sexta-feira, dezembro 28, 2007

A Minha Irmã

Lembras-te da minha irmã? De quantos erros ela cometia com aqueles olhos que nunca piscavam? Não conseguia perceber. Eu juro que ela era capaz de ler a tua mente, a tua vida, as profundezas da tua alma com um rápido olhar. Talvez ela estivesse a revelar-se a ela mesma, dizendo

“Aqui estou eu, isto sou eu
Eu sou tua e tudo sobre mim, tudo o que vês…
Se pelo menos olhasses suficientemente bem…”

Eu nunca consegui.
A nossa vida era uma luta de almofadas. Ficávamos ali em cima da colcha, as nossas mãos cerradas e prontas. Ela com os seus dentes de leite, demasiado avançados para a idade, e com um canivete na mão. Ela dilacerou os pneus da minha bicicleta e eu não consegui perdoá-la.

Ela cegou com cinco anos. Íamos para junto da janela e ela fazia-me contar-lhe o que eu via. Eu descrevia-lhe as casas em frente, o pequeno pedaço de relva junto ao passeio, o portão com as suas dobradiças podres, para sempre aberto de par em par, o tal que o pai iria sempre consertar. Ela ficava ali quieta por um momento. Eu pensava que ela estava a tentar criar as imagens na sua cabeça. E então ela dizia:

“Eu consigo ver pequenas estrelas a brilhar,
como se fossem luzes de árvores de Natal em janelas distantes.
Anéis de pedras com cores berrantes
a flutuar em torno de planetas laranjas e amarelados.
Eu consigo ver enormes peixes às riscas como os tigres,
perseguindo pequenos pontos azuis e amarelos,
todas as caudas e barbatanas e borbulhas.”

Eu olhava para a casa cinzenta em frente e corria o cortinado.

Ela pegou fogo à casa quando tinha dez anos. Eu estava a acampar com os escuteiros. O bombeiro disse que ela tinha estado a fumar na cama – a velha história, pensei. O gato e a nossa mãe morreram nas chamas, então o pai levou-nos para ficar com a nossa tia no campo. Ele regressou a Lisboa para nos encontrar uma nova casa. Nunca mais o vimos.

No seu décimo terceiro aniversário, ela caiu dentro do poço do jardim da nossa tia e partiu a cabeça. Ela tinha estado a beber forte e feio. Enquanto recuperava, a sua visão reapareceu; “um acaso da natureza”, todos disseram. Foi quando ela disse que nunca iria piscar os olhos novamente. Eu dir-lhe-ia, quando ela se atirava sobre mim com os seus olhos arregalados e humedecidos, que eles lembravam-me o poço em que ela tinha caído. Ela gostava de ouvir isto, fazia-lhe rir.

Ela foi viver com um professor de ginástica aos quinze anos, todo ele músculos. Ele perdeu o seu emprego quando tudo foi descoberto e não conseguiu arranjar outro. Não naquele de tipo de cidade pequena. Toda a gente conhecia as vidas uns dos outros. Apesar de tudo, a minha irmã andava sempre de cabeça erguida. Ela dizia estar apaixonada. Eles estiveram juntos durante cinco anos até que um dia ele perdeu a paciência. Ele deu-lhe com um haltere na parte de trás do seu pescoço. Ela perdeu a sensibilidade na parte direita do seu corpo. Ele apanhou uma condenação de três anos e saiu ao cabo de quinze meses. Nós vimo-lo passado pouco tempo, estava a treinar uma equipa de futebol amadora na região litoral alentejana. Eu julgo que ele não a reconheceu. A minha irmã tinha engordado bastante por estar sentada todo o tempo. Ela fazia-me espetar alfinetes e apagar cigarros na sua mão direita. Ela ria-se como uma doida porque não a aleijava. A sua mão esquerda estava bastante boa, porém. Nós brincávamos ao braço-de-ferro, eu tinha que usar as duas mãos e mesmo assim ela ganhava.

Enterrámo-la quando ela tinha trinta e dois anos. Eu e a minha tia, o padre e o homem que cavou o buraco. Ela disse que não queria ser cremada e que queria um caixão barato para que os vermes pudessem entrar rapidamente nela. Ela disse que gostava dessa ideia, embora eu pensasse que era tudo devido ao que acontecera ao gato e à nossa mãe.
(Tradução apressada de "My Sister", dos Tindersticks)

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Impugnação, Já

Já sou suficientemente crescido para acreditar que o Pai Natal existe. Até existem vários, por sinal. Eu vi-os. E tenho imagens muito claras deles. Sejam eles ex-toxicodependentes em recuperação ou não, lá os vemos a fumarem o seu cigarrinho no final de mais um penoso turno numa grande superfície comercial, calças vermelhas aquecidas pelos rabinhos dos meninos e das meninas que pensam estar perante um número de circo em que vão aparecer os cãezinhos do Sporting e do Benfica a marcar golos com o focinho para o invariável empate, mas não. Não aparecem cães. Aparece outro Pai Natal que apressadamente cospe ho-ho-ho’s. Então deve haver prendas. Coisas giras, consolas portáteis ou qualquer outro artigo altamente tecnológico, nada de roupa, nada de beijinhos, nada de muito corporal, que a era que vivemos quer-se o mais impessoal e transmissível possível e está muito propícia a gerar rumores pedófilos. Também não. Este gajo só dá colo, um assento básico e improvisado, afinal não oferece nada que se possa exibir com jactância aos amigos, nada que eles possam realmente invejar. E o tipo nem sequer é muito velho, cheira a tabaco e engordou de propósito para a quadra. Tem barba postiça. Os pais, ainda com a cabeça à roda pelas prendas que sabem que terão de comprar às crianças sedentas por bens materiais e que bem se borrifam para as piroseiras que entram por um ouvido e saem por outro, babam-se e pensam estar a fazer um enorme favor. Aproveitam para distrair temporariamente os petizes mas estes não se deixarão enganar, embora se vão sentando no colo do Pai Natal para não embirrar e não deitar toda a lista de desejos a perder.
E é isto. Esta época significa o sacrifício de todos em prol do sentimento de alívio das partes, uma depuração da alma calendarizada, cujas raízes pagãs e religiosas se fundiram numa amálgama publicitária e para justificar o 14º mês.
Enfim, haja o 14º mês. O Pai Natal, esse mítico conceito coca-colesco que outrora descia pela chaminé, existe. Como podemos refutar este facto?, ele acicata-nos por onde quer que vamos nestes loucos dias de Dezembro, faz-me gastar estas linhas de texto, alimenta a paranóia colectiva à qual me sinto impotente para resistir, multiplicou-se como se fosse coelho e ascendeu ao trono da omnipresença, mas quanto mais físico (a)parece, mais fictício se torna. O Natal, todo ele, das luzinhas na avenida ao pinheiro de plástico, é postiço como a barba do Pai Natal. Não é porque nos apetece, é por tem que ser. Força-se a espontaneidade dos actos. Espiritualmente decadente, esta época da (risos) paz e do (mais risos) amor.
Eu não odeio o Pai Natal. Nenhum deles. De Janeiro a meados de Novembro estão escondidos sabe-se lá onde, não interessa. Eu também não odeio o Natal em si. Afinal de contas, é um feriado. Ninguém enjeita um feriadozito. Mas deixo à consideração de quem quiser pensar no assunto, agora que se sente bem funda a dor de ter que comprar uma recordação ao parente que já tem tudo aquilo que (não) precisa e ao qual somos incapazes de negar o ensejo de mais um objecto (in)utilíssimo, agora que damos beijinhos aos cães vadios para depois os chutarmos no rabo e os deixarmos morrer à fome no nosso tapete de entrada mal passe o Ano Novo, agora que vemos o filme Música no Coração sem vontade de assassinar a sangue frio a família Von Trapp com o método mais arcaico e anti-ASAEsco imaginável, agora que calcorreamos pastelarias abarrotadas em busca desse Graal que é o bolo-rei menos cristalizado e mais laureado da zona, agora que massacramos cabritos e preenchemos mesas com louváveis e extremamente numerosas obras gastronómicas que irão conhecer o belo aconchego do caixote de lixo a rebentar pelas costuras logo pelo dia seguinte, agora que supostamente pensamos nas coisas boas e espirituais que no resto do ano parecem-nos não possuir qualquer fundo de razão, agora por tudo isto, por qualquer coisa mais e sobretudo pela infundada esperança de “este ano é que vai ser especial”, dizia eu, de que estamos à espera para boicotar o Natal?
Estamos à espera do quê? De mais gente a acotovelar-se em rituais tribalísticos nas megastores? De convívios forçados? De manter esta como a irredutível tradição, agora que tudo se quebra perante a voragem dos tempos? De surpresas agradáveis?
Eu já tive a minha surpresa (abaixo). Evitemos males desnecessários. Impugnação total do Natal, já.


