em qualquer altura. Todos já presenciámos situações onde os velhos trocam 4 ou 5 vezes de lugar (sentado) por viagem, enquanto nós esperamos essa mesma viagem invariavelmente no mesmo lugar (de pé).
E o bom ambiente que estes idosos proporcionam durante o trajecto? Graças a eles, ficamos vacinados contra praticamente todo o tipo de suspiros, queixas, comichões, tosses e gemidos. E conhecemos as histórias dos seus filhos, dos seus netos, dos seus vizinhos, de bizarras enfermidades, de médicos esplêndidos e doutros que nem por isso. Com as mais mexidas aprendemos igualmente a gentil técnica do tricot. Com os velhos sabemos o quão rançosa poderá ser uma boina que oculta a calva ou a quantidade de muco viscoso que pode ser segregado pelo organismo. Tudo lhes é permitido. Porque são velhos e todo o respeito é pouco.
O objectivo desta prosa é mesmo para sublinhar este último conceito: respeito. Muitos destes velhos não admitem que um jovem, se calhar com coisas bem mais importantes a tratar e claramente mais atrasado, lhes passe à frente. Não estão dispostos a facilitar; nesta idade, todos têm de lhes conceder essas facilidades. Vimos que praticamente toda a gente os atura, que lhes cede o lugar, que lhes dá passagem. Mas se há alguém que fura estes ditâmes, então os velhos disparam contra tudo e todos. Para os velhos, o civismo tem apenas um sentido: para eles, nunca deles. Como foi dito atrás, os velhos não perdoam. Generalizam para todo um país a infelicidade de um gesto menos próprio para com eles. Eles são os agentes mais egoistas e arrogantes do nosso sistema de transportes públicos, não conseguindo disfarçar este facto com aqueles olhares arrastados e passos trôpegos. Esta é a triste realidade – ou conservam alguma independência para andarem nos transportes públicos, mas são assim, insuportáveis; ou vão para o lar e definham vegetativamente, sem contudo incomodar muito mais gente que não as assistentes sociais.
É o destino. Qualquer dia seremos assim como eles e não nos queixaremos destas situações, assumi-las-emos como naturais, tal como eles. A história perpetuar-se-á. Um dia seremos nós a rir nos transportes públicos.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Entrevista Rápida na Zona Mista

- O treinador do Desportivo de Boranessa aproxima-se aqui da zona mista… Prof. Venceslau, a sua equipa não esteve em bom plano neste jogo, acabando por perder por 4-1…
- É verdade. Estivémos mal. Não jogámos a ponta de um corno. Merecemos perder e se não fosse o árbitro expulsar incorrectamente um jogador do Paxaxenses podíamos ter perdido por mais, tal a falta de qualidade da nossa equipa.
- Hã [admiração]… está a dizer que a sua equipa foi beneficiada?
- Então não foi? O golo que marcámos tenho quase a certeza que foi em fora-de-jogo e não o merecíamos, pois o Paxaxenses já tinha marcado 2 golos, tinha visto 1 golo anulado e 2 bolas nos postes… e depois a expulsão do nosso adversário complicou-lhes muito a vida, pois estavam a massacrar-nos sem apelo nem agravo… eu gosto muito do Paxaxenses, são uma equipa a sério, que eu gostava de treinar… Agora, este árbitro é miserável… lembro-me que já nos deu 5 pontos neste campeonato sem nós merecermos e sem nós lhe termos pedido favores, o que torna este árbitro realmente irritante. Nós inclusivamente já demonstrámos que conseguimos perder mesmo com ele a ajudar, mas ele insiste…
- Bom, hmm, ahah [riso nervoso], o Prof. a demonstrar alguma insatisfação, por entre declarações surpreendentes pela sua franqueza…
- Insatisfação? Assim-assim. Sabe, quando as pessoas não trabalham os resultados não podem aparecer. Logo, nem estou assim tão insatisfeito. Era natural que perdêssemos este jogo e alertei para isso na conferência de imprensa antes do jogo. Infelizmente, não me levaram a sério…
- Quer apontar o dedo a alguém por falta de empenho?
