domingo, fevereiro 24, 2008

Cedo Para A Cama

Cedo para a cama, o leitinho morno da praxe, aquele teu olhar melancólico debaixo dos lençóis, sem nenhum toque de sal, sem nenhum resquício de gás, o amor eclipsou-se por detrás das complicadas agendas que sobrecarregaram os nossos olhos. Pensamos em sorver as coisas boas da vida exercitando as rígidas regras das cartilhas que emergem como cogumelos na matéria dos dias, pensamos bem, pensamos demais, mudamos então de ideias e ficamos na mesma, sempre iguais, inamovíveis com o peso da ruptura que nos intimida, lamentando o sol ir-se tão de repente. Não damos por nada nesta cama de sonhos perdidos, a insónia é uma causa ou uma consequência que aceitamos sem questionar, a privação do sono é uma ameaça que levamos muito a sério. Dormir juntos é o melhor que parecemos conseguir fazer em conjunto, é apenas deixarmo-nos ir, ninguém se chateia. Perdemos algo que não sabemos ao certo o que é, mas as nossas peles com certeza que já não vão dispensando as loções revigorantes. Já não conseguimos achar graça aos mochos e corujas, vamos compreendendo os vaidosos galos matutinos, vamo-nos resignando à voragem do cansaço, vamo-nos lembrar de velhas repetições, velhas memórias que afinal agora são de outros. E é ver-nos assim, esquecidos, apoiados em almofadas que já não têm forma, fazendo as coisas certas não porque nos saiba bem, mas sim porque já não arranjamos outra solução. A apatia dos dias avançou sobre o nosso quarto como uma névoa invencível, a rotina galgou inexorável sobre as mantas e agora submetemo-nos ao relógio universal com uma servidão digna, mas completamente infrutífera. A noite já não nos chama, a lua tem outras companhias para explorar, as sombras que antes nos lançavam desafios pertinentes hoje já não encerram grandes mistérios. Vejo a tua cara e ela já não ferve de amor, apenas pede clemência para que não a abandone. Cedo para a cama, chinelos ao lado, é assim, dizemos mudos um para o outro, é assim que deve ser.

domingo, fevereiro 17, 2008

La Tristesse Durera

Não é preciso pensar muito para dizer o que está mal nesta fotografia. É verdade, Paulo Bento está a sorrir. Ou melhor, estava. A imagem é de 2002, tirada um pouco antes da realização do ignominioso Mundial da Coreia/ Japão, um pouco antes dos sorrisos terem amarelecido ou até desaparecido por completo, mas já depois dos mimos do mesmo Paulo Bento ao árbitro Gunter Benko. Enfim, Paulo Bento ainda sorria.
Hoje em dia, pode ser discutido (até à exaustão, à falta de melhor assunto) o seu corte do cabelo, a sua dicção, a sua histórica auto-proclamada tranquilidade, os seus lábios semi-jaggerianos, a sua postura no banco, a bufaria que existe ou não, a sua quota-parte de responsabilidade de tudo o que corre mal no Sporting, mas poucos poderão discutir que Paulo Bento não sorri. Ponto. É tabu.
Desconheço se existe alguma cláusula contratual que impeça o sorriso. O certo é que o exclusivo não é de Paulo Bento. Os treinadores dos maiores não sorriem. Ver um treinador português de uma equipa denominada grande a sorrir no banco ou numa conferência de imprensa é quase tão difícil como arrancar um sorriso ao implacável John Rambo. Bem, Mourinho ainda exultou freneticamente em Sevilha, saltou e gritou com a Taça UEFA na mão. Mas um ano depois, em Gelsenkirchen, Mourinho estabeleceu um novo paradigma, um modo de estar de tal forma marcante que seria religiosamente seguido por qualquer treinador: exibir um ar deveras blasé, de aborrecimento e enfado imperturbáveis, especialmente nas horas boas. Afinal, ele é O Especial, quem fura protocolos tácitos e o verdadeiro precursor de tendências estético-estilísticas. E quem não for sistematicamente circunspecto não chega ao topo – isto é para vocês, Manuel Cajuda e Jorge Jesus, que já foram vistos em celebrações exuberantes quando as vossas equipas marcaram golos decisivos.
Camacho não ri, rosna desculpas em espanholês e encolhe os ombros. Jesualdo, a custo, lá esticou os lábios enferrujados pelas agruras da vida na sua primeira vitória no campeonato e envergonhou-se pelo sucedido. “Eh pá, descuidei-me, se tivesse visto o fotógrafo tinha pensado em coisas tristes”, pareceu dizer para si quando se viu nos jornais, quase, quase a mostrar os dentes lavadinhos e brilhantes. É que isso colocou em sério risco a sua posição de eterno carrancudo, função que Jesualdo aprimora com níveis bastante satisfatórios, cavando sulcos estratégicos na testa para ajudar à sua expressão de duro inamovível. E Paulo Bento, jovem treinador, já entrou nesse comboio de tristeza, a gravata já lhe aperta como apertava ao eterno portador de semblante desolado que era (e deve continuar a ser) Fernando Santos.
Ainda não terá vivido demasiado tempo no banco, mas o suficiente para carregar aquela expressão de perene frieza emocional. Qual a profundidade melancólica dos pensamentos que estes treinadores utilizam para evitar um esgar de contentamento? Serão eles pessoas mesmo tristes? Será que a felicidade do futebol se esgota no final da carreira de jogador e a partir daí é um suplício constante se se opta por prosseguir enquanto treinador? Será a proximidade do abúlico Pedro Barbosa? Não conheço a resposta. A imposição de autoridade por via de um aspecto permanentemente severo parece ser uma boa desculpa. Mas lá que a fotografia já não parece do mesmo Paulo Bento, lá isso não.