Fernando Mendes anunciou que o seu programa televisivo, "O Preço Certo", emitido diariamente pela RTP-1, vai continuar no ar, pelo menos, por mais dois anos.
Estreado em 1990 por Carlos Cruz, o programa passou a ser apresentado por Fernando Mendes em 2003. O actor, falando no jantar anual da produtora ‘Freemantle', sublinhou que "O Preço Certo" mantém um bom nível de audiências e que, por isso, será em breve assinado um contrato de prolongamento do acordo com a estação pública: mais 24 meses do que o inicialmente previsto.
O director-geral da ‘Freemantle', Frederico de Almeida, revelou que "O Preço Certo" é um dos programas mais vistos em Portugal, chegando a alcançar um ‘share' de 41% imediatamente antes do Telejornal. Sobre as razões do sucesso, Frederico de Almeida salientou a apresentação de Fernando Mendes. O actor, por seu turno, desvendou a "receita" da popularidade do programa: jeito pessoal, simpatia e um pouco de revista à portuguesa...

sexta-feira, dezembro 07, 2007

: )

ya ouve tasse bem ixo e bue baril :o mem nakela ya :)))) e 1 curte altamnte ganda som tipo 50 cent mas + fix so mem ouvir vierao ca e bazei la ver eu dissete p ires e tu yayaya mas sopa q nhanha fizex-te merda na terex ido pa n h $ taxe mal eu ca pedi ao kota e so teve q dar ya tas a ver ganda power q eu tenhu mas ka pa mim tas out andax a cortir 4 taste e senas axim c a t irma q e 1 pita sem mamax :P kaga nela e deixa la tar ixo vais pa porxima os bakanus vem ca outra vex tipo brutal max eu agora tou na psp a cortir pes totil mem buererere lol :) ganda cena tipo fifa mas ya mas melhor s kizeres paxa ai tasse na boa tasse 100 prblemas mas hoje n amanha doute um call aparexe no msn tou la xempre na dixes nepia es fraku tipo kareta manda sms ou mms ja sabes tenhu 1 novo tlmv dd tc tipo brutal dpois mostrute ya foi a kota q m deu tipo luxu du best fica bem tasse props in da house fica

Resultado ao intervalo: Sam The Kid – 1; Edite Estrela – 0 (golo marcado via internet pelo tipo do BMW prateado aos tiros).

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Descartável e Biodegradável

Nepomuceno não se sentia confiante. O ambiente dos últimos dias tinha sido, literalmente, de cortar à faca – uma auxiliar de limpeza deixara cair uma faca de cozinha em cima do pé do director-adjunto anteontem e este fora despachado com um corte profundo para o hospital. Algo estava mal. As caras que nunca foram muito alegres tornaram-se ainda mais sisudas e já ninguém tinha paciência sequer para contemplar as pernas da secretária loura de mini-saia ou para entabular conversas sobre futebol. Respirava-se mal e não era só devido à deficiente calefetagem ou ao ar-condicionado obsoleto. Cada dia era como uma temporada na selva a fugir das feras selvagens e da trapaceira vegetação. Nepomuceno fora convidado ao gabinete do chefe.
- Nepomuceno, estive a analisar o seu comportamento e… não sei, sabe? Acho que você não está bem enquadrado aqui no seio da empresa…
- Mas, Júlio, entrámos na empresa ao mesmo tempo, há quase quinze anos…dei formação a maior parte do pessoal qualificado aqui do departamento…andámos na escola juntos e até namorámos as mesmas tipas…tu conheces-me muito bem, apesar de agora seres meu chefe…
- Oh Donato, isso para mim é irrelevante, sabe?
- Nepomuceno.
- Ou isso. Vou ser muito directo consigo: eu não gosto de si.
- Mas… mas… porquê Júlio? O que é que eu fiz?
- Olhe, a sua mãe é muito parecida com o Nuno Gomes, mas com bigode. Isso é simplesmente devastador.
- Mas, Júlio, tu nem conheces a minha mãe… ela está no exílio desde que nós nos conhecemos…
- Pronto. Você escova os dentes demasiadas vezes por dia. É perfeitamente insuportável.
- Mas eu nem sequer escovo os dentes...
- Olhe, sei lá, tenho novos planos para si.
- Vais-me despedir, Júlio?
- Vou.
- Não acredito!... Depois de tudo o que fiz por ti…
- Olhe, o melhor que você alguma vez fez por mim foi ter ficado calado na reunião da semana passada, está a perceber?
- E o rim que transplantei para te ajudar naquela crise renal aguda que tiveste em ’93, Júlio? Não conta?
- Pronto. Isso pode contar. Mas não chega.
- Não pode ser!...
- Está bem. Estava a brincar. Não lhe vou despedir.
- Então?...
- Vou reutilizar-lhe.
- Como?
- Estive a analisar a sua morfologia, Wilson. Você tem aspecto de ser descartável. Mais do que isso, biodegradável.
- Hã?
- A nossa empresa tem de apostar nas novas práticas ambientais. E tem de manter a competitividade. Isto é, dar uma imagem de preocupação social e simultaneamente reduzir custos. Os custos reduzem-se através dos despedimentos dos excedentários, não julgue que vou perder as minhas regalias, Carlitos. Se não vamos com a cara dum trabalhador qualquer, evitamos as discussões com os sindicatos, não despedindo esse imprestável, mas sim reciclando-o.
- Eu… ser reciclado?
- Exactamente, Genoveva. Você já pensou que a sua gordura pode ser utilizada em produtos de limpeza? E os seus ossos para equipamentos industriais de precisão? E os seus olhos para brindes a oferecer às crianças no Natal? Até o seu sangue pode ser recolhido e utilizado para uma futura transfusão, para quem seja hemofílico, por exemplo… olhe, a minha mulher, por acaso, até precisa do seu sangue, que é dum tipo raro… E o resto que não interessar é queimado para fornecer energia ou reaproveitado para revestimento de secretárias… Você ainda pode ser muito útil para a empresa e nós podemos conquistar uma medalha por mérito ambiental, o que faria disparar as nossas vendas.
- O quê? Júlio, estás a brincar comigo!
- Não estou, não. Desta vez não estou. Você vai ser abatido como um porco e vamos aproveitar tudo o que puder ser aproveitado de si. Mas mesmo como um porco, com um facalhão a atravessar o seu lombo para o sangue escorrer todo para dentro dum alguidar… não está a ver gastarmos electricidade com choques eléctricos, agora que implementámos um programa de eficiência energética, pois não, Bam-Chi-Wakh?
- Eu…
- Quer ter três segundos para pensar nesta oferta?
- Eu exijo…
- Já passaram. Vamos imediatamente transportá-lo para o matadouro. Você tem prioridade sobre as vacas que estavam marcadas para as cinco horas. Estou muito contente com o seu envolvimento, Bruce. Mas olhe que pessoalmente ainda não simpatizo muito consigo, sabe?
- NÃÃÃÃÃO!!!!
Pois, o ambiente estava literalmente de cortar à faca. Racionalização, contenção, sustentabilidade, substantivos modernos que rimam com sacrifício, Nepomuceno sentiu no corpo a dor que eles podiam infligir. Poucos sabem o quanto ele guinchou antes de ser congelado numa arca encravado num gancho suspenso para futura utilização. Na empresa, todos murmuravam sons macambúzios entre olhares frios e andares furtivos, remoendo o mal-estar, rezando para que fosse o vizinho do lado o próximo a ser chamado de urgência ao gabinete. Sinal inevitável dos tempos ou simples colheita do que foi semeado, alguém que se dedicasse a estudar. “É a vida”, lamentavam-se.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Sideshow Bob