- Olhe, por norma não aponto o dedo a ninguém…
- Sendo assim, pode comentar a…
- … mas desta vez até aponto. A culpa foi do nosso central, o Joilson Praxedes, que é uma má pessoa dentro e fora dos relvados, com maus comportamentos que vão desde a toalha molhada no rabo do companheiro de equipa no balneário ao contrabando de DVDs na bancada central. E também do nosso nº 10, o criativo Zezinho Joãozinho, que pura e simplesmente não sabe jogar à bola, tendo sido adquirido por catálogo sem nunca o termos visto ao vivo. Ele era equitador, daí o seu arquear das pernas, que por vezes ilude os defesas menos experientes, mas que é manifestamente insuficiente.
- Hmm-hmm [engolindo em seco]… O Prof. Venceslau a fazer revelações importantes sobre o balneário do Desp. Boranessa, admitindo problemas!
- Concerteza, eu sou uma pessoa frontal. Digo mais: o principal culpado sou eu.
- Isto é, o Prof. Venceslau está a dar “o corpo às balas” e a assumir a responsabilidade pelo mau ambiente, tentando assim blindar o balneário de vez…
- “Dar o corpo às balas”, quem, eu? Meu amigo, nem pensar! Se querem ser baleados, que sejam os jogadores, que não jogam nada! Ou o presidente! Há problemas e irão continuar a haver! A minha culpa foi não ter levado um leitor de DVDs para ver um filme enquanto ministrava os treinos. O meu trabalho aborrece-me, sabe? Não tenho vontade nenhuma de treinar aqueles gajos. Mas isso vai mudar, coloquei uma televisão na cabina do 4º árbitro e agora eles que se treinem à vontade que eu só vou lá estar para dar início e fim ao treino.
- Mas… Prof. Venceslau, então se é assim, porque não se demite?
- “Desistir” é palavra que não consta do meu dicionário. “Acobardar-se”, sim; mas “desistir”, não.
- Não acha que seria melhor para todos?
- Bem, visto dessa forma… se calhar sim, vou anotar a sua opinião e depois falamos melhor.
- E agora, Prof. Venceslau? A próximo jogo é contra o Spartak de Caneças e depois vem a eliminatória para a Taça contra o Copos e Garrafões…
- Spartak de Caneças? Nem sequer considero esse jogo. Já estamos a pensar a 200% no jogo contra o Copos e Garrafões.
- Mas… Ainda faltam 2 semanas para esse jogo…
- Não interessa. Esse é o jogo que importa. O resto que se lixe. Quero empenho total para esse jogo.
- Está a desprezar o valor da equipa do Spartak de Caneças, seu próximo oponente?
- Sim, estou a desprezar. São uns coxos. Não jogam nada à bola. Detesto o estádio deles e os seus adeptos, são indivíduos que não merecem uma pinga de respeito, de tão odiosos que são. Até os equipamentos são feios. Já disse ao meu plantel, através de SMS, para não se concentrarem no Spartak, não vale a pena chatearem-se. O mais certo é perdermos, mas que se lixe. Queremos é jogar contra o Copos e Garrafões.
- Vai manter a táctica do 4-2-3-1 no próximo jogo? Os adeptos criticam a táctica por oferecer pouca profundidade ofensiva à equipa…
- Se calhar sim, vou manter. Quem decide as tácticas é o roupeiro, eu decido se jogam os números ímpares ou pares. Se reparou bem, hoje só jogaram números ímpares.
- Pois…por acaso… é curioso... [pausa, a indiciar incredulidade] Prof. Venceslau, tem alguma coisa a dizer dos lenços brancos acenados pelos adeptos na sua direcção?
- Ah, sim, vi os lenços e acho que querem que eu me vá embora. Deixe-me dizer que isso é provável. O banco é frio e desconfortável e vou falar com o presidente. Também, já falhámos o que era importante, que era o campeonato, e…
- Mas vocês ainda estão com 2 pontos de vantagem sobre o Figueira da Figueira… está a dar o campeonato como perdido?
- Eh pá, estou. Não tenho fé em mim nem na equipa. Mas principalmente na equipa. Quem está há tanto tempo no futebol como eu sabe perfeitamente que isto é impossível…
- Bem… obrigado… foi esta a conversa com o Prof. Venceslau, treinador do Desportivo de Boranessa… uma personagem polémica do nosso campeonato.
- Polémico, eu? Eu não tenho é tento na língua. Polémicos são os outros…

sexta-feira, outubro 13, 2006

Azar

Chegados a este dia, impõe-se uma breve reflexão sobre o azar.
