segunda-feira, outubro 30, 2006

A Tatiana Fez Uma Tatuagem

- Tatiana, o que é que isso representa?
- É fixe, não é? Isso representa muito para mim.

Uma história feita de pontos altos muito baixos. Sobrevivendo na penumbra, perdida entre a multidão que deambula pela cidade. Sonhando com dias de fulgor embrenhada nas profundezas da estação de metropolitano mais decrépita. Sorvendo o pó do cimento como substituto do pó das estrelas. Um cigarro aceso com um isqueiro Bic. Tatiana, eras mediana.
Olhavas para os cartazes que pululavam pelos passeios com aversão. Porque eram sinais do capitalismo selvagem que contestavas e porque podias perfeitamente encarnar a personagem, fazendo melhor figura. Sim, possuías uma beleza inata, segundo a tua perspectiva. Sim, eras de esquerda. Escrevias à esquerda, andavas à esquerda pela escada rolante, os teus amigos diziam que a “esquerda vencerá” e os gajos do Bloco são pessoas “altamente”, sempre prontas a fumar uma ganza contigo. A direita é para os “betos”, para os gordos que conduzem o 4x4 na avenida e que comem nas assassinas cadeias de fast-food. Eras de esquerda porque sim. Eras de esquerda porque tinhas de ser, se querias estar na moda. Só a esquerda é jovem, só a esquerda tem piada. Tu eras jovem e cheia de piada, mas a tua vida não tinha luminosidade. Eras uma árvore de Natal viçosa e esbelta mas sem enfeitos. Uma foice resplandecente sem martelo, uma MTV sem hip-hop.

- O que vem a seguir?
- Quero fazer uma outra no pescoço, aqui atrás, com o nome do meu sobrinho.
- Já sabes como ele se vai chamar?
- Deve ser Tadeu. O que importa é que tenha tudo pronto para mostrá-la na manif contra a tourada do próximo mês.
- Altamente. Os touros sabem ler?
- Acho que não. Mas sentem as vibrações positivas.

Como elevar a tua personalidade acima do lodo onde te acomodavas? Havia que pôr cobro à pasmaceira. A monotonia do mundo é quebrada diariamente com espectáculos de malabarismo na Baixa, com músicas étnicas debitadas a alto no som no quarto do teu T3 na nova urbanização, ritmos sacados da Internet rápida que o teu pai instalou lá para casa. Fazias o possível para mudar o mundo. Mas ainda faltava revolucionar-te a ti própria, Tatiana. Não a nível do pensamento, já que esse está sintonizado com o que de melhor existe na tua sociedade de jovens – eras consciente, vegetariana, anti-globalização e os teus amigos estão sempre no topo das prioridades. Decidiste que o teu visual não estava adaptado às novas exigências. Não te respeitavam sem um aspecto que não chocasse. A tua mentalidade de desafio requeria um corpo aberto ao manifesto. A Branca de Neve não era apelidada como tal se fosse uma preta do Uganda – e tu não serias a mais radical jovem do teu bairro se continuasses a ter um aspecto tão trivial.

- Eu acho o máximo teres os braços e as pernas cobertas de tatuagens, mas…
- … e as costas, também. Não te esqueças que tenho um sol, um cavalo e um desenho tribal nas costas.
- … e as costas, mas eu não era capaz, falta-me coragem.
- O que custa é a primeira. Depois elas fazem parte de ti, marcam-te para a vida. Não me vejo sem tatuagens hoje em dia. Quero encher-me delas!

Não estavas a acompanhar a evolução. Tinhas uma sacola a tiracolo com o símbolo da Cannabis, roupas largas, bombazine e buraquinhos na roupa. Cabelo desgrenhado e ténis sujos. Preenchias os requisitos da moda, com um senão: na praia, por exemplo, serias totalmente vulgar, igual a uma adolescente da telenovela. Isso era extremamente gravoso para a tua imagem, para a tua cabeça, Tatiana. Remoías-te por dentro, bolas!, eu não sou assim, isto é uma vergonha!, até os meus pais podiam gostar de mim! Fizeste uma tatuagem, como se desses um passo mais além. Escolheste algo do catálogo. Ainda com o receio do passo mais além ser para lá do abismo, perguntaste a medo:
- Essa tatuagem já foi feita a alguém?
- Não, não, eu garanto que não; tenho mais de 1500 desenhos em catálogo, era preciso muito azar.
Individualidade, Tatiana, individualidade. Um bem precioso. Tens de ser diferente dos demais, mantendo-te englobável no teu grupo. Depois daquela tatuagem começaste a cheirar um odor diferente na atmosfera - era o perfume da vaidosa superioridade estética. Elevaste-te acima dos demais. Ganhaste centímetros com o orgulho que aquela tatuagem fez parir dentro de ti. Tinhas de fazer mais, ser maior. Uma e outra mais, o corpo manchou-se de desenhos, caracteres esotéricos, riscos de diferentes cores e feitios. Tatiana, és um placard publicitário andante. Publicitas a tua mentalidade arrojada. Manténs os fantasmas da banalidade longe da tua vista e as vistas concentradas em ti. Afastaste-te da indiferença.

- Tatiana, gostava de ser como tu.
- Obrigada! Mas podes ser tu mesma, mesmo sem tatuagens. Cada um tem o seu espaço.