Estive perto de uma rapariga com cabelo à Sideshow Bob, melenas alouradas altamente volumosas, peito e barriga igualmente volumosos, toda ela um volume monolítico. Disse-me “obrigado” por uma situação qualquer que não reconheci imediatamente e eu pensei para comigo “estou a ver que manténs esses hábitos servis e me vês como o teu potencial Krusty”, mas apenas pensei, imbuído dum espírito tão claramente arrogante quanto desproporcionado. Na verdade, sou um palhaço, é certo, e muito cobarde, ainda mais certo, pelo que nunca me passaria pela cabeça proferir algum som, ainda para mais com tanta gente a assistir. E ela pode muito bem ser uma assassina como o finíssimo Bob, ocultando as suas tentações mortíferas atrás duma secretária obscura numa recepção dum armazém decrépito da periferia, teclando incessantemente para amigos distantes no Hi-5, “five” aqui, “five” acolá, julgando encontrar um príncipe encantado que lhe livre das patilhas do seu marido em processo de calvície galopante e ao qual se arrepende bastante de ter proporcionado prazer oral logo a seguir ao jogo do último fim-de-semana. Um destes dias, ela irá entrar num sonho meu, não necessariamente molhado, despindo-se à minha frente, dizendo-me “pareces porreiro mas eu quero engravidar outra vez dum gajo que tenha paciência para aturar putos e que tenha dinheiro e disponibilidade para engolir tudo o que tenho de reles para dizer” e agradecendo-me por eu não ter dito que não às suas mamas gordas e à sua barriga flácida que inclui um umbigo gigante debitando cotão em proporções apocalípticas. Dizem que em tempo de guerra todo o buraco é trincheira, mas nesta vida nem uma G-3 ou uma chaimite reformada para amostra, portanto não há necessidade de buracos para servirem de trincheiras, não há cá desculpas, eu sou apenas um simples tarado sem gabardina que deseja qualquer fêmea com inenarráveis instintos desviantes, esteja ela a injectar-se com insulina junto a uma máquina fotocopiadora ou a comer espargos como se não houvesse amanhã. E com isto disse adeus ao céu, já tinha poucas esperanças de dizer olá, mas perdi este jogo ainda ele nem sequer tinha chegado ao intervalo. Talvez tenha morrido alguém atropelado neste momento por causa destas minhas insanas reflexões, talvez tenha sido este o meu castigo, o de fazer os outros pagar pelas minhas incúrias levemente egocêntricas, mas, que diabo, como posso eu saber? A minha consciência adverte-me para ficar alerta e então tudo se tornará claro, mas é impossível, há demasiada preguiça, há demasiado caos pasmacento, portanto o que melhor me poderia acontecer era conhecer uma personagem dos Simpsons adaptada à realidade. Só faltava ela ter um cabelo multicolorido, embora aceite que tal pedido já seja demais. Contento-me com a perfídia do meu mudo imaginar, ou melhor, reconheço nestes pensamentos o verdadeiro sal da minha existência, pois na realidade o bafo que os outros exalam tira-me qualquer espécie de desejo socializante. Sou um eunuco mental de Segunda a Domingo, das nove às cinco, do nascer ao pôr-do-Sol, que descobre que não durante os momentos de sonolência e de bebedeira. Sou uma espécie de fogo-fátuo sexual, um sociopata mal assumido ao qual atribuem a importância merecida, que é pouco mais que nula, e eu próprio contento-me em ser assim. O meu mérito nesta situação é inquestionável e auto-avalio-me positivamente em cada semestre. Depois de ter ponderado todos os prós e contras, concluí que passei muito tempo a tornear as dificuldades inerentes à minha personalidade disfarçadamente belicosa para me concentrar no irrelevante. Isto é, comi a fava e as frutas cristalizadas que ninguém pega por manifesto nojo e deixei o bom do bolo-rei para quem estivesse ao lado. Fixe, porreiro, bestial, penso eu, sou um novo Padre António Vieira a pregar aos tubarões, um anormal do caraças, não é com isto que vou deixar de ser um pecador do pior. Não é por me lavar com gestos ocasionais de pureza que deixarei de ser breu sujo lá bem no íntimo. Não é por causa dela ser uma espécie de contrafacção do Matt Groening que é inferior a mim. A hierarquização que eu faço das coisas é um assunto que dá pano para mangas.

