quinta-feira, novembro 30, 2006

Perdido na Floresta

“Isn’t it good to be lost in the woods, isn’t it bad so quiet there, in the woods?” – Syd Barrett, “Octopus”

Mapas para mim são demonstrações de resultados. Balanços. Saldos contabilísticos. Impressionantes os números dos resultados operacionais do último semestre. Gosto de me espalhar sobre as razões das dívidas de longo prazo, debitar do lado oposto ao crédito no T do relatório e contas. Trato com reverência os balancetes, venero o EBITDA quando o sinto a crescer com pujança. Não me atrapalham as siglas, sejam elas o ROA ou o IVA, nem me perco com empréstimos obrigacionistas. Procuro saber se a yield curve a curto prazo pode ser favorável. Alavanco. Acciono. Jogo com as tendências do Brent. Dou ordens de compra. Vendo a descoberto. Torno-me bilingue. Influencio índices de rentabilidade. Reinvento taxas. Oh, felicidade! O sussurro de percentagens que ecoa nos meus neurónios inflacionados pela vertigem do superávit. A cor monetária das curvas dos gráficos. A certeza tranquilizadora da fraca exposição ao risco cambial. Pesos certos em balanças afinadas como as regras da produtividade definem. Papéis verdes sobre jornais rosa. Gravatas e auriculares, portatibilidade e mobilidade.
É uma pena as coisas boas não durarem para sempre. Felizmente que a seguir ao feriado geralmente vem o trabalho.
Subsiste, porém, o senão da pausa. Inquietante é o dia fora do escritório. Seja na cidade ou no campo. Não há bússolas. Não há regras. Não há teorias infalíveis. Há bonés e sacholas. Bonés e sacholas não nos levam a lado nenhum. A selva é lá fora, no mundo real. Na floresta podia haver um javali à espreita, a colocar-nos sob alarme permanente. Mas não há nada. Os grandes não são assim tão maus nem os pequenos assim tão bons. A realidade é francamente intragável. E depois, a gente medonha que profere banalidades ultrajantes em tronos preenchidos com vácuo. Liguem-me à rede. Dêem-me a senha. Retiram-me o soro que me mantém aceso. Não há beleza num monumento grafitado, num prado verde e chilreante, num centro comercial apinhado. Há pedaços animados de carne que se movimentam sem sentido. Descubro amores loucos nos outros, olhos carregados com uma fantasia tal que me suga a noção das coisas. Perco o controlo das coisas, sinto que me espezinham a personalidade como se de nada tratasse. Isto é o nada, a vã roda-viva da vida dos estranhos à minha volta, aqueles que me rodeiam todos os dias mas nos quais nunca reparo. Não arranjo disponibilidade para sequer beber até cair. Tenho insónias a pensar no tempo que perco por não conseguir dormir. Esborracho moscas no vidro durante o fim-de-semana, descarregando a minha torpe fúria da folga naquilo que posso. Não vivo, o bicho também não viverá. Perco a fome aos Domingos. Perco a paciência. Não suporto o riso das crianças. Abomino a tosse dos velhos. Rasgo fotografias de memórias perdidas. Preservo apenas o apetite pela destruição dos que não vivem o stress. O stress não é o meu mal, é o meu sal. O condimento indispensável do refogado em que eu me tornei. Sempre a preparar qualquer coisa que me faça sentir útil para alguém acima juntar o creme por cima. O mundo não tem objectivos e eu só tenho metas. Separei-me da tal forma do comum cidadão que me metamorfoseei no seu lado obscuro. Não me interessa se estou por cima ou por baixo, eu pressinto apenas que não estou em lado algum. Dói-me sentir que os outros sentem coisas que eu não consigo sentir. É das poucas coisas que me consigo diagnosticar, esta concreta e crescente incompatibilidade com o resto. De resto, vou escavando ódios infundados em lugares recônditos da minha mente, qual passatempo diabólico, até chegar a manhã seguinte.

segunda-feira, novembro 20, 2006

O Teu Clube!