És magnânima, Tatiana. Sabes bem que és maior que todos os teus iguais, que mesmo que alcancem o seu espaço ficarão num plano de inferioridade perante a tua rebeldia fotogénica. Foste a primeira, tiveste a ideia, adquiriste o exclusivo. Neste jogo de aparências ganhaste este nível. Com as tatuagens ganhaste atenção, com a atenção ganhaste respeito dos teus pares. Pressentes que o teu corpo é demasiado pequeno para a tua ilimitada mente. Uma mente progressista, atenta às desigualdades do mundo, combativa, solidária para com os desfavorecidos, sempre em evolução. Ao mesmo tempo, uma mente que necessita dum aspecto distinto para ser.
PS: O álbum dos Rolling Stones foi escolhido pelo seu título ("Tattoo You") para ilustrar este post. Não existiu mais nenhum critério para esta escolha. O álbum em si contém "Start Me Up", uma das melhores faixas de sempre de Jagger/ Richards.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Os Transportes Públicos: A Glorificação do Condutor

Uma pessoa sem grande valor social, como um ucraniano, brasileiro ou mesmo um português de bigode e careca, passa na rua incólume e sem perturbações, pois o resto da população não os quer ver por perto. São indivíduos incluídos na base da estratificação da nossa sociedade, sendo portanto a evitar, como aliás aprendemos desde o berço. O mais provável é as restantes pessoas desviarem-se do seu caminho, como se o seu simples respirar carregasse alguma epidemia da qual fosse necessário fugir. Quanto muito, estes seres desprezíveis serão alvo de chacota e nunca conseguirão passar à frente de alguém numa fila.
Porém, há uma situação em que estes dejectos sociais são catapultados para a posição de semi-deuses: quando estão ao volante dum transporte público no qual somos passageiros.
Mal entramos no transporte público, entregamos a nossa fé nas mãos do motorista. O motorista, esse, sabe que pode contar com o nosso apoio incondicional. Então os velhos, essa casta analisada alguns posts atrás, prometem até fazer um bolinho para o motorista ou rezar por ele, desenvolvendo laços de proximidade umbilical com o homem do volante – à falta de um contacto palpável com algum santo, viram-se para o motorista, a concretização material dum emissário divino. O condutor do nosso transporte é, por uma graça inorexavelmente concedida, o melhor motorista do mundo: alguém que segue religiosamente os procedimentos de segurança rodoviária, que domina as regras de trânsito como ninguém, que nunca se engana no percurso e que respeita os demais na estrada como seus irmãos de sangue. O assento onde o motorista apoia as nalgas é um trono sagrado que emana poderes fantásticos. Não restem dúvidas: num transporte público, o meu motorista é sempre melhor que o teu.
Vide o taxista, por exemplo. Eis alguns comentários de pessoas fora do táxi:
- Fogareiros estúpidos! – vocifera a D. Carmelinda.
- Atrasados mentais com a mania que a estrada é toda deles! – vitupera o Manel Enfrascado.
- Deviam tirar-lhes o carro e queimar-lhes a carta de condução! – impugna o Sr. Matos.
Contudo, no interior desse mesmo táxi, as mesmas pessoas revêem a sua atitude para com o motorista, inspiradas pela aura mágica com a qual o homem que nos conduz nos inunda:
