segunda-feira, junho 30, 2008

O Pato Donald Contra O Mundo

- … e é por isso que pareço humano. Garanto que nunca experimentei qualquer droga.
- Sr. Pato Donald, apesar de todo o enquadramento surrealista desta audiência, permita-me continuar a questioná-lo. Que idade o sr. pato tem hoje?
- Já disse que tenho uns 30 e tais.
- E que idade tinha há 20 anos?
- Os mesmos 30 e tal anos.
- É curioso, não é? Em 20 anos, o Sr. Pato Donald não mudou nada.
- É claro que não, advogado pateta! Sou uma porcaria de personagem de banda-desenhada! Não envelheço, pôrra! É assim tão difícil de perceber?
- Objecção, sr. Juiz. O réu utilizou linguagem brejeira passível de alienar a audiência e não respondeu directamente à pergunta que lhe foi dirigida.
- Deferido.
- QUAC!
- Sr. Pato Donald, a D. Margarida queixou-se de algum distanciamento seu, diz que já não a ama como a amou nos anos quarenta, queixa-se da sua constante azelhice, afirma-se indignada pelo facto de nunca terem casado nem sequer terem consubstanciado nenhum acto sexual…
- Não sou a pôrra dum mamífero! Eu não f**o à missionário, caramba! Sou a porcaria de um pato antropomórfico, só isso! Por isso ando sempre nu da cintura para baixo e sem qualquer tipo de pudor! A Margarida… que se f**a! A tipa andava a ver se me metia os cornos com aquele palerma do Gastão para que eu reagisse intempestivamente e perdesse a cabeça para a levar a todo o tipo de eventos sociais para se pavonear… Pôrra!, muito ela já levou de mim! Eu sei que ela era o estereótipo de mulher feminista fútil, era um papel ingrato… mas caguei! Já estou noutra! Não estou para aturar mais sermões da parte dela! A minha relação com ela é estritamente profissional. Entro nos mesmos desenhos e ponto final. Fora dos lápis e canetas, sou eu num lado e ela noutro. Ela que se queixe do que quiser!
- Também os seus sobrinhos não têm uma opinião positiva a seu respeito, sr. Pato Donald…
- QUAC! O que é que os putos disseram?
- Disseram que é francamente possível o Sr. Pato Donald ser, no mínimo, co-responsável pelos actos de que é acusado…
- É sempre a mesma mer**! Eu é que represento a sociedade! Especialmente, os podres da sociedade! Nós, as personagens, temos sempre as costas largas! Somos sempre o bode expiatório! Eu, que sou um pato impoluto e que aturei esses três putos durante séculos… sem que os putos fossem meus! Isto é que é reconhecimento, hã?
- Eles salvaram-no muitas vezes em aventuras que estão bem documentadas…
- Pois, eles é que ficavam bem na foto! Era tudo “show-off”, os argumentistas é que eram parciais com eles, que eram novos e tal! Mas ainda não tinham aprendido a nadar e já andavam a fumar às escondidas! O Zé Carioca que conte o que eles fizeram uma vez numa festa privada lá no Rio de Janeiro! Ele que conte mais sobre essa “juventude iluminada”!
- Isso está a ser julgado num processo autónomo, Sr. Pato Donald.
- Para eles é só regalias, para mim nada! Mas eu digo: aquilo dos escuteiros-mirins era só paneleiragem, vão por mim.
- Objecção, sr. Juiz. Não aceitamos esse tipo de linguagem para descrever as sãs actividades do escutismo.
- Deferido.
- QUAC!
- E por último, sr. Pato Donald, a sua principal testemunha de defesa, o seu Tio Patinhas, ao invés de ser uma figura abonatória, atestou a sua deficiente condição mental e a sua propensão para actos tresloucados e acessos de fúria… sublinhando, e passo a citar, “o Donald não joga com o baralho todo” e “prefiro gastar um cêntimo com o Patacôncio a ter de passar um minuto fechado com o Donald num quarto escuro”. Que comentários lhe merecem estas observações?
- Ele foi comprado para dizer isso, só pode… investiguem se há algum pagamento para alguma das off-shores dele… Eu, que fiz tudo por ele, excepto favores sexuais, mereço isso? Fui inclusivamente violado por 6 dos Irmãos Metralha, incluindo o Avô, por defender a sua merdosa Caixa-Forte para quê, afinal? Esse velho raquítico abusou de mim descaradamente e eu é que venho a tribunal… Que se f**a o cota e a fortuna dele, o meu orgulho tem limites! É tudo falso! O maluco é ele! Escondam-lhe a moedinha nº1 e vão vê-lo a subir paredes! Se não fosse pelo seu dinheiro, já há muito que lhe tinham limpado o sebo num lar qualquer para animais abandonados…
- Quer dizer algo antes de lermos a sentença, sr. Pato Donald?
- Sim. Peninha! Peninha, ouve-me! Tens de me defender! Eu sou o teu grande amigo, lembra-te de mim! Acode-me! Diz-lhes que eu sou inocente!
- Eh pá, ó Donald… És um gajo porreiro, mas a verdade dos factos é bué difícil de saber… prefiro que arranjemos já um culpado qualquer que vista a pele do sistema e que nos tranquilize a todos.
- QUAC! Pulha! Medíocre! É tudo a mesma mer**! Hás-de cá vir, atrasado mental! Dou-te cabo desse cabelo hippie à chapada, vais ver! QUAC! QUAC!
- Ordem! Ordem! Na qualidade de juiz deste tribunal, dou como provada a culpa do réu Pato Donald no processo “Pato Donald Contra O Mundo” e as acusações de que o réu Pato Donald é o principal culpado pela crise económica mundial, bem como pelas situações de guerra do mundo, a escalada das tensões étnicas um pouco por todo o lado, a fome, 50% das doenças infecto-contagiosas contemporâneas e pelo Benfica não ser campeão sem as ajudas dos árbitros há mais de 15 anos. Condeno-o a 2 dias de trabalho forçado e depois pode ir para casa em prisão domiciliária. O reú pode recorrer, se quiser perder tempo – deste carimbo de mau da fita já nunca mais se vai livrar. E nós podemos todos ir para casa mais descansados, que já designámos um responsável por todo o mau estar que nos apoquenta. Fim de sessão.
- QUAC!