À Volta do Mundo (Doze Citações Avulsas)

Ao contrário do que se pensa, as gueixas japonesas não são prostitutas. São mulheres que entretêm os homens com boa conversa, dança e música.
(in “Sol” – versão online 4/12/2007)

Sempre com conselhos úteis para várias situações do quotidiano, esta revista feminina [“Mulher Moderna”] propõe-se a ajudar a mulher portuguesa a enfrentar os desafios que a vida lhe apresenta.
(in website Impala)

Não me vou envolver numa discussão que não me diz respeito.
(Daniel Oliveira, in “Arrastão”, 2/12/2007)

Assistir a um Alemanha-Japão e ver um ganês a fintar um brasileiro confunde, por si só, qualquer adepto do verdadeiro futebol de selecções.
(Luís Freitas Lobo, in “Expresso”, 12/9/2007)

As convulsões febris são convulsões que aparecem nos primeiros anos de vida – entre os 6 meses e os 6 anos – na presença de uma doença febril geralmente benigna e sem que haja uma lesão neurológica causal.
(in website Médico Assistente)

Conta-se que hüa vez hüu rato que morava em hüa cidade, andando a hüa aldea onde morava outro rato seu amigo, quando este rato da cidade chegou aa aldea onde morava, este rato seu amigo ouve com ele grande prazer e dei-lhe a comer favas e triigo e ervanços, com outros manjares.
(Pacheco Pereira, in “Abrupto”, 25/3/2007)

A morte nunca é justa, tal como a vida não o é.
(Luísa Castel-Branco, in “Destak”, 4/12/2007)

Manuel Luís Goucha nasceu a 25 de Dezembro de 1954. É um dos mais famosos comunicadores portugueses.
(in Wikipedia)

Imprescindíveis em qualquer lar, os frigoríficos trabalham, incansavelmente, 24 horas por dia, por muitos e muitos anos.
(in website Worten)

Já imaginou o penoso que será para ela dizer que o pai se chama António e a “mãe” se chama Pedro?
(José Pinto Coelho, in algures, data incerta)

O Circo Chen apresenta diversos números de circo, entre os quais merecem especial destaque os animais exóticos, os cavalos, os tigres, a balança russa, os malabares, os antipodistas, as fotas aéreas e os palhaços.
(in website Parque das Nações)

Sera k camaxo ainda ñ se mentalizou k jogar com o nuno gomes e jogar com 10 !!!!
Sera k só eu e k vejo isto !!!!
(André, in MaisFutebol, 4/12/2007)

segunda-feira, novembro 26, 2007

Hooligan Profissional

Algumas pessoas tendem a apontar-me um dedo recriminador quando lhes digo que sou um hooligan. Todos pensam que a vida do hooligan se resume a uns quantos actos racistas, agressões cobardes, porrada de meia-noite, biqueiras de aço, cânticos urrados nos estádios e algum álcool. Se pensam que a vida de hooligan é só isto, estão rotundamente enganados. Na verdade é tudo isto, com uma grande diferença no que me concerne: eu sou profissional.
Quero com isto dizer que tenho de observar uma série de burocracias e preocupar-me com elas com um afã quase semelhante ao da afinação da minha ponta-e-mola. A saber:
- Criação de uma firma unipessoal de responsabilidade limitada (“Trás-Pás, Unipessoal Lda.”);
- Descontos mensais para a Insegurança Social (taxa única de 23,5%);
- Salário base, subsídio de almoço e de deslocação (respectivamente, pouco mais que o ordenado mínimo, 4,25 € e o passe L1);
- Pagamento do Subsídio de Natal e de Férias a todos os empregados (que, neste momento, sou apenas eu – todos os outros mostraram-se de fraca confiança e, acima de tudo, de fraca constituição física, gastando eu balúrdios em estadias nos hospitais após batalhas campais mais acirradas);
- Prémio de desempenho anual, baseado nas avaliações de desempenho (embora facultativo, não deixei de me auto-atribuir o prémio este ano, para não descurar o factor motivação que deve estar presente em qualquer empresa e para homenagear o grande festival de pancada que marcou a minha visita ao Porto no final do campeonato passado);
- Contabilidade organizada (e como se contabilizam barricadas de rua? Um “fornecimento e serviço externo”? “Proveito operacional”? “Sinistros”? A contabilidade pode ser criativa, e existem grandes estrategas nesta novel arte, mas será a contabilidade hooliganística? Poderá a contabilidade do século XXI adaptar-se às especificidades das lutas de gangues?);
- Estipulação de um horário de expediente (eu trabalho todos os dias úteis, escrupulosamente, das 10 às 17:30, com almoço pelo meio, e no dia do jogo da minha equipa);
- Pagamento de horas extraordinárias (e por isso deixei de rebentar com estações de serviço nas viagens de regresso e de incitar ao seu rebentamento, pois custava-me os olhos da cara);
- Cumprimento das normas de segurança EU25B-04 e EU4447-07, no que respeita ao material utilizado nas pelejas (a ASAE já me apreendeu alguns bastões de baseball timidamente lascados e uns quantos frascos de gás pimenta, o que para mim foi uma vergonha da qual ainda mal me refiz… e sem esquecer a pesada multa);
- Emissão de facturas por cada acto violento, ao cuidado da vítima (o meu volume de negócios fez-se sobretudo de socos simples, mas houve uma factura de montante recorde emitida ao cuidado da Junta de Freguesia de Massarelos, pelo cocktail molotov que incendiou dois contentores do lixo);
- Etc. e tal.
Só enveredei por este caminho porque, a certa altura, parecia que o negócio iria despontar. O meu raciocínio foi: as claques estão na moda, há desacatos em cada jogo, estão a combinar-se lutas antes e depois dos jogos e longe dos estádios, o filme “Fight Club” está a tornar-se um objecto de culto, eh pá, o que falta mesmo é rentabilizar estes instintos embrutecidos e canalizar o ódio cego e infundado numa actividade lucrativa. Recrutava 3 ou 4 bisontes habituados a bater em tudo o que se mexesse, montava um escritório, seria o meu próprio chefe e chefe deles numa actividade que me dá gosto e, ena pá!, até podia receber uma menção honrosa duma consultora internacional pelo meu espírito empresarial.
Mas, como referido atrás, os tais bisontes nem sempre actuavam com profissionalismo, batiam sem critério a quem não podia suportar a factura, isto quando passavam a factura e quando se lembravam de reclamar o dinheiro. Sempre lhes alertei, nas diversas acções de formação que levei a cabo, “não batam nos velhos e nos putos”, não por qualquer factor moral para o qual me estou a borrifar como bom hooligan que sou, mas porque esses não têm posses para pagar um simples calduço. “É melhor bater em casais de namorados e mulheres com casacos de vison”, advertia, porque pelo menos conseguem dar-nos 2 € por um soco sem soqueira ou por um pontapé que não na genitália, nem que seja só para não lhes batermos mais. Aliás, a minha empresa conseguiu ter, em determinada altura da sua existência, uma quota estimada de 65% no mercado nos pontapés à traição na genitália, porque optei por vender estes pontapés por apenas 5€ (o mais barato do mercado), sem descurar a qualidade de execução do mesmo. Jamais. Quem se atravessasse no caminho da minha empresa sabia que podia contar com violência de elevada qualidade. Era tudo o que eu queria, mas infelizmente não foi possível. Sei que se partiram muitos dentes sem que tenhamos exigido o respectivo pagamento. Parecíamos, a dado ponto, uma empresa pública, tal o dispêndio de energia sem a natural correspondência dos rendimentos. E então, cansado de tanto amadorismo, visitei os hospitais e celas por onde deambulavam os meus colaboradores e procedi ao “lay-off”.
Sendo assim, e como só resto eu, estou a pensar em cessar a actividade e voltar ao registo dos recibos verdes. É chato, eu sei, é atirar com um ponto de interrogação gigante para as costas do nosso futuro, mas talvez assim volte a retirar prazer quando bato em alguém. É que agora, quando espeto uma cabeçada num tipo, penso logo nas atribulações contabilísticas do acto e em quantas mais cabeçadas e narizes partidos terei eu de efectuar para ter lucro num determinado mês. Talvez os recibos verdes sejam a solução.
Quer dizer, a solução só virá quando sair deste presídio onde me encontro por dívidas fiscais – na lufa-lufa das agressões, liquidei o IVA que devia deduzir, ou vice-versa; ou apliquei mais que os 21% convencionais, talvez, não sei; só sei que o fisco me apanhou. Estou a ver o Vale a Azevedo e o Pedro Caldeira lá ao fundo. Vou convidar-lhes para jogarmos às cartas. E se recusarem, parto-lhes os dentes. Sem medo de retaliações. E se as houver? E se me mandarem desta para melhor? Não há problema, estou certo que no céu também se arranja alguém, de confiança, a quem dar uns bons tabefes.
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NOTA: Antes da Tagus "ter" a ideia, já eu tinha abordado o assunto do orgulho heterossexual. Cerca de 4 meses antes. Magnanimamente, não reclamei os royalties que me seriam devidos. Começo a sentir-me como o Pacheco Pereira, constantemente citado mas não linkado nem referenciado. O próprio Pacheco Pereira já veio aqui beber algumas ideias. Ele que tente negar esta evidência com fotos tiradas ao pôr-do-sol em Rio de Mouro e com poemas avulsos de autores francófonos pela manhã.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Um Lado do Telefonema