- Ó sr. taxista, o sr. não teve culpa no atropelamento, as pessoas é que são umas parvas que se atiram para o meio da estrada! – iliba a D. Carmelinda.
- Se calhar nunca viram uma inversão de marcha neste sítio, não? Vamos em frente, sr. taxista! - solidariza-se Manel Enfrascado.
- Estes gajos não sabem andar na rotunda, é o que é! E depois ainda buzinam! – aprova o Sr. Matos.
Quando ao volante, o condutor tem total liberdade para nos arranjar a melhor alternativa.
- Fez muito bem em ultrapassar aquele carro no semáforo vermelho, sr. motorista, aquele maluco estava a atrasar-nos a todos!
- Aqueles idiotas ficaram a gritar… andassem nos passeios, é para isso que foram feitos!
- Particular a circular na faixa do “BUS” devia dar prisão! Ignorantes, parece que não sabem ler! Já não há respeito!
Bem, ainda será possível, numa ou noutra situação, o estatuto de imunidade do condutor ser beliscado: quando não param na paragem e deixam as pessoas incrédulas, a ver o autocarro passar e elas de braço esticado, ou no caso de atrasos de horas. Ainda assim, obtêm-se explicações que atenuam a culpabilidade do motorista.
- Eu conheço aquele motorista e ele conduz melhor que ninguém. O problema é que ele vê mal ao perto e nem sempre nos vê a acenar…
- Ele se não parou tinha os seus motivos. Se calhar porque o autocarro vinha a abarrotar. Ou porque não lhe apeteceu parar. Sabe-se como é, ganha-se balanço e depois é difícil parar… Temos de aceitar.
- Isto do atraso é culpa da chuva e desses senhores que querem armar-se em grandes e trazer o carro para dentro da cidade com um tempo destes!
- Pois é, a camioneta avariou-se porque está para ir para a sucata! A companhia rodoviária não sabe apetrechar os excelentes motoristas que tem com as condições devidas! Eles fazem o melhor que sabem!
Estamos cientes que a travagem brusca pode provocar acidentes dentro do veículo. Quando existem uma ou duas travagens bruscas, a responsabilidade foi de alguém (“Estúpido! Anormal! Cabeçudo!”) que se atravessou à frente do nosso bondoso transporte. Mas se forem muitas travagens por viagem… o motorista cai em descrédito. Sim, as travagens bruscas podem destruir o prestígio dum condutor. O pedestal onde deveriam estar parte-se em cacos e a sua reputação ficará indelevelmente manchada durante o resto do percurso. Os mais ressentidos irão mesmo evitar andar noutro transporte conduzido por esse condutor durante algum tempo. Imaginamos como se sentirá o motorista, debaixo do coro de protestos que se levantam aquando da terceira ou quarta pisadela mais vigorosa no pedal do meio:
- Deve pensar que está a conduzir animais! – insinua a D. Carmelinda.
- Este tirou a carta ontem, de certeza! – raciocina o Manel Enfrascado.
- A empresa tem pouco dinheiro e depois vão buscar estes gajos que nem conduzir sabem… fiquei com a perna toda negra e ninguém me vai pagar as pomadas! – enerva-se o Sr. Matos.
Pois é, apesar de todas as vantagens, o motorista não pode abusar sem limites. Porque de “ucraniano” a “Sr. Sergey” e de “Sr. Sergey” para o “russo maluco” vai somente a distância de uma ultrapassagem rasante ou de uma travagem derrapante. Embora, feitas as contas finais, a profissão de motorista seja altamente moralizadora para quem está habituado a ser escória da sociedade. Ah, grande motorista, és o maior!