sábado, junho 28, 2008

A Brigada Canibal

Acabou-se o problema do sobrepovoamento das prisões. Chegou a nova elite policial, a brigada canibal.
Como o nome indica, estes agentes dedicam-se a apreciar a suculenta carne humana, em valentes dentadas nos facínoras por eles capturados. Os efeitos nos corpos dos delinquentes estão à vista de todos os que passam pelo Aleixo, Intendente ou Bela Vista.
O ex-proprietário da discoteca “Lambapiço”, um travesti com antecedentes criminais, que traficou borrachas verdes da Pelikan recheadas de cocaína e liderou de um pequeno grupo que praticava carjacking nas boxes das competições de karts, veio a terreiro acusar os meios alegadamente nada suaves infligidos pela insaciável brigada. É vítima típica da nova forma de exercer a autoridade.
“Roeram-me a perna!”, exclama num pranto compreensível; afinal, tinha-lhe sido arrancada uma fatia substancial do seu presunto sem recurso a qualquer anestesia. “Bandidos! Não há direito! Ahhhhhhh!!!!”, aflige-se o pobre travesti, agora que o sangue perdido começa a provocar-lhe tonturas e uma sensação levemente agoniante revolve-lhe o estômago quando parece ver a sua própria tíbia a sorrir-lhe à luz do dia, despida da sua cobertura de tendões e gordura dolorosamente arrebatada pela polícia canibal. Desespera por um analgésico, mas o máximo que os populares que o circundam possuem é um laxante e um rebuçado Floco de Neve. A intervenção das forças da ordem fora relampejante e apanhara de surpresa todo o bairro, entretido que este estava a incendiar contentores do lixo na via pública e a disparar inocentes tiros para o ar. A carrinha parou a escassos metros do grupo onde se encontrava o travesti e logo os membros da brigada, fulminantes, irromperam da carrinha. Consta que houve um agente corpulento que se atirou com um instinto assaz leonino à perna do incauto travesti e fincou-lhe os magníficos caninos na sua carne apimentada pelos altos e baixos de uma vida de desventuras. Qual tigre, paralisou a vítima e puxou o naco da perna do travesti, que, impotente, arregalou os olhos com choque e a extrema aflição da situação. Então, a polícia, gregária, reuniu-se e banqueteou-se com a caçada, satisfeita por ter castigado um delinquente. Também ficaram visivelmente agradados com a qualidade da carne, algures entre a qualidade da carne de avestruz e a de javali, mas mais doce. O agente Carrasqueira jurou mesmo que sentira um ligeiro travo a tomilho. Chuparam os dedos para bem aproveitar todo o resquício do sangue do marginal e sorriram, levando as suas demoníacas gulas aos píncaros do prazer. O travesti, ainda à espera das ligaduras, acusou a prática de “brutal. Isto não se faz nem a quem viola criancinhas de 5 anos”.