Imaginem um clube homónimo de massas alimentícias que se dizem boas. Coloquem esse clube numa ilha e, dentro dessa ilha, numa encosta nebulosa com vista para o mar imenso. Nessa encosta, aproveitem o mais curto espaço disponível para desenhar um campo de futebol, tão curto, tão curto, que só haverá espaço para uma bancada e três muros de cimento a ladear o rectângulo de jogo (pelo menos, enquanto as necessárias obras de beneficiação não terminam). Para finalizar, as pièces de résistance: uma bizarra claque histérica feminina (perdoem-me o pleonasmo) e um presidente aprendiz do inesquecível João Vale e Azevedo.
Muitos de vós (os dois ou três) que estão a ler este texto já descobriram, decerto, este enigma que nem chega a sê-lo: falamos do Clube Desportivo Nacional, Nacional da Madeira, como será melhor conhecido.
Este é um clube insular, talvez demasiado insular. Na equipa de futebol, pontificam nomes que pouco corroboram o “nacional” que, enganadoramente, ostentam no nome. Juliano Spadaccio (que ia dando na tromba a um dirigente… do seu próprio clube! – um caso actual a acompanhar), o ríspido Ávalos, o desconhecido Rafael Bracali, o durinho Cléber, Chi-Chi-Chilikov, o relógio suíço que é Diego Benaglio, o evoluído Marchant (não de arte),… enfim, um onze pouco “nacional”, mas que tem vindo a recuperar paulatinamente alguma portugalidade através de nomes como Bruno Amaro, Ricardo Pateiro, Patacas e o já saudoso Nuno Carrapato. Longe vão os tempos dum Sylvanus, Murphy, Gilmar, Leiz, William, Heitor, Dino, Serginho Baiano, nomes que tornavam o CD Nacional um dos maiores viveiros de brasileiros do nosso campeonato. Essa honra cabe hoje ao rival Marítimo, que, imitando as grandes constelações galácticas do Velho Continente, poderá muito bem entrar em campo sem um único jogador nascido no país do campeonato onde joga. Sim, a tradição já nem sequer existe para ainda poder ser o que era.
O clube é assaz pitoresco, como podemos constatar no paradoxo da nomenclatura acima exposto, encontrando ainda mais paralelismos com a América Latina.
Por exemplo, o seu actual presidente, no cargo há 12 anos. O CD Nacional sempre foi um clube relativamente estável e sem grandes disputas de poder, como atestam os apenas 14 presidentes nos 96 respeitosos anos de História (mandatos médios de quase 7 anos), mas este Presidente parece apostar em derrubar recordes de estabilidade. Para além duma modéstia fora do comum, que fez com que baptizasse o estádio (?) do seu clube com o seu próprio nome, o estilo intempestivo com que intervém publicamente é claramente decalcado dum qualquer chefe de guerrilha sul-americano (ou Alberto João Jardim, se não quisermos ir tão longe). Ele simplesmente não encontra dificuldades em absorver qualquer disputa de poder interna… se é que ela existe. Este senhor projectou com a sua vaidade pessoal, o gel no cabelo e os indissociáveis óculos escuros da moda o nome do CD Nacional até às competições europeias de futebol por duas ocasiões recentes. Presenças europeias que, contudo, não passaram de viagens pouco mais que turísticas a Espanha e à Roménia. Pessoalmente, e sempre que pode, lança a confusão como Jesus lança comida aos pobres, na Liga de Clubes ou na forma ousada de resgatar reforços que eram virtualmente de outros clubes para o seu emblema.
Este Engenheiro, apodo do qual nunca se separa, como forma de manifestar a validade das suas opiniões e actos, chegou a comparar o grandeza do seu clube a um outro clube de natureza, essa sim, nacional (e até internacional), na época passada. Deu-se mal e a partir daí retraiu-se um pouco… mas, lá no fundo, só aguarda por uma próxima oportunidade para sobressair – deixem o CD Nacional ganhar uns jogos e ele lá aparecerá, ufano de si mesmo.
Bem, se calhar o facto do presidente em exercício do clube emprestar o seu nome ao estádio (??) nem é assim algo de tão extraordinário – Avelino Ferreira Torres, no Marco de Canavezes e Vieira de Carvalho, na Maia, salvaguardando as distâncias que, presumimos, existam, abraçavam situações com muitas semelhanças. Se calhar vale mais a pena recordar o vazio directivo que assolou o CD Nacional durante 6 anos, entre 1948 e 1954 – o clube não teve presidente, segundo informações oficiais, que nem sequer confirmam a existência duma Comissão Directiva! Isto é, viveu completamente à deriva. Foram tempos difíceis? Imaginamos que sim. Mas se calhar com lideranças mais honradas do que a presente.
Não nos podemos esquecer que o CD Nacional, na sua grandeza virgiliana e homérica que o Engenheiro presidente assegura que tem, apenas ingressou nos campeonatos nacionais de futebol em 1975, isto é, lá perto das suas bodas de diamante. Portanto, o relativo sucesso é recente e até aquém do verificado pelo rival Marítimo. É um clube jovem nas caminhadas do estrelato da Primeira Liga e aberto às excentricidades características da juventude. Aqui entra a claque feminina, verdadeira particularidade alvi-negra.
Seja pelos cânticos honestos ou pelas vozes irritantemente esganiçadas atrás do banco forasteiro, estas senhoras marcam uma época nos anais das claques em Portugal e, arriscamo-nos, no mundo. As bravas mulheres adeptas do CD Nacional não regateiam esforços no gritar e no aborrecer treinadores visitantes. Coadjuvadas por outros grupos de apoio de menor singularidade, apoiam-se em versões musicais “nacionalizadas” doutras claques e na sirene de ambulância que é já um marco no apoio desportivo português, suplantando os bombos de Caxinas e o trompete do Dragão. Pontapé de canto contra o CD Nacional é garantia do som de ambulância a ecoar pelo betão que ladeia o relvado. Um bom som, refira-se, capaz de assustar qualquer maqueiro desprevenido.
Não lhes perdoamos é o desplante com que colam na parede de cimento da superior norte do estádio (???) a superior arrogância: “Nacional – o Teu Clube”. Por que raio haveria de ser? Rai’s partam as confianças!... Ainda bem que elas não vêm para o Continente, limitando os seus guinchos à exígua Choupana.