Então, pá? ‘Tás bem?
É verdade, já faz um tempinho…
Fiz uns contactos…
Falei com o Malaquias e com o Celso…
Porreiríssimos.
Na forma do costume.
Eu cá vou andando.
Pois, pois…
Ainda com a mesma, sim.
Olha, de vez em quando… quando o rei faz anos!
Ahahahah!
Um gajo tem de se aguentar, não é?
Já não ligo muito a isso…
Deve ser, deve ser…
É a vida…
Então e tu, pá?
Éramos os maiores amigos do grupo, lembras-te?
Sempre te tive como um tipo excepcional, pá…
E tu também…
Não, não… ahahah!...
Sabes bem que não…
És cinco estrelas.
Por amor de Deus!...
Não é nada…
Sabes bem que sempre alinhei. E alinho!
Então não sei!...
Os três… bons tempos…
Sei, sei…
Aquela escola era um mundo…
Ahahahahah!
Mas já que falámos de mim, então e…
A Magda?
A loura?
Ah, a outra…
Mas ela não era aleijada?
Tinha ideia de ela não ter um braço…
A sério? Pois é, a ciência evolui…
Sim, sim, acredito que as próteses sejam muito perfeitas hoje em dia…
Nunca experimentei.
És maluco pá!... Então agora ia cortar a minha mulher aos pedaços só para…
Quero lá saber que dê tesão! Prefiro ela inteira.
Sim…
Pois…
Bem, da maneira que contas as coisas…
Hum-hum…
Sim…
E depois aplicas o golpe? Ah, antes disso…
Está bem…
Vou pensar… mas duvido…
Não gosto de sangue…
Eh pá, mas isso é diferente!…
Eu depois digo-te se compro ou não.
Bem, mas eu estava a ligar-te por causa doutra coisa…
Não.
Ainda não tive tempo. Se calhar para a semana…
Pois, mas não era isso…
Ahahahah!
O que eu queria dizer…
Sim…
Sim…
E então?
Ahahahahah! É demais!
O quê? E ficou com os tomates à mostra?
Ahahahahah!
Esse gajo nunca bateu bem…
Grande cena! Eheheheh!
Sim…
Sim…
Está bem, está bem…
Olha, eu queria convidar-te a passares cá por casa um dia destes…
Tenho aqui umas fotos para te mostrar que encontrei na arrecadação…
Sim, da viagem que fizemos. Ainda não viste nada, pois não?
Tinha essa impressão…
Ainda.
Está.
Logo vês.
Não.
Ficou bem.
Tenho.
Tudo.
Essa é que não.
Não há milagres…
Pois é, pois é…
É fácil: viras à esquerda e dás logo com o quiosque…
O quiosque do monhé…
Qual? Então aquele gajo que levou nas trombas uma vez junto ao bar…
O monhé paneleiro...
Ah, sim?
Desculpa lá, pá, não sabia que agora era teu cunhado…
Eh, pá, ó Ernesto, juro que não sabia…
Já não falamos há tanto tempo…
Não foi nada de propósito…
Não quis ofender…
Mas por acaso monhé é insulto?…
Eh, pá, estás a passar-te, meu…
Eu nunca disse isso!
Então e quando nós…
O que é que se passou na feira há dez anos, afinal?
O que é que a minha mãe…
Hã?
Repete lá…
Não acredito!
Eh, pá, olha aí as bocas, pá!...
Eu respondia-te se não fosse teu amigo…
Pois sou!
Tem lá calma, eu só disse que a minha casa fica perto do quiosque do monhé…
Desculpa!
Está bem!
Pronto!
Mas tens a mania da perseguição?
O quê?
Enfia tu no teu, ó porco!
Ai agora vens com essa!…
Tu é que estás com problemas!
Sim, sei…
Fui eu, sim. E o que é que queres fazer agora?
Ela sempre foi mais vaca do que aquilo que parecia, caso não saibas…
Ai sim?
Podes dizer à vontade…
Tenho a tarde inteira…
Pois, pois…
Na cozinha? Estou a ver…
Fui eu e o Abadito…
Ahahahah, tenho pena!
Sim…
Sim…
Tem juízo…
Tu é que vais para o caralho!
Pois fico!
Merda para ti também.
Foda-se.