quinta-feira, outubro 19, 2006

O Trompetista

Este era o seu mundo. O seu pequeno mundo, aquele quarto. Meros 12 metros quadrados. Pequeno quarto e o mundo inteiro lá dentro. Lá dentro estava o computador, a televisão e uma cama, mais um armário que servia para guardar roupa e víveres. Um armário-arrecadação-despensa. Não precisava de mais nada, o Samuel.
De dia, trabalhava na câmara municipal, como almeida, varrendo ruas e becos. A sua cabeça nunca esteve lá, só os bolsos. Não espanta. Não é comum alguém idolatrar o lixo. Muito menos o lixo dos outros.
Ele adora o seu quarto. Faz-lhe lembrar a cela onde estivera preso por tráfico de estupefacientes, só que sem o aspecto pavoroso e com luxos, como a internet, que era basicamente para o que ele trabalhava.
O problema é que ele também injectara estupefacientes. Havia uma coisa que ele não conseguia perder, por maior que fosse o esforço para largá-la – a tendência para a adicção, que permanecia intacta.
Samuel queria chutar-se com o que lhe viesse à mão. Algo que o ocupasse, que o entretesse. Ele é um obstinado pelo vício, nunca perdeu o vício. Quanto muito, perdia um vício hoje para ganhar outro amanhã. O seu amado quarto era um vício, Samuel não podia chegar às dez horas da noite sem estar lá ou tremores e suores invadiam-lhe a mente e o corpo, sensações de pânico afligiam-lhe os sentidos. Por ser o seu refúgio, onde ninguém o incomodava e onde a anarquia reinante era água onde ele, Samuel, qual peixe, nadava feliz sem perturbações.
A heroína ficara lá para trás. Foi-se. Levou com ela anos de vida, alguns dentes e a qualidade dermatológica de Samuel. Ela foi mais que uma companheira assídua da sua vida, foi um desafio, exigia sempre mais e mais. Agora tinha ido embora. Mas parecia ainda espreitar em cada esquina, assobiar em cada canto, Samuel receava olhar para trás e vê-la sorrir em tentação. Tinha de se chutar com qualquer outra coisa que fosse desafiante.
Não se pense, contudo, que ele possui um carácter marcadamente ambicioso, sempre à procura de obstáculos por ultrapassar. Não, a sua ambição é uma não-ambição, é o não querer ser. Samuel exercia uma contra-força que se movimentava na razão proporcional e contrária à força da qual queria fugir. Se a heroína era um íman, ele buscava o anti-íman. O substituto mais próximo de agora era a internet.
Antes fora a bebida. Mas não lhe fez bem. Procurou a literatura, mas aborrecia-lhe. Experimentou o jogo, mas a batota minou-lhe a atracção. Viu televisão e cinema e, realmente, foi um bom escape. Tornou-se um ás no cinema de acção, assistiu a tudo o que era Van Damme, Chuck Norris e Bruce Lee. Sobrepôs a este vício o gosto pela música, que ultrapassou o carácter de vício para assumir a forma de paixão infinita. Nem Samuel sabia que tanta e tão boa música se fazia e se fizera por aí. Com a internet, satisfazia as mais pequenas curiosidades, sacava filmes, séries, bandas-sonoras e compilações. Com isto é que ele se tinha chutado recentemente.
Ele gostava de futebol. Também se divertia com ele. Houve um dia em que reparou que futebol e música se podiam conjugar numa entidade só, uma simbiose de alegria e humanidade: foi quando ouviu o trompetista das Antas.
Existiam os corneteiros apoiantes da selecção holandesa, também eles bem dispostos. Mas aquele trompetista, saído do Conservatório directamente para as frias bancadas das Antas ou para o pavilhão Américo de Sá, é que lhe despertava as atenções. O trompetista embalava os adeptos e a própria equipa da casa. Samuel ouviu trechos de “Yellow Submarine”, dos Beatles; música clássica e música popular. Apreciou a peculiaridade deste homem, que preferia soprar no seu trompete a assistir o espectáculo convenientemente. Este trompetista era um espectáculo dentro do espectáculo. “Tá-tá-tá Tátátárárá Tá-tá-tá Tátátárárá”, ecoava pelas bancadas.
Samuel via no trompetista uma pessoa como ele, teimosa, disposta a levar os seus vícios particulares avante, neste caso, o trompete e o desporto, sem reservas, deixando-os comandar as suas acções. Admirava-o. Julgava que ele vivia para apoiar a equipa de trompete, tal como Samuel vivia para satisfazer os seus pequenos prazeres na caminhada para fora da droga. Todos os jogos lá estava ele, trompeteando o seu reportório não muito alargado. Numa noite, instalado no seu quarto, deixou a internet de lado e pensou apenas em ver o jogo. A obsessão pelo trompetista, seu irmão de mentalidade e ídolo, abraçou-o com força.
A surpresa foi enorme. O estádio já era outro, novo, o trompetista não se ouvia. Um sentimento de desilusão percorreu-lhe a espinha. Outro e outro jogo passaram e nada de acordes musicais no estádio. Ouviu-o apenas esporadicamente e sem a verve anterior num ou noutro jogo. Samuel perdeu um irmão. Percebeu que o trompetista cumprira um ciclo da sua vida, outras coisas mais importantes se teriam levantado. Será que haveria mais alguém que fizesse dos seus vícios belas expressões de arte contínuas capazes de fascinar como aquele trompetista? A única coisa que Samuel sabia é que o trompetista tinha cessado o seu vício mas que ele próprio sentia os seus intactos. Voltou para a internet.
Felizmente, a internet tem tudo. Conseguiu arranjar a música da claque com cânticos e uma música de trompete. Colou uma por cima do outra e conseguiu uma cópia quase fiel do velho trompetista que tantas afinidades partilhara consigo. Pronto, o som não era exactamente o mesmo, mas Samuel reconfortava-se suficientemente com aquelas memórias.
Toca esse arranjo no seu quarto. Vendo a internet e deixando ligada a televisão. Samuel acumula vícios por cima de vícios num ritmo frenético. O ritmo frenético com que se dedica fá-lo sentir relaxado e realizado. Aliviado. O mundo que é o seu quarto ia crescendo, sem nunca se mexer fisicamente. Agora com o som do trompete que um dia também passou a ser seu. Talvez para sempre.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Os Transportes Públicos: A Problemática da Idade