sexta-feira, novembro 17, 2006

O Racismo Intelectual

Arménio é um quadro superior da sua empresa. Aparenta 50 e muitos anos. Detém um curso, superior ou não, relevante ou não, ninguém sabe; apenas diz que tem um curso e isso é suficiente para que obedientemente lhe tratem por “doutor”, o que reforça ao escrever e falar de uma forma literária, demasiado cuidada, mesmo se está a pedir uma fotocópia de um documento sem importância. Até aqui, tudo bem. Já o facto de ser alguém socialmente inserido que não vive de biscates é bom. Nada de muito concreto podemos apontar ao Arménio por enquanto, embora quando a colega do lado chame “doutor Arménio” esteja lá no fundo a soltar um pouco as pontas da sua ironia e a levantar suspeitas sobre a inatacável idoneidade de Arménio.
De facto, Arménio tem um grave problema. Insanável, para mais considerando a sua quase 3ª idade. Arménio caíra nas garras do politicamente correcto, afundara-se nas entranhas da demagogia.
Arménio passa por pessoa que lê muito, mas não sabe ler; Arménio pensa o que outros pensam e não pensa por si; Arménio age como já alguém agiu e não é capaz de sair do carril onde se enfiou; Arménio defende o óbvio sem sequer ousar considerar que poderá existir algo não directamente visível; Arménio julga que já viu tudo e que nada lhe surpreende; Arménio acha que o futuro estará aberto apenas para si e nunca para outro alguém.
O modo de acção é simples: pega-se num tema qualquer e adiciona-se uns pozinhos de polémica. Haverá um ou mais lados em confronto. Arménio, qual máquina afinada, escolhe invariavelmente o lado do socialmente e eticamente responsável, inclina-se favoravelmente e sem hesitar para a maioria. Conservador? Nem por isso. Se a moda for progressista, ele também será. Vira-casacas? Não necessariamente. Mas já foi um fervoroso adepto do Algarve no Verão e agora acha isso ignóbil, seguindo a corrente actual. Sendo português, eis alguns exemplos concretos daquilo que Arménio é: católico, casado e pai de filhos, benfiquista, residente num grande centro urbano, mordaz com os políticos irresponsáveis que nunca nomeia e, acima de tudo, muito melhor orador do que executante. Obras feitas? Talvez o quadro espetado por cima do aparador na sua sala.
Quando sujeito a críticas, leia-se, quando beliscam aquilo que protege afincadamente de forma a preservar uma imagem de indivíduo socialmente bem inserido, Arménio enerva-se. Foge para a frente. Desvaloriza sem pudor os oponentes. Diminui-os como se tivesse uma força redutora e com isso apazigua o seu espírito rígido. Não tem uma resposta credível, não consegue ser irónico, nada. Apenas tenta destruir o foco de ameaça. Nisso, Arménio e Penicos (personagem abjectamente fascinante no prime-time da sua vida, conforme relatos dum amigo comum) são iguais: não admitem que haja linhas de pensamento divergentes das suas. As suas personalidades são o umbigo do mundo e qualquer discordância faz tremer o cerebrozinho acostumado duma forma avassaladora, como relâmpago disparado do inferno directamente ao Olimpo das suas personalidades, derrubando os místicos pedestais de superioridade mental onde se tinham auto-instalado. Mas enquanto Penicos esforçava-se por ser o mais diferente, Arménio esmerava-se por ser o mais igual. Eis como pólos opostos se tocam.