O azar é das coisas mais confortáveis que podem existir. É uma explicação fácil para algo que correu mal. É uma excelente desculpa para praticamente tudo o que defraudou as expectativas geradas.
- Eh pá, a camioneta furou o pneu e cheguei 2 horas atrasado ao trabalho.
- Foi azar.
- Eh pá, estava cheio de calor, decidi ir à praia e começou a chover.
- Foi azar.
- Eh pá, dei de caras com a minha filha a fumar um charro à porta da escola.
- Foi azar.
- Eh pá, subiram o imposto municipal de transacções no dia em que comprei uma casa nova.
- Foi azar.
- Eh pá, estava quase a apanhar um cheque de 20.000 euros do chão, mas o vento levantou-se e mandou o cheque para a sarjeta.
- Foi azar.
- Eh pá, estudei tudo o que era neo-realismo e o teste foi sobre proto-romantismo.
- Foi azar.
- Eh pá, bebi um whisky a mais e vomitei todo o chão da sala.
- Foi azar.
- Eh pá, ia para pagar a conta da electricidade e a velha que estava à minha frente demorou 3 horas a ser atendida.
- Foi azar.
- Eh pá, estava todo ensaboado e faltou a água.
- Foi azar.
- Eh pá, depois de ter saído do banho, escorreguei num sabonete, bati com a cabeça no lavatório, mandei o lavatório ao chão, parti a cabeça, a torneira rebentou e provoquei uma inundação, a água entrou numa tomada e deu-se um curto-circuito, lixei os equipamentos eléctricos da minha casa, o meu gato morreu com o choque, o curto-circuito iniciou um fogo que destruiu a minha casa, inclusivé a apólice de seguro que conservava numa gaveta, a minha mulher não soube de nada na altura, porque estava com o amante, mas depois ficou toda lixada, pediu o divórcio, e por ter ido em toalha de banho para o trabalho por causa de toda a minha roupa ter sido queimada no incêndio fui despedido. E ainda houve um cão que me urinou em cima enquanto procurava algo para comer no lixo.
- Foi azar.
- Eh pá, o Benfica voltou a perder.
- Foi mais falta de jeito, se calhar com algum azar pelo meio.
- Sr. Primeiro Ministro, há desempregados a mais, impostos a mais, ordenados de administradores públicos altos demais e continuamos na cauda da Europa.
- Temos tido azar.
E assim continuaremos. Chega de falar sobre assuntos que não percebemos. Chega de opinar sobre tudo e mais alguma coisa sem nada fazer em concreto para mudar a situação. Chega de culpar os outros por tudo o que nos corre mal. Temos algo aqui à mão que serve de resposta a tudo e não ofende ninguém. Temos o bode expiatório universal: o azar.
É uma sorte podermos contar com o azar.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Outros Verões

Ao passear na margem sul, algures entre Almada e o Barreiro, Jeremias repara num muro sujo, na proximidade duma unidade industrial com ares de abandono, visivelmente decrépita. Conseguem-se ainda visualizar uns traços negros que lembram um operário de martelo na mão, como que liderando um pelotão que lhe segue. Tons de amarelo e vermelho gastos bordejam a gravura na parede e subsistem algumas palavras soltas, não consumidas pelo tempo, das quais Jeremias ainda consegue ler “UNIDADE”, “OPERÁRIOS” e “LUTA”. Jeremias detém-se um pouco enquanto Higino, seu neto, sorve um gelado. Olha para o muro de alto a baixo e orgulhoso proclama:
- Fui eu que ajudei a pintar este muro, meu netinho. Já lá vão mais de 30 anos.

Higino dá ares de preocupação no intervalo. Gustavo, seu amigo, entretém-se com uma consola portátil.
- Tenho um problema, Gustavo.
- Hã? Espera aí, deixa-me marcar este livre…
Gustavo aplica-se, move o cursor para o canto superior da baliza, remata em jeito… mas a bola sai por cima da barra, com o guarda-redes em voo aparentando ter o lance controlado.
- Ahhhhhhh!!! Tenho de marcar mais para baixo… diz lá, meu, o que se passa?
- O problema não é comigo, é com o meu avô.
- Ah, o velho que te traz à escola todos os dias… O que é que ele tem?
- Ele diz que foi comunista.
Gustavo retira os olhos da consola. Encara Higino com alguma perplexidade.