É matemático: num transporte público qualquer encontramos sempre um ou outro idoso. Em qualquer dia e praticamente a qualquer hora. Principalmente à hora de ponta.
Partamos à análise deste grupo social que preenche com fervor os seus novos santuários que são os interfaces de transportes públicos.
Andamos nós carregados de pastas e papéis a tentar arranjar espaço para, ao menos, segurarmo-nos bem, e o máximo que conseguimos é um lugar recatado junto à saída. Haverá um ancião qualquer que se aproximará, com folgada distância espacio-temporal da próxima paragem, e nos vai interrogar, de uma forma mais ou menos cândida, com mãos mais ou menos tremelicantes: “Vai sair na próxima”?
Que respostas esperam estes animais (não no sentido literal) dos transportes públicos? “Sim” ou “Não”.
Se for “Sim”, irão colar-se a nós (num sentido já mais literal), esperando com alguma impaciência que chegue a paragem. O objectivo que perseguem, e que jamais revelam, é o estar apoiado na porta, assumindo a pole-position para saírem – julgamos que por sentirem o pânico, fundado, de não conseguirem ser lestos o suficiente para percorrer o caminho desde que se levantam do seu assento até saírem pela porta. Ou, receio dos receios, verem as portas fecharem-se à frente e terem de sair na próxima paragem, para depois apanharem o transporte no sentido inverso e fazerem mais uma paragem.
Se for “Não” estamos tramados. O olhar dos velhos torna-se inquisitório e eles não terão pejo em questionar a nossa posição privilegiada junto da saída. Exibem os galões da sua idade. Exigem respeito da juventude. Mesmo se não tivermos opção, temos de obter uma. Rapidamente. É o mínimo que um jovem atrapalhado com as suas cargas tem de fazer para satisfazer o idoso doente que apanha o transporte público para esperar nos bancos dum posto clínico qualquer ou, na pior das hipóteses, simplesmente espairecer.
Os velhos gostam de espairecer. Gostam de passear. Para esquecer maleitas várias. E por isso andam de transportes públicos, aproveitando o facto de existirem passes sociais a preços convidativos, mesmo com as reformas actuais. Os casos mais graves de isolamento requerem uma boa dose de calor humano. E os velhos nesta situação povoam com uma devoção quase diária os nossos transportes públicos nas horas críticas. Muitos dirão que eles atrapalham a marcha normal de quem se sente atrasado para chegar ao emprego. Não é verdade, só pessoas injustas poderão dizer isso. Na verdade, eles são mais que simples empecilhos – são pragas.
Como todas as pragas, possuem um objecto de fixação: os bancos. Aliás, estamos em crer que se não fosse para refastelarem as suas nádegas num bom banquinho usado e gasto nem se dariam à chatice de apanharem um transporte. Esta obsessão inicia-se logo na paragem: os lugares sentados de espera são deles. Se não forem, sê-lo-ão através dum pedido simples (“Posso sentar-me?”). Porém, na maior parte dos casos, basta arrastarem-se suficientemente lentos, de cabeça baixa, exalando com dificuldade, na direcção do banco – provocando a pessoa que lá está a ceder-lhe o seu lugar, sob pena de ser rotulada instantaneamente pelos restantes que estão de pé e pelo próprio idoso de “jovem sem respeito pelos demais”. Amiúde também se pode escutar “o mundo está perdido; a juventude de hoje não tem futuro”.
Uma vez instalados nos bancos já dentro do transporte, inicia-se uma guerra psicológica. E aqui os velhos demonstram muita frescura física e mental. É que o banco onde eles se sentam pela primeira vez naquele transporte nunca é o melhor – ou porque vai sentado de costas relativamente à direcção que o transporte leva, ou porque está muito longe da saída, ou porque tem um guineense mal-cheiroso ao lado. Portanto, é necessário obter um banco melhor. Quando as pessoas se levantam do seu lugar para sair eles actuam: eles já conhecem as caras de todas as pessoas que apanham aquele transporte àquela hora e por isso fixam os movimentos das pessoas; pensam para si “aquele vai sair; tenho de ir para o sítio onde ele está”; e, com uma agilidade que desconhecíamos, erguem-se e já lá estão, prontos a tomar o lugar da pessoa cessante. Essa pessoa, não raras vezes, até tem dificuldades em sair, tal a marcação dos velhos, que, obviamente, não se preocupam com mais nada a não ser no melhor sítio para aconchegar o rabo. Nem sequer na pessoa que já estava há 45 minutos de pé à espera duma oportunidade - pois a prioridade é um exclusivo deles, em qualquer altura. Todos já presenciámos situações onde os velhos trocam 4 ou 5 vezes de lugar (sentado) por viagem, enquanto nós esperamos essa mesma viagem invariavelmente no mesmo lugar (de pé).
E o bom ambiente que estes idosos proporcionam durante o trajecto? Graças a eles, ficamos vacinados contra praticamente todo o tipo de suspiros, queixas, comichões, tosses e gemidos. E conhecemos as histórias dos seus filhos, dos seus netos, dos seus vizinhos, de bizarras enfermidades, de médicos esplêndidos e doutros que nem por isso. Com as mais mexidas aprendemos igualmente a gentil técnica do tricot. Com os velhos sabemos o quão rançosa poderá ser uma boina que oculta a calva ou a quantidade de muco viscoso que pode ser segregado pelo organismo. Tudo lhes é permitido. Porque são velhos e todo o respeito é pouco.
O objectivo desta prosa é mesmo para sublinhar este último conceito: respeito. Muitos destes velhos não admitem que um jovem, se calhar com coisas bem mais importantes a tratar e claramente mais atrasado, lhes passe à frente. Não estão dispostos a facilitar; nesta idade, todos têm de lhes conceder essas facilidades. Vimos que praticamente toda a gente os atura, que lhes cede o lugar, que lhes dá passagem. Mas se há alguém que fura estes ditâmes, então os velhos disparam contra tudo e todos. Para os velhos, o civismo tem apenas um sentido: para eles, nunca deles. Como foi dito atrás, os velhos não perdoam. Generalizam para todo um país a infelicidade de um gesto menos próprio para com eles. Eles são os agentes mais egoistas e arrogantes do nosso sistema de transportes públicos, não conseguindo disfarçar este facto com aqueles olhares arrastados e passos trôpegos. Esta é a triste realidade – ou conservam alguma independência para andarem nos transportes públicos, mas são assim, insuportáveis; ou vão para o lar e definham vegetativamente, sem contudo incomodar muito mais gente que não as assistentes sociais.
É o destino. Qualquer dia seremos assim como eles e não nos queixaremos destas situações, assumi-las-emos como naturais, tal como eles. A história perpetuar-se-á. Um dia seremos nós a rir nos transportes públicos.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Entrevista Rápida na Zona Mista