Num dos colóquios frequentados por Arménio, algo que prazenteiramente aceitava, pois colóquios e prestígio movem-se em paralelo, um jovem idealista, certamente irresponsável por não saber a quem se dirigia, expôs-lhe as suas ideias – que eram terrificamente contra o senso comum partilhado, naturalmente, por Arménio. Diga-se de passagem que as ideias nem seriam assim tão revolucionárias, mas até aí pertenciam exclusivamente a um nicho não muito querido da população, o que, igualmente de modo natural, repugnava o consensual Américo. Foi como um ataque à bomba a todo o edifício intelectualmente imaculado de Arménio. Soaram alarmes ribombantes na sua cabeça.
Os truques eram sobejamente conhecidos. Passavam por esconder a sua inexistência de argumentos e a incapacidade de lidar com diferentes opiniões. Arménio primeiro declarava-se não estar surpreendido, que já esperava aquelas reacções. E porquê? Porque o jovem interlocutor era, sem rodeios, um “rapazinho sem provas dadas” (atente-se no sufixo “–inho” – mais sarcasmo do que este não se encontrava em Arménio…), “imberbe”, “inconsciente” e que devia olhar para Arménio e aspirar, como se alguma vez fosse possível, um pouco do seu digníssimo conhecimento das causas e das coisas. A mensagem era simples: o jovem “NÃO PRESTA!”, o jovem “NÃO SABE O QUE DIZ!”, o jovem chegava a ser “OBSCENAMENTE INCULTO!”, e com isso Arménio arrumava a questão. Arménio extremava posições, dando largas ao seu racismo intelectual: eu e só o que eu penso; o resto é igual a nada. Para rematar, recomendou que o jovem lesse o autor X, que nada diz, mas que muito vende; e que visitasse o lugar Y para ter uma impressão daquilo que acabou de dizer e verificar que, “claramente”, não faz nenhum sentido – embora o lugar Y fosse um cemitério de vaidades fora do prazo, lixeira de costumes e ideais gastos de tanto uso, amplamente conhecida pelo próprio jovem, pois lá desenvolvera o seu asco e gerara anti-corpos formais com que sustentara na sua intervenção.
Na audiência gerou-se um burburinho, mas as reacções acabaram por ser de apoio a Arménio. “O Arménio é limpo e recto, confio nele”, “Pensando bem, aquilo é um puto que não sabe o que diz”, “Nunca ouvi nada tão disparatado”, “O Arménio lá sabe”. O toque final foi ouvir Arménio disparar frases feitas e expressões de repúdio banais ao som dos aplausos do público e despedir-se do jovem com o generalizante “vocês, os novos, têm muito que aprender comigo, se querem ser alguém no Mundo!”, para gáudio de um público que mergulhava na prateleira social por onde Américo se estendia. O jovem, esse, foi chutado metaforicamente para o canto donde, se fosse sábio, nunca deveria ter saído. O rótulo espetado na sua cara e a inferior catalogação imediata não lhe fizeram, porém, mudar de opinião. Ficara, talvez, um pouco espantado com a gratuitidade dos veementes protestos contra algo que julgava válido, mas, enfim, sempre podia ser líder ou parte de um subgrupo marginal condenado ao fracasso, segundo o clarividente Arménio. Resposta era algo que sabia que iria cair em saco roto, daí o seu abandono do colóquio, sob vaias solidárias com a posição de Arménio.
Arménio pulula por aí, sempre pronto a abrir a boca e repudiar tudo o que não pareça são e que não jogue exactamente como os preceitos estabelecidos ditam. Livrai-vos, pensadores alternativos, de encontrar Arménio pela frente. Ele dá cabo de qualquer esperança de discussão construtiva e declara-vos impróprios para consumo. Mas como diria a colega dele, baixinho, quando o impoluto Arménio fecha a porta do escritório e se acomoda no cadeirão junto do computador:
- O Arménio? Só gosto dele quando está calado a ler o jornal.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Quebrei Uma Corrente