quarta-feira, novembro 21, 2007

Bluff

Era para ser uma vida linda. Era para ser um trabalho que dava gosto. Era para ser uma pessoa muito solícita e simpática. Era para ter chegado em primeiro lugar. Era para nunca sentir fome de nada. Era para ser a mais espantosa descoberta do século. Era para ser uma namorada virgem. Era para ser barato e bom. Era para ser uma verdade absoluta. Era para ser pacífico e sem dor. Era para ser justo e equitativo. Era para ser a imagem duma geração. Era para ser maior. Era para ser melhor. Era para ser puro prazer. Puro gozo. Pura festa. Pura diversão. Puro êxtase. Pura tranquilidade. Mas é afinal um bluff.
Não há necessidade de me sentir defraudado. Eu sou a fraude.
Não tenho de acreditar em mais nada se acreditei nisto tudo até aqui.
Vamos a mais uma ronda?

quinta-feira, novembro 08, 2007

Desaparecidos

- Então a sua equipa de investigadores consegue localizar qualquer desaparecido.
- Qualquer um.
- Toda e qualquer pessoa.
- Pessoa, animal e vegetal.
- Vegetal?
- São os mais fáceis de detectar. Uma das curiosas características dum vegetal é a sua reduzidíssima mobilidade, o que facilita o trabalho dos nossos activos colaboradores. Outra característica de alguns vegetais é o facto de calharem mesmo bem numa salada. Também reagem muito bem ao vinagre. Mas isto agora não vem ao caso.
- Certo. E quantos vegetais já recuperaram, só para ter uma ideia?
- Bem, assim de repente e sem querer ser demasiado exaustivo, o alho francês do Sr. Carmildo, o molho de agriões da D. Paulina, o rabanete de estimação do Sr. Guilhermino e o Sr. Orestes, um perigoso tetraplégico desaparecido na Costa Vicentina.
- Como assim, “perigoso tetraplégico”? O que é que ele podia fazer?
- Oh, ele cuspia a longa distância e com grande precisão. Especialmente escarretas esverdeadas, as mais mortalmente nojentas. Quando o apanhámos, estava a fazer mira a um casal de turistas holandeses perto de Aljezur. Já tinha cuspido em cerca de vinte ou trinta transeuntes só numa semana. Também atropelava velhotes nas passadeiras com a sua cadeira-de-rodas motorizada. E insultava de uma forma horrenda e gratuita quem lhe fizesse frente. Não foi fácil, chegámos a ter um colaborador nosso com depressão quando tentava localizá-lo, mas finalmente conseguimos.
- E já recuperaram animais, também. Suponho que animais de companhia de luxo.
- Sim, como o São Bernardo do Sir Manfred Hurthington, o poodle da estrela de cinema Mimi Mama… e também o Dr. Tancredo Diapasão.
- O Dr. Tancredo Diapasão?
- Sim, o famoso neurocirurgião que saiu de casa para comprar tabaco e não foi visto durante meses. Ele é um terço camelo, um terço porco e um terço aparentemente humano. Poucas pessoas sabem disto. Também fomos nós que descobrimos. Apanhámo-lo num “peep show” dos Restauradores, em Lisboa.
- Certo, certo… mas aqueles casos mesmo mediáticos, que estão na crista da onda, vocês não resolveram nenhum, pois não?
- A nossa equipa de investigação é demasiado discreta para se envolver com mediatismos. Nós é mais madrugadas de Sábado na :2 e menos Jornal Nacional da TVI; mais S. Carlos e menos Pavilhão Atlântico; mais revistas subscritas por correio e menos 24 Horas…
- Uma elite, portanto.
- Estamos para além da elite, para além da superioridade viscôndica sportinguista, para além daquilo que é directamente palpável…
- Posso falar com os seus colaboradores?
- Só estou eu disponível, sou eu que dou a cara pelo projecto.
- Só você? Porquê?
- Bem… para dizer a verdade…
- Sim?
- Os meus colaboradores estão desaparecidos.
- Como?
- Eu sei, eu sei, parece parvo, mas incuti tácticas de dissimulação tão fortes neles que eles acabaram por desaparecer em busca de desaparecidos.
- Então…
- Sim, receio que tenham todos desaparecido. E quem os pode encontrar, eles que são a nata da investigação? O enorme Zé Latas foi à procura do brilhante Manel Frasco, que por sua vez estava a seguir a pista da nossa excelente Maria Aguarela, que foi vista por última vez atrás do nosso amigo e companheiro Rui Cão, que perseguia o nosso repentino Quim Martins, que andava a buscar o seu isqueiro no porta-luvas há semanas. Sobro apenas eu e a Ana Feldspato. Isto é , a Ana Feldspato também desapareceu ontem. Pelo menos hoje não veio trabalhar. Pode ter ficado em casa a tratar dos filhos, quem sabe. O mais certo é ter desaparecido como os outros.
- E agora? Parece que a sua empresa está a desmembrar-se…
- Agora é continuar a lutar e seguir em frente, há mais desaparecimentos para resolver. Há que dar o corpo às balas. Vender cara a derrota. Trabalhar desaparecimento a desaparecimento. Não colocar o pé em ramo verde. Adquirir experiência para regressarmos em força no futuro. Fazer os possíveis e os impossíveis para sair com resultados positivos. Pensar já no próximo desaparecimento. Limpar o pensamento e seguir em frente. Acreditar que é matematicamente possível dar a volta. Não chorar sobre o leite derramado. Se continuarmos a trabalhar assim, certamente que os desaparecidos aparecerão. Quer que continue com mais frases feitas?
- Não, deixe estar, acho que percebi o seu ponto.
- Ainda bem, só me lembrava de mais uma. E tinha a ver com o árbitro, não estava muito relacionado.
- Não acha estranho, o facto de profissionais da detecção desaparecerem sem deixar rasto?
- Não. Eles estão extremamente qualificados para desaparecer. O que me estranha é o facto de não reclamarem os vencimentos em atraso.
- Havia salários em atraso?
- Sim. Os fundos que lhes prometi…
- Sim?
- … desapareceram.
- Como assim?
- Foram-se. Eclipsaram-se. Foi um ar que lhes deu. Escapuliram-se. Era uma vez um saco de dinheiro… Ouça, eu podia continuar com sinónimos que enfatizassem esta situação, mas depois assemelhar-me-ia bastante ao sketch do “Papagaio Morto” dos Monty Python. Relembre-se que sou uma elite e que detesto vulgaridades e plágios baratos.
- E você sabe como o dinheiro desapareceu?
- Um mistério. Indecifrável. Apenas comparável ao da origem das espécies.
- Você não parece muito preocupado…
- É natural. Eu estou podre de rico.
- Não terá sido você a desviar os fundos para benefício pessoal?
- Alguém nos ouve?
- Nem por isso.
- Alguém nos lê?
- Só no blogue “Outra Louça”.
- OK, então estou à vontade: fui eu que gamei tudo. Mas apenas enquanto os meus colaboradores estavam embrenhados nas investigações… quando eles reparassem que lhes faltava algo, eu tencionava devolver-lhes o dinheiro… mas eles foram desaparecendo… e eu, pronto, fui aconchegando o dinheiro…
- Esta sua empresa parece-me uma grande fraude…
- É. Duma forma muito simplista, sem grandes explicações, parece mesmo uma fraude…
- E o que você vai fazer quando a bomba rebentar nas suas mãos?
- Aceitar as consequências com a dignidade intrínseca aos homens probos.
- A sério?
- Sim… e depois sou capaz de…
- Sim?
- Desaparecer. Afinal, domino a técnica…