- O treinador do Desportivo de Boranessa aproxima-se aqui da zona mista… Prof. Venceslau, a sua equipa não esteve em bom plano neste jogo, acabando por perder por 4-1…
- É verdade. Estivémos mal. Não jogámos a ponta de um corno. Merecemos perder e se não fosse o árbitro expulsar incorrectamente um jogador do Paxaxenses podíamos ter perdido por mais, tal a falta de qualidade da nossa equipa.
- Hã [admiração]… está a dizer que a sua equipa foi beneficiada?
- Então não foi? O golo que marcámos tenho quase a certeza que foi em fora-de-jogo e não o merecíamos, pois o Paxaxenses já tinha marcado 2 golos, tinha visto 1 golo anulado e 2 bolas nos postes… e depois a expulsão do nosso adversário complicou-lhes muito a vida, pois estavam a massacrar-nos sem apelo nem agravo… eu gosto muito do Paxaxenses, são uma equipa a sério, que eu gostava de treinar… Agora, este árbitro é miserável… lembro-me que já nos deu 5 pontos neste campeonato sem nós merecermos e sem nós lhe termos pedido favores, o que torna este árbitro realmente irritante. Nós inclusivamente já demonstrámos que conseguimos perder mesmo com ele a ajudar, mas ele insiste…
- Bom, hmm, ahah [riso nervoso], o Prof. a demonstrar alguma insatisfação, por entre declarações surpreendentes pela sua franqueza…
- Insatisfação? Assim-assim. Sabe, quando as pessoas não trabalham os resultados não podem aparecer. Logo, nem estou assim tão insatisfeito. Era natural que perdêssemos este jogo e alertei para isso na conferência de imprensa antes do jogo. Infelizmente, não me levaram a sério…
- Quer apontar o dedo a alguém por falta de empenho?
- Olhe, por norma não aponto o dedo a ninguém…
- Sendo assim, pode comentar a…
- … mas desta vez até aponto. A culpa foi do nosso central, o Joilson Praxedes, que é uma má pessoa dentro e fora dos relvados, com maus comportamentos que vão desde a toalha molhada no rabo do companheiro de equipa no balneário ao contrabando de DVDs na bancada central. E também do nosso nº 10, o criativo Zezinho Joãozinho, que pura e simplesmente não sabe jogar à bola, tendo sido adquirido por catálogo sem nunca o termos visto ao vivo. Ele era equitador, daí o seu arquear das pernas, que por vezes ilude os defesas menos experientes, mas que é manifestamente insuficiente.
- Hmm-hmm [engolindo em seco]… O Prof. Venceslau a fazer revelações importantes sobre o balneário do Desp. Boranessa, admitindo problemas!
- Concerteza, eu sou uma pessoa frontal. Digo mais: o principal culpado sou eu.
- Isto é, o Prof. Venceslau está a dar “o corpo às balas” e a assumir a responsabilidade pelo mau ambiente, tentando assim blindar o balneário de vez…
- “Dar o corpo às balas”, quem, eu? Meu amigo, nem pensar! Se querem ser baleados, que sejam os jogadores, que não jogam nada! Ou o presidente! Há problemas e irão continuar a haver! A minha culpa foi não ter levado um leitor de DVDs para ver um filme enquanto ministrava os treinos. O meu trabalho aborrece-me, sabe? Não tenho vontade nenhuma de treinar aqueles gajos. Mas isso vai mudar, coloquei uma televisão na cabina do 4º árbitro e agora eles que se treinem à vontade que eu só vou lá estar para dar início e fim ao treino.
- Mas… Prof. Venceslau, então se é assim, porque não se demite?
- “Desistir” é palavra que não consta do meu dicionário. “Acobardar-se”, sim; mas “desistir”, não.
- Não acha que seria melhor para todos?
- Bem, visto dessa forma… se calhar sim, vou anotar a sua opinião e depois falamos melhor.
- E agora, Prof. Venceslau? A próximo jogo é contra o Spartak de Caneças e depois vem a eliminatória para a Taça contra o Copos e Garrafões…
- Spartak de Caneças? Nem sequer considero esse jogo. Já estamos a pensar a 200% no jogo contra o Copos e Garrafões.
- Mas… Ainda faltam 2 semanas para esse jogo…
- Não interessa. Esse é o jogo que importa. O resto que se lixe. Quero empenho total para esse jogo.
- Está a desprezar o valor da equipa do Spartak de Caneças, seu próximo oponente?
- Sim, estou a desprezar. São uns coxos. Não jogam nada à bola. Detesto o estádio deles e os seus adeptos, são indivíduos que não merecem uma pinga de respeito, de tão odiosos que são. Até os equipamentos são feios. Já disse ao meu plantel, através de SMS, para não se concentrarem no Spartak, não vale a pena chatearem-se. O mais certo é perdermos, mas que se lixe. Queremos é jogar contra o Copos e Garrafões.
- Vai manter a táctica do 4-2-3-1 no próximo jogo? Os adeptos criticam a táctica por oferecer pouca profundidade ofensiva à equipa…
- Se calhar sim, vou manter. Quem decide as tácticas é o roupeiro, eu decido se jogam os números ímpares ou pares. Se reparou bem, hoje só jogaram números ímpares.
- Pois…por acaso… é curioso... [pausa, a indiciar incredulidade] Prof. Venceslau, tem alguma coisa a dizer dos lenços brancos acenados pelos adeptos na sua direcção?
- Ah, sim, vi os lenços e acho que querem que eu me vá embora. Deixe-me dizer que isso é provável. O banco é frio e desconfortável e vou falar com o presidente. Também, já falhámos o que era importante, que era o campeonato, e…
- Mas vocês ainda estão com 2 pontos de vantagem sobre o Figueira da Figueira… está a dar o campeonato como perdido?
- Eh pá, estou. Não tenho fé em mim nem na equipa. Mas principalmente na equipa. Quem está há tanto tempo no futebol como eu sabe perfeitamente que isto é impossível…
- Bem… obrigado… foi esta a conversa com o Prof. Venceslau, treinador do Desportivo de Boranessa… uma personagem polémica do nosso campeonato.
- Polémico, eu? Eu não tenho é tento na língua. Polémicos são os outros…