Há muitas acções preponderantemente negativas. Acções que marcam um dia, uma semana, uma época, uma vida. Acontece até aos melhores. O político não será esquecido pela aquela gaffe em que exortou ao voto no rival, o guarda-redes pelo frango que eliminou a sua equipa, o namorado pelo aniversário que deixou passar. Eu próprio senti a mão pesada do destino sobre mim. É verdade. Hoje quebrei uma corrente.
Não se pense que estava aprisionado e que empreendi uma fuga heróica digna de ser registada pelos jornais sensacionalistas. Bem gostava. Mas o que fiz foi rejeitar enviar o mail que ameaçava “anos de inimizades”, “séculos de infelicidade”, “eternidades de dor” se eu não o reenviasse rapidamente a uma amálgama de personagens, desde os 5 amigos mais próximos até a 1000 pessoas aleatoriamente designadas como destinatárias. Pesa sobre mim uma consciência dorida e um ardor estranho no peito. Se este post não chegar ao seu fim, provavelmente serão efeitos deste mail enfeitiçado.
Para cúmulo, já não é a primeira vez que quebro a corrente. Pecado dos pecados, tendo facilmente a ignorar as ameaças destes mails. Julgo que fui longe demais desta vez. Apareceu-me uma tosse esquisita e estou a ficar esverdeado na pele. É só o começo, pressinto, assustado com a minha própria negligência atroz ao cabo de tantos mails do género. Chegou o tempo de pagar todas as minhas incúrias de uma vez só.
O arrependimento de nada serve. Ignorei de forma ostensiva os avisos que me foram dirigidos e agora sofrerei com as consequências. Lia-se nesse malfadado mail “SE NÃO ENVIARES ESTE MAIL A 5 PESSOAS CONHECIDAS DENTRO DE 1 HORA E A 20 PESSOAS À TUA ESCOLHA AINDA HOJE, IRÁS MORRER COM UMA DOENÇA DESCONHECIDA ALTAMENTE FATAL. POR CADA MINUTO QUE TE ATRASES UM NOVO POTENCIAL CANCRO IRÁ REBENTAR DENTRO DE TI. AO FIM DE 10 MINUTOS DE ATRASO IRÁS PERDER TODO O AMOR QUE TE É DIRIGIDO. AO FIM DE UMA HORA PERDERÁS A CAPACIDADE DE AMAR. MAS SE ENVIARES O MAIL SERÁS AMADO POR TODA A TUA VIDA E RECEBERÁS POR CORREIO REGISTADO UM DOS GATINHOS QUE VISTE NO SLIDE SHOW DENTRO DE 5 DIAS (não terás, porém, capacidade de devolução se o gato vier com defeito)”. Eu não deveria ter sido tão curioso e ter ido até ao fim, ao menos tinha retirado um prazer enorme em contemplar os gatinhos adormecidos sobre lençóis cor-de-rosa dos primeiros slides e tinha-me mantido na ignorância das punições que estavam reservadas aos incumpridores como eu. Sabem como é, a ignorância anda de mãos dadas com a felicidade.
Agora já não há nada a fazer. Sinto convulsões internas e espasmos musculares. Vómitos e diarreias enjoam-me. Desenvolvi escamas na região lombar e o meu fígado buzina que nem taxista atrás dum veículo parado em semáforo verde. Não vejo bem. Tenho a boca seca e ardente. Os meus colegas perguntam-me “Estás bem?”, mas eles sabem bem que não. Eu quebrei a corrente. “Ah, já percebi”. Um ou outro ainda dirá, lá ao fundo da sala, baixinho: “Bem feita, nunca gostei desses gajos que quebram correntes. À pala destes e-mails já salvei a vida a 15 pessoas, oferecendo o meu sangue, e descobri 3 crianças desaparecidas”. Como eu gostava de ter sido assim, dedicado e obediente, altruísta e responsável. Mas pensei apenas no meu próprio bem-estar, desprezando favores que me pediam. Se calhar, eu mereço esta desdita.
Ao menos, vá lá, acabei o post. Despeço-me como culpado, mas apresentando convenientemente o mea culpa. E se vocês me lêem, por favor não incorram no meu erro e passem esta mensagem a todas as pessoas que realmente gostam. A sério.