O comandante da divisão canibal, o tenente-coronel Salgado, fora consultor gastronómico do Burger King, mas aos 25 anos constatou que faltava algo na sua vida. E então converteu-se à antropofagia. Mas mesmo assim, Salgado sentia um vazio qualquer que urgia preencher. Inscreveu-se na polícia e logo se destacou quando mordeu o primeiro-ministro sueco no ombro aquando da sua recepção oficial. Refeito das críticas, deu o salto definitivo quando, sozinho, dominou à dentada um par de assaltantes de um banco na Baixa da Banheira. Ficou famosa a sua imagem a molhar o mindinho de um dos meliantes numa taça de mostarda. Agora, no conforto do seu gabinete, ladeado de arcas frigoríficas que conservam pedaços humanos de foras-da-lei ilustres, como os túbaros do um ex-membro da Gestapo e os tornozelos de um árabe terrorista, discorre com simpatia sobre os feitos da sua brigada. “Somos sensíveis, como qualquer pessoa. Mas gostamos de comer tripas de pessoas de meia-idade”. Não seria esta uma prática no mínimo pouco civilizada? “Não. Isso era dantes. Agora comemos tudo com sal e levamos sempre os babetes. Ninguém se suja”. Pouco dado a discutir os pontos eventualmente mais polémicos, “isso são insinuações de gente ignorante e insonsa”, o tenente-coronel prefere enaltecer os grandes méritos da sua tropa: “diminuímos em grande número as prisões domiciliárias e o grau de ocupação das penitenciárias decresceu drasticamente – lembro-me que fomos convidados para um mega festim em Alcoentre aqui há uns meses e demos cabo das alas A e B numa só noite. Enfardámos… como verdadeiros canibais! Até as cabeças chupámos! Houve uns quantos oficiais que esgotaram o stock de Água das Pedras, tal a congestão!”, lembra-nos, orgulhoso. E como é comer um vadio? “Geralmente, não como a cabeça, tem pouco conteúdo. Prefiro as miudezas e talvez uma costeletazita. Temos já um certo nível de requinte culinário. Aprecio mais os pretos, são mais selvagens e têm um sabor mais exótico. Mas o que dá mesmo gozo são os criminosos de colarinho branco. Têm mais gordura. O advogado Peres de Azevedo, aquele gatuno, era bem tenrinho. De uma vez comemos-lhe uma parte do pescoço, mas à segunda vez o roubo dele foi maior e comemos-lhe as pernas. Fizemos um grelhado maravilhoso mesmo lá na Ordem dos Advogados, espectacular, tudo pacífico, tudo perfeitamente controlado. Pelos vistos nunca mais roubou nada. O que é pena, porque acho que os braços dele também são deveras apetitosos”.
Ou seja, toda a gente parece estar satisfeita. A polícia, porque o crime não pára e motivos para uma boa refeição nunca faltaram. Os agentes estão felizes e convivem muito mais, agora que já é permitido assar um burlão no espeto. Os cidadãos sentem-se mais seguros ao ver os ladrões mutilados, coxeando ou arrastando-se pelas ruas da cidade em cadeira de rodas, desmembrados e decepados, cicatrizados e permanentemente inválidos em filas de espera dos centros de saúde ou à porta de farmácias. E os próprios ladrões, lá no fundo, sentem-se apreciados e desejados, algo que faz maravilhas à sua auto-estima. “Eu já pensei cá para mim: Nelito, tu podes tentar violar a amiga da tua filha que tudo te vai correr bem. Se conseguires e não fores apanhado, voltas a violá-la; se fores apanhado, a brigada canibal dará certamente um bom uso às tuas virilhas. Não tenho nada a perder”, declarou Cornélio Araújo, um perigoso assediador já maneta, cuja carne, garante o tenente-coronel Salgado, “promete fazer crescer água na boca de toda a esquadra. Já o imagino assado no forno com um raminho de salsa”.