sexta-feira, novembro 02, 2007

Astrólogos Reunidos

Não houve surpresas no I Congresso de Astrologia e Tarologia. Todos os presentes previram com exactidão o que iria acontecer – tendo sido esta, quiçá, a maior surpresa de todas. Inclusivamente, o Mestre Haddaway acertou na previsão em que iria falhar o jacto de urina na retrete, algo que, embora comum, aborreceu de sobremaneira a Madame Minneht – para além de lhe ter proporcionado uma incómoda sensação de humidade nas nádegas.
Como tal, os discursos e apresentações sucederam-se a um ritmo elevado, pois breves segundos bastavam para que toda a audiência percebesse o que se iria passar. Após alguns bocejos, o principal incidente a registar envolveu uma vidente júnior, que alegadamente se deixou hipnotizar por um mago sénior a meio da palestra “Bolas de Cristal num Mundo de Plástico”, aparentemente por ingenuidade ou apenas por curiosidade mórbida. Ela queixou-se que foi sodomizada numa estranha combinação do regente Mercúrio com Urano na sala das arrumações. Porém, o mago negou com veemência e recomendou uma safira para debelar o mau-olhado hemorroidal que parecia afectar a vidente, remetendo posteriores explicações para o seu mapa astrológico de 2008.
Assim, numa votação em que alguns declinaram participar, pois sabiam de antemão o resultado final, as principais deliberações foram:
1 – Reintroduzir Plutão como planeta a sério, pois dá jeito tê-lo como planeta de influência (Saturno não chega para tudo);
2 – Ênfase à formação em retórica linguística, de modo a aprimorar as técnicas de “generalização no vácuo”, isto é, escrever as previsões de uma forma tão vaga que qualquer pessoa, com pouco esforço, consegue identificar-se com o que está escrito;
3 – Equacionar a criação dum signo de substituição ao Virgem, dados os dissabores causados pelo seu nome junto do público masculino (entre as hipóteses, estão os signos de Heterossexual Assumido e Sem Confusões, Virgem Só de Signo Porque na Cama Sou Um Tipo Bué da Experimentado ou Virgem Só do Cu);
4 – Moção de apoio ao movimento “Júlia Pinheiro a taróloga”, que visa: a) retirar tempo de antena a Júlia Pinheiro na TVI, onde tem actuado “como um Eucalipto da inteligência humana” e b) juntar Júlia Pinheiro e Maya num programa de astrologia só para elas e possibilitar o trabalho digno e concentrado dos restantes astrólogos;
5 – Aprovação unânime da inutilidade destes Congressos e marcação de uma sardinhada para Junho como forma de reunião alternativa.

segunda-feira, outubro 29, 2007

Um Grande, Grande Homem


Donato Gervásio Timoschuk Varejinha (1942 – 2007), mais conhecido por Tó Quim, foi um renomeado estadista, jurista, filólogo generalista, carpinteiro, farmacêutico, ensaísta, cientista, animador de festas infantis e igualmente o mais temido líder de uma série de quadrilhas sanguinárias – papel no qual utilizou o seu pseudónimo Zé das Bombas. Consta que em 1965 também chegou a ser um gás raro posteriormente sublimado, de forma definitiva, num ser sólido, embora tal tenha sido desmentido pelo próprio nas suas memórias.

Origens – Tó Quim talvez tenha nascido a 15 de Fevereiro de 1942, em Carrazeda de Ansiães, filho de um amolador incógnito e da padeira local, Maria das Dores Timoschuk, mas pode ter simplesmente aparecido do ar por volta do mesmo ano e caído nos braços de Maria Timoschuk. Da mãe herdou o gosto pela confeitaria e pela cozinha, do pai tudo o resto, incluindo o apelido “Varejinha” e um pénis extraordinariamente curvado para a direita quando erecto. Criança precoce, em 1946 escreve o seu primeiro “Tratado Sobre a Arte de Bem Levedar o Pão”, que recebe menções honrosas no III Certame Internacional do Papo-Seco de Bruxelas e é imediatamente inscrito na lista das grandes obras de gastronomia enciclopédica, segundo classificação da École du Pain et de la Belle Baguette de Perpignan. A redacção original do Tratado viria a ser utilizada pela sua mãe para forrar os tabuleiros do pão e ocasionalmente como combustível do forno a lenha. Tó Quim não esmoreceu e, logo em 1948, volta a arrasar a crítica familiar com um ensaio para crianças sobre o efeito do isolamento na psique humana, com profundas análises neurologicamente comprovadas, incluindo descrições impressionantes da regressão da massa cerebral nos homens e mulheres com mais de 50 anos das zonas beirãs com fraca incidência da luz solar. Após este ensaio, Tó Quim deixa a sua Carrazeda de Ansiães natal, francamente desiludido com a pouca receptividade intelectual do meio, e ruma até Alter do Chão, onde espera cativar a comunidade científica. Por volta desta altura, Quim Zé começa a pintar o cabelo de roxo, algo que seria a sua imagem de marca até inícios dos anos 70. É em Alter do Chão que Tó Quim desenvolve o gosto pela política, desde Marx a Oakeshott, e também o gosto por lingerie usada de mulheres obesas e quarentonas.

Juventude – Tó Quim foi um jovem amargurado pelas vicissitudes da vida, que cedo o desterraram para paragens remotas. Em Alter do Chão, com vista a debelar a saudade e as primeiras reacções hormonais, concebe um plano militar para conquistar toda a África subsariana. Embora louvado pelos grandes generais do seu tempo, o plano é guardado na gaveta. Em 1953, e já com o seu primeiro livro dedicado à botânica alentejana publicado nas províncias ultramarinas, Tó Quim dá o seu primeiro beijo, curiosamente à sua prima. A ternura e a inocência típicas da adolescência marcaram-no definitivamente: “Não resisti ao apelo”, confessou nas suas memórias. “A tipa era gorda e isso dava-me uma tesão do caraças. Para mais, sendo levemente incestuosa, só a possibilidade de haver uma relação timidamente sexual encheu-me de ganas”. Em 1954, Tó Quim parte uma perna ao saltar de uma azinheira, em condições misteriosas. Tó Quim afirmou durante muitos anos que teria sido o seu grande inimigo, Manuel Churchill das Neves, a empurrar-lhe da árvore e a causar-lhe esta maleita que o fez coxear durante décadas, após aliciar-lhe com um pouco de vinho; porém, após das Neves ter doado cerca de 500 mil euros (em moeda actual) no célebre comício de Rio de Mouro em Abril de 1984, em nome da “boa amizade”, Tó Quim admitiu ter estado apenas “bêbado como um cacho”. Em 1958, já um pouco farto da monotonia de Alter do Chão, Tó Quim matricula-se finalmente na escola para aprender a ler e a escrever, embora tivesse já um plano de domínio do mundo, cinco tratados internacionais e uma dúzia de publicações sob a sua égide. Cansado de picotar e de fazer bonecos de plasticina, Tó Quim abandona a escola ao fim de 4 dias, publica o célebre manifesto sobre crianças desdentadas, inventa o primeiro mata-borrão pacifista do mundo e descobre a cura para o então inexistente SIDA, de uma forma tão inacreditável que ninguém acreditou mesmo, tendo a fórmula sido atirada para o lixo por alguém que hoje estará muito arrependido. Com o título de campeão do berlinde regional no bolso, Tó Quim percebe que é finalmente tempo de dizer adeus a Alter do Chão em 1960. Mas devido a dificuldades perceptivas e cognitivas, Quim Zé demora muito tempo entre o acto de dizer adeus e a partida efectiva, que só acontece em Março de 1962. Entretanto, escreveu a sua primeira música, uma balada sugestivamente intitulada “Catatónico É O Meu Amor” e assassinou a sua primeira pessoa, socorrendo-se dum saco de plástico e duma ripa de madeira – a vítima foi um crítico mordaz da sua obra-prima seminal, o óleo de inspiração litúrgica, “Madalena Arrependida a Levar Nas Trombas do José Traído”.