segunda-feira, novembro 06, 2006

O Metropolitano em Terras de Bouro

A grande novidade do momento é a chegada do Metropolitano a Terras de Bouro. Durante anos, a vila minhota ansiou pela concretização deste projecto essencial para a sua própria sobrevivência. Prometido pelos diversos executivos que ocuparam os cargos do Governo e da autarquia local ao longo dos anos, hoje foi finalmente inaugurado o primeiro troço, de Santa Eufigénia até Escroto de Boi, com a extensão de 5,5 quilómetros.
O presidente da câmara partilhou connosco a sua satisfação:
- Quero assinalar, neste dia grandioso para a nossa população, que esta obra só foi possível graças ao esforço e empenho destas gentes maravilhosas da nossa querida e estimada vila e também ao meu cunhado, que por acaso é secretário de Estado em Lisboa. A todos vós, o meu grande bem-haja.
O vereador sem pasta preferiu salientar os benefícios que resultam do Metropolitano em Terras de Bouro:
- Não podemos esquecer o enorme potencial de escoamento de estrume, animais e mesmo de alguns quilos de leguminosas que o Metropolitano possibilita. Em menos de 3 minutos, o agricultor pode levar o seu bode, ou mesmo uma saca de batatas, ou os dois, se conseguir, desde a estação de Farelos Molhados até às Picheiras. Por apenas 50 cêntimos, evita-se todo o trânsito da vila, nomeadamente as carroças e as motorizadas Famel Zundapp, poupando-se tempo e evitando confusões. É uma obra fantástica.
Pela tarifa única de 50 cêntimos, o Metropolitano estará acessível a pessoas, animais e cargas que não excedam os 200 quilos. Mesmo qualquer terrorista perdido que queira gasear as instalações do Metropolitano será bem-vindo, se conseguir atrair as atenções e turismo para a vila. Desta forma, Terras de Bouro passa a ser a vila com o sistema de transportes mais liberal de todo o noroeste de Portugal. Apenas serão penalizados, com uma coima que pode ir até aos 50 euros, os arrotos injustificados durante a viagem, segundo o regulamento. Quisemos saber porquê.
- Ah, não ligue a isso, tínhamos que proibir qualquer coisa de modo a que não pensem que isto é a bandalheira total. A história dos arrotos foi o Zé do Chiqueiro que propôs, achámos graça e ficou. Não se preocupe, se o bafo cheirar a álcool está justificado o arroto. Como vê, é mais uma formalidade do que outra coisa.
A generalidade da população aprova o empreendimento ora estreado.
- Isto é uma grande alegria. Estivemos muito mal, o campo não nos tem dado nada com a falta de chuva e o empobrecimento dos campos, mas agora o Metropolitano veio salvar-nos, graças a Deus. Sabe Deus quanto eu rezei para que houvesse alguma coisa que fizesse crescer as couves lombardas e as batatinhas… e agora foi de vez! Foi o melhor que podia ter acontecido.
Nós questionámos se esta pessoa estava ciente do que seria mesmo o Metropolitano.
- Vocês vêm lá de Lisboa e pensam que sabem tudo e que os outros são parvos, mas a mim não me chamam parvo! Ora essa, é preciso ter descaramento para perguntar uma coisa dessas! Eu, que estudei na Suiça, sou ávido leitor de Kant, Sartre e Popper, aprecio as árias de Verdi e Bach, consumo arte de Monet e Matisse e cavo alfaces e cenouras de Segunda a Sábado, a ser confrontado com esta ignomínia!... Não, por acaso não sei bem, mas acho que é um regador gigante com rodas, que apita e deita adubo.
Com 12 paragens previstas inicialmente, o traçado não reúne o consenso. Se há alguns que vêem com bons olhos as oportunidades que renascem com o Metropolitano…