sexta-feira, outubro 13, 2006

Azar

Chegados a este dia, impõe-se uma breve reflexão sobre o azar.
O azar é das coisas mais confortáveis que podem existir. É uma explicação fácil para algo que correu mal. É uma excelente desculpa para praticamente tudo o que defraudou as expectativas geradas.
- Eh pá, a camioneta furou o pneu e cheguei 2 horas atrasado ao trabalho.
- Foi azar.
- Eh pá, estava cheio de calor, decidi ir à praia e começou a chover.
- Foi azar.
- Eh pá, dei de caras com a minha filha a fumar um charro à porta da escola.
- Foi azar.
- Eh pá, subiram o imposto municipal de transacções no dia em que comprei uma casa nova.
- Foi azar.
- Eh pá, estava quase a apanhar um cheque de 20.000 euros do chão, mas o vento levantou-se e mandou o cheque para a sarjeta.
- Foi azar.
- Eh pá, estudei tudo o que era neo-realismo e o teste foi sobre proto-romantismo.
- Foi azar.
- Eh pá, bebi um whisky a mais e vomitei todo o chão da sala.
- Foi azar.
- Eh pá, ia para pagar a conta da electricidade e a velha que estava à minha frente demorou 3 horas a ser atendida.
- Foi azar.
- Eh pá, estava todo ensaboado e faltou a água.
- Foi azar.
- Eh pá, depois de ter saído do banho, escorreguei num sabonete, bati com a cabeça no lavatório, mandei o lavatório ao chão, parti a cabeça, a torneira rebentou e provoquei uma inundação, a água entrou numa tomada e deu-se um curto-circuito, lixei os equipamentos eléctricos da minha casa, o meu gato morreu com o choque, o curto-circuito iniciou um fogo que destruiu a minha casa, inclusivé a apólice de seguro que conservava numa gaveta, a minha mulher não soube de nada na altura, porque estava com o amante, mas depois ficou toda lixada, pediu o divórcio, e por ter ido em toalha de banho para o trabalho por causa de toda a minha roupa ter sido queimada no incêndio fui despedido. E ainda houve um cão que me urinou em cima enquanto procurava algo para comer no lixo.
- Foi azar.
- Eh pá, o Benfica voltou a perder.
- Foi mais falta de jeito, se calhar com algum azar pelo meio.
- Sr. Primeiro Ministro, há desempregados a mais, impostos a mais, ordenados de administradores públicos altos demais e continuamos na cauda da Europa.
- Temos tido azar.
E assim continuaremos. Chega de falar sobre assuntos que não percebemos. Chega de opinar sobre tudo e mais alguma coisa sem nada fazer em concreto para mudar a situação. Chega de culpar os outros por tudo o que nos corre mal. Temos algo aqui à mão que serve de resposta a tudo e não ofende ninguém. Temos o bode expiatório universal: o azar.
É uma sorte podermos contar com o azar.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Outros Verões

Ao passear na margem sul, algures entre Almada e o Barreiro, Jeremias repara num muro sujo, na proximidade duma unidade industrial com ares de abandono, visivelmente decrépita. Conseguem-se ainda visualizar uns traços negros que lembram um operário de martelo na mão, como que liderando um pelotão que lhe segue. Tons de amarelo e vermelho gastos bordejam a gravura na parede e subsistem algumas palavras soltas, não consumidas pelo tempo, das quais Jeremias ainda consegue ler “UNIDADE”, “OPERÁRIOS” e “LUTA”. Jeremias detém-se um pouco enquanto Higino, seu neto, sorve um gelado. Olha para o muro de alto a baixo e orgulhoso proclama:
- Fui eu que ajudei a pintar este muro, meu netinho. Já lá vão mais de 30 anos.

Higino dá ares de preocupação no intervalo. Gustavo, seu amigo, entretém-se com uma consola portátil.
- Tenho um problema, Gustavo.
- Hã? Espera aí, deixa-me marcar este livre…
Gustavo aplica-se, move o cursor para o canto superior da baliza, remata em jeito… mas a bola sai por cima da barra, com o guarda-redes em voo aparentando ter o lance controlado.
- Ahhhhhhh!!! Tenho de marcar mais para baixo… diz lá, meu, o que se passa?
- O problema não é comigo, é com o meu avô.
- Ah, o velho que te traz à escola todos os dias… O que é que ele tem?
- Ele diz que foi comunista.
Gustavo retira os olhos da consola. Encara Higino com alguma perplexidade.
- Eh, pá, estás lixado. Quando uma pessoa apanha isso, já não tem cura.
- Não digas isso! – insurge-se Higino, disposto a não aceitar tal negativismo.
- Olha, o meu avô disse que esses “comodistas” não vão a lado nenhum, só querem é roubar o dinheiro dos outros e já não existem…
- Eh, pá, está bem, não é bom… mas também não deve ser assim tão mau…
- Se eu estivesse no teu lugar, dizia para o teu avô ir a correr ao médico.
- Achas que sim? Ele nem parece muito mal…
- … e diz-lhe para sair das correntes de ar.
- Eh pá, estou lixado! – admite Higino – Agora quem é que me vai trazer à escola e comprar-me chupas?