Ainda nos meandros da completa negação de felicidade, os Radiohead editaram mais um álbum que, sabia-se mesmo antes de ser editado/ largado pela Internet, é um êxito crítico assinalável. Thom Yorke já não sabe o que é o prazer, só a dor. E a dor dele é abençoada, um autêntico colírio para a alma dos críticos que, com instintos que chegam a ser sádicos, se deliciam automaticamente com qualquer gemido por ele emitido. Se há coisas inegáveis no panorama musical é que os Bush nunca fizeram nada de jeito e os Radiohead estão sempre a tocar na perfeição em cada uma das suas acções. Depois, se os sons que acompanham a dolência de Yorke forem o mais intrincadamente rebuscados possível, tanto melhor: é obra-prima atrás de obra-prima. E eles vão prosseguindo com a sua cavalgada a que chamam, à falta de melhor, “alt-rock”. Mesmo que as guitarras distorcidas características do rock não morem por lá.
Haja paciência para tanta adulação pré-concebida: haverá dezenas de bandas que valerá a pena ouvir antes dos Radiohead, isto se não estivermos a equacionar o suicídio enfiados dentro dum exíguo quarto pintado de negro na cave duma estação de metro desactivada. Desde “OK Computer”, alvo de uma aclamação crítica desmesurada, que os Radiohead parecem mais do que aquilo que realmente são. “Amnesiac” extremou as extravagâncias indulgentes de “Kid A” de tal forma que nem me apeteceu ouvir “Hail To The Thief”, porque não estava para me entristecer ainda mais com dores que não são minhas e com sons que não são nem carne nem peixe, estavam para ali entre a electrónica e outra coisa qualquer. Se calhar fiz mal, mas pela amostra de “In Rainbows” nem por isso. Ouvi o álbum duas vezes seguidas e existem dois ou três bons momentos. Esta é a melhor banda do mundo? Pois sim, os doutos críticos é que sabem, eu sou apenas um ignorante.
Porque é que a sisudez deles é tão melhor que a dos outros? Quem me dera fazer da minha tristeza um estilo de vida e ser feliz por isso… Ele há ironias que até têm a sua graça.

sábado, fevereiro 09, 2008

Humano Transgénico num Cocktail Beneficiente

Eu estava com um excelente aspecto. Perguntaram-me se não tinha feito uma plástica.
É óbvio que me ri.
E depois caiu-me um dente.
"É preciso ter lata!...", gracejei.
Especialmente nas articulações. A partir dos vinte e dois anos já custa mexer os ossos. É a lei da vida. Mas a lei é omissa quanto a uns ajustamentos aqui e ali.
O certo é que não devia ter snifado tanto pó de cloro que julgava ser cocaína. Devia ter ficado pelo leitinho morno da vaca.
Da vaca da minha mãe.
Hoje estaria um brinco, com todo aquele cálcio enriquecido pelo fumo do tabaco do bordel. Na verdade, se não fossem os brincos servirem de ímanes, as minhas orelhas já teriam caído e com elas o meu cabelo.
Ah, o cabelo. De todos os tapetes persas que vi, não gostei de nenhum. Nem de tapetes, nem de tigres a roçar a extinção. Perguntei então ao coveiro que me enchia o copo de bom gin: “Então e essa velha sueca, ainda precisa do seu escalpe?”, “De todo, ela já é um cadáver”, “Então embrulhe-a aí junto dos meus écharpes e passe por casa mais logo”.
Provavelmente acabei por fazer amor com o coveiro. Ou com a defunta. Estava muito calor e eu já acelerava em elevada progressão etílica. E ambos deviam cheirar muito mal, embora só um estivesse perfeitamente decomposto. Mas o frémito do meu amor é forte e é cada vez mais difícil detectar as diferenças neste mundo louco.
Eu distribuo amor a toda a hora, sou eu e o Lenny Kravitz, mas enquanto ele ainda arranha as guitas, a mim são as guitas que me mantêm de pé. E de vez em quando lá desafino.
E é por isso que precisava de ter mais lata do que essa gente inconveniente, para lhes responder à maneira.
Voltei-me a rir, sem querer, mas achei hilariante aquele penetra ter sido espancado. E perdi definitivamente a vista. Deve ter caído no teu batido de morango, o que é uma sorte. Se fosse um batido de banana a ramela poderia reagir e provocar-te azia.