- Eh, pá, estás lixado. Quando uma pessoa apanha isso, já não tem cura.
- Não digas isso! – insurge-se Higino, disposto a não aceitar tal negativismo.
- Olha, o meu avô disse que esses “comodistas” não vão a lado nenhum, só querem é roubar o dinheiro dos outros e já não existem…
- Eh, pá, está bem, não é bom… mas também não deve ser assim tão mau…
- Se eu estivesse no teu lugar, dizia para o teu avô ir a correr ao médico.
- Achas que sim? Ele nem parece muito mal…
- … e diz-lhe para sair das correntes de ar.
- Eh pá, estou lixado! – admite Higino – Agora quem é que me vai trazer à escola e comprar-me chupas?

Não, Jeremias não é nostálgico nem sentimentalão. Procura racionalidade nos seus actos. Mais importante, procura racionalidade no comportamento do mundo.
Em 1975, o Verão foi mesmo quente. Foi mesmo longo. Foi especial. Foi um Verão onde o calor do sol se conjugou com o calor proveniente da explosão da liberdade do Abril do ano anterior. Quando o Verão anterior se despedira, nos finais de Setembro, tinha deixado pistas para o próximo Verão, antevendo que se iriam atingir temperaturas tórridas. Esses indícios confirmaram-se na Primavera e logo em Março se deu início à época balnear. As eleições de Abril agitaram os ânimos de tal forma que o Verão só findou em Novembro. Acabou no Monsanto esse Verão. E a partir daí, parece que vivíamos oscilando entre a Primavera e o Outono, desprovidos dos calores dum Verão que se quer mesmo quente. Mas devia ser a Jeremias que faltava poder de adaptação às circunstâncias. O mundo parecia viver em perfeita normalidade.
Na verdade, é essa normalidade que inquieta Jeremias. Como podem os jovens idealistas viver num mundo tão apático, e simultaneamente tão satisfeito com a sua superioridade tecnológica, como o de hoje?
Dantes, antes desse grande Verão, havia insatisfação. Havia rebeldia juvenil exposta até a um determinado limite que se julgava inultrapassável, como um muro invisível toldador de sonhos. Esse muro rebentara com a pressão dos tempos e das vontades. Jeremias lembra-se o quanto louvou, num sentido figurativo, a evolução voraz do tempo, que tudo consome, até o que sempre julgámos adquirido. E ele, como muitos dos jovens que provariam o viciante gosto da liberdade, deu asas aos excessos. Foi um espírito particular de estrela do rock n’ roll transposto para uma mole de gente considerável, generalizante. A sociedade, no seu conjunto, excedeu-se. Gritou, saltou, confraternizou, reivindicou.
Jeremias recorda-se de uma multiplicidade de questões nascidas de um momento para o outro, questões essas nunca pensadas até então. De uma incerteza diária se o seu emprego ainda estaria lá no dia seguinte. De manifestações quotidianas sobre tudo e mais alguma coisa. De imagens de televisão a preto e branco e com um cariz demasiado sério. Da palavra “revolução” pintada em cada canto e em cada boca. De ataques à bomba contra sedes de partidos clandestinos ou não, nascidos como cogumelos e sem conteúdo mas com muita vontade. Ataques que Jeremias, se
fosse necessário, não teria problemas em perpetrar, se assim o grupo a que pertencia deliberasse.
Havia algo que comandava os instintos do povo. Não sabe se seria o MFA essa sentinela, omnipresente no topo do mundo. Duvidava que fosse. O MFA apenas queria apropriar-se dos sonhos dessa gente e acicatá-los de forma a que essa população os julgasse seus líderes. Oportunistas, portanto, gozando do poder institucional que souberam catar. Contudo, deram a cara. Partilhavam as mesmas utopias. Queriam ser irmãos ou pais, mesmo que não gostássemos deles e os achássemos abusivos. Havia alguém que se queria responsabilizar por algo, havia homens a querer educar o povo com um objectivo definido, nem que os meios para alcançar o fim fossem confusos.