Não, Jeremias não é nostálgico nem sentimentalão. Procura racionalidade nos seus actos. Mais importante, procura racionalidade no comportamento do mundo.
Em 1975, o Verão foi mesmo quente. Foi mesmo longo. Foi especial. Foi um Verão onde o calor do sol se conjugou com o calor proveniente da explosão da liberdade do Abril do ano anterior. Quando o Verão anterior se despedira, nos finais de Setembro, tinha deixado pistas para o próximo Verão, antevendo que se iriam atingir temperaturas tórridas. Esses indícios confirmaram-se na Primavera e logo em Março se deu início à época balnear. As eleições de Abril agitaram os ânimos de tal forma que o Verão só findou em Novembro. Acabou no Monsanto esse Verão. E a partir daí, parece que vivíamos oscilando entre a Primavera e o Outono, desprovidos dos calores dum Verão que se quer mesmo quente. Mas devia ser a Jeremias que faltava poder de adaptação às circunstâncias. O mundo parecia viver em perfeita normalidade.
Na verdade, é essa normalidade que inquieta Jeremias. Como podem os jovens idealistas viver num mundo tão apático, e simultaneamente tão satisfeito com a sua superioridade tecnológica, como o de hoje?
Dantes, antes desse grande Verão, havia insatisfação. Havia rebeldia juvenil exposta até a um determinado limite que se julgava inultrapassável, como um muro invisível toldador de sonhos. Esse muro rebentara com a pressão dos tempos e das vontades. Jeremias lembra-se o quanto louvou, num sentido figurativo, a evolução voraz do tempo, que tudo consome, até o que sempre julgámos adquirido. E ele, como muitos dos jovens que provariam o viciante gosto da liberdade, deu asas aos excessos. Foi um espírito particular de estrela do rock n’ roll transposto para uma mole de gente considerável, generalizante. A sociedade, no seu conjunto, excedeu-se. Gritou, saltou, confraternizou, reivindicou.
Jeremias recorda-se de uma multiplicidade de questões nascidas de um momento para o outro, questões essas nunca pensadas até então. De uma incerteza diária se o seu emprego ainda estaria lá no dia seguinte. De manifestações quotidianas sobre tudo e mais alguma coisa. De imagens de televisão a preto e branco e com um cariz demasiado sério. Da palavra “revolução” pintada em cada canto e em cada boca. De ataques à bomba contra sedes de partidos clandestinos ou não, nascidos como cogumelos e sem conteúdo mas com muita vontade. Ataques que Jeremias, se
fosse necessário, não teria problemas em perpetrar, se assim o grupo a que pertencia deliberasse.
Havia algo que comandava os instintos do povo. Não sabe se seria o MFA essa sentinela, omnipresente no topo do mundo. Duvidava que fosse. O MFA apenas queria apropriar-se dos sonhos dessa gente e acicatá-los de forma a que essa população os julgasse seus líderes. Oportunistas, portanto, gozando do poder institucional que souberam catar. Contudo, deram a cara. Partilhavam as mesmas utopias. Queriam ser irmãos ou pais, mesmo que não gostássemos deles e os achássemos abusivos. Havia alguém que se queria responsabilizar por algo, havia homens a querer educar o povo com um objectivo definido, nem que os meios para alcançar o fim fossem confusos.
Outros valores se foram levantando, entretanto. A personagem do MFA saiu do topo do mundo, disponibilizando o seu lugar. Num ápice o seu filho cresceu, indiferente às lutas à sua volta, alienado pela felicidade dos anos 80. Gorbachev alastrou a sua mancha, o muro caiu, depois a própria Mãe Rússia, nos braços do capitalismo selvagem. Os anos 90 trouxeram alguma indecisão, mas o novo século arrancou com o nascimento prematuro do seu neto, filho do seu filho, por sua vez gerado no olho do furacão e crescido sob o signo da indiferença. O novo século não apresenta dúvidas para ninguém. O novo século é a glória da apatia, o apogeu da imobilidade intelectual. As massas obedecem ao status quo e, qual barquinho sem força, deixam-se arrastar pelas ondas da super-modernidade. A ameaça não é vermelha nem de outra cor qualquer: é abstracta, no limiar da cinematografia fantástica.
Jeremias ao menos anseia pelas dificuldades, pela insurreição que as vicissitudes provocam. Fiel à velha escola historicista, suporta a sua tese com o século XX: a belle-époque dos anos 20 foi fulminada pelo crash de 1929; a estética limpa dos anos 50 desbaratada pela inconsequente rebeldia hippie; a euforia yuppie dos anos 80 beliscada pelas encruzilhadas adoslescentes patentes nos anos 90; e este conformismo grassante deverá, mais tarde ou mais cedo, dar lugar a uma qualquer revolução. Jeremias adora o som desta palavra, “revolução”, fá-lo sentir heróico e com sentido nesta vida.
Ao ouvir a nova sensação musical dos jovens que serão o mundo de amanhã, Jeremias fica a pensar. Conseguiria ele ser tão positivo como o FF? Abriria mão ao saudosismo que pairava sobre si? Não sabe. Mas como ele via o reflexo fútil das novas gerações nesta letra e nesta música…

“E o meu Verão não acabou/ És o Sol que aquece o Outono que chegou/E sei que contigo eu estou bem/E quando estás comigo não há mais ninguém/ E se um dia o Sol deixar de brilhar/ Eu sei que te vou recordar/ Como o Verão que não acabou”.
Naquele Verão que já acabou há uma eternidade, era José Mário Branco e seus pares quem se ouvia, em acordes simples e mensagens politizadas. Está fora de moda. Jeremias, teme, está todo ele fora de moda.

Higino volta-se para Gustavo, no meio de uma aula. Gustavo estava a jogar sorrateiramente na sua consola portátil, não fosse a professora descobrir.
- Ó Gustavo, sabes o que é um “faxista”?
- Um quê?
- Um “faxista”. O meu avô diz que esses é que são maus… por exemplo, nem nos deixavam jogar à bola, se fosse preciso.
- Eh, pá, não… Deve ser o teu avô que está maluco. A minha avó tem um chá que cura tudo. Desde dores de burro até… até “faxista”, ou lá o que é isso.
- A sério?
- Iá, só que o teu avô tem de matar um gato para ter efeito.
- Bolas!... Como é que eu vou dizer isso ao meu avô?
- Sei lá… estou quase a derrotar o mestre japonês!
- Então mas não tinhas o jogo de futebol que a tua mãe te deu anteontem?
- Já estou farto desse… já ganho por 10-0… agora tenho o “Super Fighter XXI”. Espectáculo!
Gustavo aplica um golpe fulminante que faz a consola emitir um som vitorioso. Vitorioso e demasiado alto. A professora mandou ambos calarem-se. Gustavo, inebriado, ignorou e continuou para o próximo nível.