- Ah, é muito bom!... Há quase 3 anos que deixei de sair de casa para cultivar o campo e só ia à taberna por causa da falta do Metropolitano… Foram tempos duros, só vivendo com a reforma de 3000 e poucos euros do exército e espancando a esposa para ver se o tempo passava melhor… mas agora que abriu a estação da Mosca Chata mesmo à frente da minha casa, já posso espancar a minha mulher na praça de Terras de Bouro.
…outros lamentam a opção de terminar a linha em Escroto de Boi, deixando as pessoas mais a leste, como é exemplo o lugar de Milheiral-o-Novo, fora do caminho do progresso.
- É sempre a mesma coisa! Uns são filhos e outros são enteados! Eu por acaso sou órfão, mas não há direito do Milheiral-o-Novo ficar de fora se o Escroto de Boi tem Metro! O Manel Diospiro, que eu conheço bem, mora no Escroto de Boi e pode levar os seus garrafões à vontade porque tem o metro a 50 metros do quintal e eu tenho de andar, no mínimo, 200 metros, isto se alguma das minhas cabras não se perder pelo caminho. Isto só é possível num país onde domina o compadrio e o favorecimento de alguns indivíduos! Eu paguei 1000 euros ao engenheiro e o Manel Diospiro pagou 500 euros e 10 garrafões de aguardente reles e ele é que fica com a estação! A porcaria é a mesma de sempre!
A opção de fazer o interface na estação de Santo Ambrósio ao invés da mui concorrida estação de Centro de Terras de Bouro É Mesmo Aqui Não Ande Mais É Aqui Que Você Deve Sair também não escapou às críticas.
- Essa é outra. Quer dizer, eu, que vou todas as noites das Picheiras até à Vacaria Grossa para ver as meninas, tenho de ir no ramal 1 até ao Escroto de Boi e depois voltar para trás no ramal 2 até Santo Ambrósio, demorando quase 20 minutos, quando se houvesse logo correspondência em Centro de Terras de Bouro É Mesmo Aqui Não Ande Mais É Aqui Que Você Deve Sair demorava apenas 15! E se fosse a pé demorava só 10 minutos! Com a minha idade, gasto muita energia nestes transbordos e depois não sobra nada para as meninas! Estes doutores andam a brincar com o povo… mas pronto, isto com o tempo vai lá.
A empresa pública responsável pela exploração, a METERRA, fez saber, pela voz do ministro da tutela, que o objectivo é fazer do Metropolitano de Terras de Bouro a maior amálgama ferroviária urbano-rural-humano-animal-mercantil-civil do norte português, “depois do híbrido eléctrico-comboio-metro do Porto, que ainda me faz corar de vergonha”. Sublinhou a importância da obra e desvalorizou o repúdio da oposição, que apontou irregularidades no processo e acusou o executivo de despesismo fútil. “Tudo atoardas de pessoas sem formação”, reagiu o ministro enquanto cuspia no chão.
Ambicioso, o ministro revelou ainda que está satisfeitíssimo por ter sido um “sucesso a todos os níveis” este projecto de transporte simultâneo e subterrâneo de pessoas, cargas e animais, registando com agrado o facto da sujidade dos porcos sair com facilidade dos bancos, graças a um material especial concebido pela Universidade de Aveiro. Como nota final, o ministro formulou os desejos para que, em 2020, “este seja o transporte preferencial das pessoas a norte do Tejo, com cerca de 40 milhões de pessoas e cabeças de gado de tráfego por ano e 200.000 postos de trabalho gerados directa, indirecta e artificialmente”. Oficiosamente, contudo, sabe-se que o crescimento será lento e que em 2020 a linha deverá apenas crescer até ao quintal da Sra. Arminda, no Bocafastal, ficando a ligação Lisboa – Terras de Bouro concluída, segundo a opinião especializada de alguns engenheiros optimistas e de outros alcoolizados, por volta do ano 2500, se entretanto Portugal ainda existir.