Outros valores se foram levantando, entretanto. A personagem do MFA saiu do topo do mundo, disponibilizando o seu lugar. Num ápice o seu filho cresceu, indiferente às lutas à sua volta, alienado pela felicidade dos anos 80. Gorbachev alastrou a sua mancha, o muro caiu, depois a própria Mãe Rússia, nos braços do capitalismo selvagem. Os anos 90 trouxeram alguma indecisão, mas o novo século arrancou com o nascimento prematuro do seu neto, filho do seu filho, por sua vez gerado no olho do furacão e crescido sob o signo da indiferença. O novo século não apresenta dúvidas para ninguém. O novo século é a glória da apatia, o apogeu da imobilidade intelectual. As massas obedecem ao status quo e, qual barquinho sem força, deixam-se arrastar pelas ondas da super-modernidade. A ameaça não é vermelha nem de outra cor qualquer: é abstracta, no limiar da cinematografia fantástica.
Jeremias ao menos anseia pelas dificuldades, pela insurreição que as vicissitudes provocam. Fiel à velha escola historicista, suporta a sua tese com o século XX: a belle-époque dos anos 20 foi fulminada pelo crash de 1929; a estética limpa dos anos 50 desbaratada pela inconsequente rebeldia hippie; a euforia yuppie dos anos 80 beliscada pelas encruzilhadas adoslescentes patentes nos anos 90; e este conformismo grassante deverá, mais tarde ou mais cedo, dar lugar a uma qualquer revolução. Jeremias adora o som desta palavra, “revolução”, fá-lo sentir heróico e com sentido nesta vida.
Ao ouvir a nova sensação musical dos jovens que serão o mundo de amanhã, Jeremias fica a pensar. Conseguiria ele ser tão positivo como o FF? Abriria mão ao saudosismo que pairava sobre si? Não sabe. Mas como ele via o reflexo fútil das novas gerações nesta letra e nesta música…

“E o meu Verão não acabou/ És o Sol que aquece o Outono que chegou/E sei que contigo eu estou bem/E quando estás comigo não há mais ninguém/ E se um dia o Sol deixar de brilhar/ Eu sei que te vou recordar/ Como o Verão que não acabou”.
Naquele Verão que já acabou há uma eternidade, era José Mário Branco e seus pares quem se ouvia, em acordes simples e mensagens politizadas. Está fora de moda. Jeremias, teme, está todo ele fora de moda.

Higino volta-se para Gustavo, no meio de uma aula. Gustavo estava a jogar sorrateiramente na sua consola portátil, não fosse a professora descobrir.
- Ó Gustavo, sabes o que é um “faxista”?
- Um quê?
- Um “faxista”. O meu avô diz que esses é que são maus… por exemplo, nem nos deixavam jogar à bola, se fosse preciso.
- Eh, pá, não… Deve ser o teu avô que está maluco. A minha avó tem um chá que cura tudo. Desde dores de burro até… até “faxista”, ou lá o que é isso.
- A sério?
- Iá, só que o teu avô tem de matar um gato para ter efeito.
- Bolas!... Como é que eu vou dizer isso ao meu avô?
- Sei lá… estou quase a derrotar o mestre japonês!
- Então mas não tinhas o jogo de futebol que a tua mãe te deu anteontem?
- Já estou farto desse… já ganho por 10-0… agora tenho o “Super Fighter XXI”. Espectáculo!
Gustavo aplica um golpe fulminante que faz a consola emitir um som vitorioso. Vitorioso e demasiado alto. A professora mandou ambos calarem-se. Gustavo, inebriado, ignorou e continuou para o próximo nível.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Mais Um Pouco de Pornografia

Primeiro reparei na mãe. Era generosa fisicamente. Tratava-me bem. Depois de termos relações, ela arrumava-se no seu roupão e trazia-me bolinhos enquanto víamos os anúncios a passar na televisão.
Depois reparei na filha. Perdi-me de desejo por ela.
Apercebi-me que tinha estado errado o tempo todo. O que eu gosto mesmo é da raparigas novas, fresquinhas, prontas a estrear nos meandros do sexo. Já não queria saber de peles flácidas, seios descaídos, dentes amarelados pelo café e tabaco e aquela convicção mental arrogante de tudo julgar perceber àcerca dos sentimentos das outras pessoas, outrora tão inspirador de confiança e hoje tão ultrapassado, tão decrépito.
As mulheres maduras apodreceram para mim. Ganhei repulsa daquelas conversas usuais sobre telenovelas, mexericos de bairro e decorações interiores. Causavam-me mal estar. Adélia interrogava-se:
- Então, Américo, que se passa? Faltam-te forças?
Não aguentava mais. O meu cérebro parecia um disjuntor que cortava toda a minha corrente físico-sexual perante ela, a mãe. Tive de sair de cima dela ao fim de breves instantes. Adélia não estava contente, não podia estar contente, começou por desconfiar dela mesma.
- Engordei um bocadinho, não foi? – intrigava-se diante do espelho, preocupada.
- Esquece, tive um dia cheio de stress, deve ter sido isso – referi, de forma a não ferir susceptibilidades.
Mentia. Para ela e para mim. Eu já não conseguia interessar-me nela depois de reparar na Karina. A sua filha. Essa sim, jovem fogosa e incandescente na sua puberdade explosiva de vida. Era um raio de sol, a menina. Quê?, 15 anos? Que interessa. Ela era a provocação personificada num corpinho tenro. Imaginava-a a cavalgar sobre mim, sorrindo com plena felicidade inocente, entregando os seus louros cabelos ao sol e o seu corpo com tímidos pêlos púbicos que teimam em aparecer a mim.
Karina não tinha outros vícios que não a alegria de viver. Ousava experimentar. Adélia estava cheia de preconceitos. Julgava que conseguia perceber tudo. Inclinei-me para Karina de uma forma suficientemente explícita. Tinha idade para ser pai dela. E Karina, esperta como só a juventude consegue ser, sorriu perante o meu fascínio patético, beijando-me a testa. Adélia amuou. Lá no fundo, conseguiu mesmo acertar desta vez – fora trocada pela filha, o amante dela já não a prefere, mas sim uma jovem, a filha dela.
- Não prestas para nada, Américo… Metes-me nojo, tarado.
Não me considerava um tarado. Naquela altura, gostava de raparigas virginais. É natural. Enjoei-me das formas envelhecidas e da mentalidade corrompida. Abracei com ardor as curvas juvenis e os pensamentos livres, pueris. Não descansei enquanto não levei Karina para o meu carro. Ela, talvez maliciosa, talvez inocente, revelou-me os seus pequenos seios, erectos. Perguntou-me se gostava do que via. Perdi o controlo.
Deixei que ela me manipulasse com os seus 15 aninhos repletos de sensualidade. Rendi-me como um boneco de estimação nas mãos dela. Beijei-a e acariciei o corpo dela como se estivesse a sorver vida da sua boca, pescoço e peito. E ela surpreendeu-me ao abocanhar-me o sexo. Chupou-me como se fosse um gelado. Lambeu-me como se fosse um chupa-chupa. Mexeu-me como se fosse um ursinho de peluche. Explodi na bela cara dela, enchendo a sua boca com uma pasta branca aquecida, estragando a sua pastilha elástica de mentol. Ela estava sorridente e aquele sorriso foi um ponto final felicíssimo daquela jornada de prazer inolvidável.
No dia seguinte, fui esperá-la à escola outra vez. Nada. Liguei para Adélia. Nada. Dirigi-me a casa dela. Nada. Uma vizinha disse que Adélia pegara nas malas e abalara para parte incerta. Não estava com cara alegre. Nem ela, nem Karina.
Mesmo se regressarem, Adélia irá repelir-me e Karina ficará sob protecção reforçada. Perdi-as, tenho consciência disso, ao querer das duas o que só uma me podia dar. Que se lixe. Estive com a mãe, diverti-me com a filha. Saboreei a carne de mulheres distintas e ambas souberam-me bem, em tempos diferentes.
Querem um homem com vontade de praticar pecados carnais sem medo de arrependimento? Têm-me a mim. Para mim, cada mulher encerra uma experiência diferente. Acredito que sou um homem normal, ansioso por desnudar as mulheres, senti-las, gozar e seguir para a próxima. Não posso ser um pervertido, são homens como eu que dão continuidade à espécie. Tarados são os outros, pedófilos, homossexuais, transexuais, necrófilos, zoolófilos. Eu apenas tenho vontade de provar o outro sexo, como deve naturalmente ser. E todas as mulheres acabam por me satisfazer, de uma forma ou doutra, ontem, hoje ou amanhã.
Haverá questões éticas pelo meio? Eventualmente. Adélia certamente que achou que sim, do alto da sua propalada experiência. Para mim, o que é importante agora é saber quem é a brasileira cuzuda que está a olhar para mim naquela mesa. Já alguma vez estiveram com uma brasileira? Eu não. Gostava de tentar.