Reconhecimento e Atentados Bombistas – após Alter do Chão, seguiram-se Berlim, Sever do Vouga e Boston, sempre em busca do ideal de perfeição, com uma miríade de obras, prefácios e posfácios de elevado calibre académico pelo meio, até que Tó Quim assentou arraiais em Alpiarça. A versatilidade de Tó Quim era já por demais conhecida e o seu cabelo roxo começava a ser uma figura omnipresente na comunicação social. É aqui, e depois de ter projectado a nova Basílica da Estrela (de seu nome Basílica da Serafina) e de ter dado à luz trigémeos falsos (um ser humano, um ser aparentemente humano mas deveras esquisito e um guaxinim), que Tó Quim reconhece o recrudescer em si do seu alter-ego, o Zé das Bombas. Tó Quim admite esta realidade nas suas memórias: “Estávamos no meio da década de 60: Beatles, Vietname, Ultramar, cabelos compridos, ácidos, enfim, estava tudo na mesma pasmaceira de sempre e eu pensei cá para comigo: bem, o povo é demasiadamente estúpido para compreender e aceitar a grandeza das minhas teorias sobre a neo-relatividade, portanto tenho que dar ao povo o que ele quer”. E o que é que o povo quer? “Bem, o povo quer paz, pão, habitação, saúde e educação, mas acima de tudo sangue”. Estava dado o mote. Com alguns ensaios de permeio, Zé das Bombas consegue o seu discreto, mas eficaz, sucesso inicial: em 1968, detona uma das pernas da cadeira de Salazar. Quase ninguém credita Zé das Bombas por este êxito. “O povo é ingrato”, refere. “Mas não fico ressentido. Eu, aliás, o Zé das Bombas, era um anarquista puro e duro e isso não era bem aceite. Nem a anarquia nem os chupas com sabor a limão”. Os chupas com sabor a limão foram considerados como um dos maiores flops de Tó Quim, ultrapassando mesmo a sua fracassada tentativa de demonstrar que Isaac Newton descobriu uma maçã podre e não a relatividade, de quem diz ser “pai adoptivo e afectivo ao nível do Sargento Luís Gomes”. Em meados da década de 60, já todos conheciam, de uma forma ou de outra, a caixinha de surpresas que era Tó Quim e o seu grande contributo para a Humanidade, sendo impossível ignorar este homem – especialmente, quando este anunciou ter inventado uma tinta invisível de aplicação dérmica e ter surgido completamente nu e perfeitamente visível no programa “Zip-Zip” de Maio de 1969 (aparentemente, a tinta demorava algum tempo a fazer efeito; a emissão integral nunca foi para o ar).

Apogeu – as décadas de 70 e 80 ficaram marcadas pela intensa actividade de Tó Quim ou, mais concretamente, de Zé das Bombas. Cansado de ser uma figura esbelta e disposto a assumir a sua ruptura com o mundo medíocre que o rodeava, Tó Quim adquire o aspecto descomprometido que o iria caracterizar postumamente em 1972 (tal como se pode ver na foto, descansando ao natural após uma sessão de tremoços e imperiais na Tasca do Raposo, em Alpiarça). À medida que as teses, compilações científicas, descobertas e arte diversa de Tó Quim germinam como coelhos à solta na pradaria, Zé das Bombas começa a assumir uma preponderância fulcral na vida de Tó Quim. Foi Zé das Bombas quem planeou o 25 de Abril de 1974, embora esse mérito lhe tenha sido sonegado por uns quantos capitães e uns políticos esquerdistas – algo que fez crescer a fúria anarquista que habitava dentro de si. Todo o ano de 1975 foi vivido sob o signo de Zé das Bombas, que, passados uns anos, foi o principal mentor e instigador das FP-25 de Abril. Entretanto, Tó Quim foi cada vez mais relegado para segundo plano, enquanto Zé das Bombas ia acumulando grandes feitos: mutilou uma vasta gama de crianças em África, esfomeou a Ásia Meridional, treinou o gang Baader-Meinhof, esteve na génese do movimento talibã e secou notavelmente todo o Médio Oriente, para além de ter reivindicado a extinção do lince ibérico e de ter rebentado, por várias ocasiões, os lavabos das casas de banho da antiga Feira Popular – para a posteridade ficam as imagens de pânico da população aterrorizada na Grande Banhada de Setembro de 1983. Enquanto os líderes do mundo gizavam formas de aquecer a Guerra Fria, Zé das Bombas, lesto, desencadeou o seu ataque final: com um remate bem colocado à meia-volta, abriu as válvulas e deu-se Chernobyl. Foi o último grande assomo de Zé das Bombas que, enfastiado, retirou-se e deu lugar ao velho conhecido Tó Quim, agora já um grande senhor da cultura mundial, com discos de platina em quase toda a Europa, Nobel da aquacultura e presidente da Liga dos Homossexuais Que Não Gostam da Cor Púrpura. Em 1988, Tó Quim renunciou à sua homossexualidade e tornou-se homófobo e racista. Mas em 1989, Tó Quim, na apresentação da sua peça infantil “Os Dedos Nos Meus Orifícios”, negou as suas preferências e assumiu-se como “trissexual” e “apoiante de todas as minorias étnicas, excepto dos pretos que roubam na minha zona”. A 6 de Novembro de 1994, um dia depois de ter descoberto a origem do Universo e de ter pintado a sua casa de amarelo, Tó Quim é preso por acidente, ao pisar o pé calejado do Intendente Geral da Polícia Metropolitana durante o jogo Farense – Salgueiros. Tinha chegado ao fim a brilhante carreira deste perigoso iluminista.

Declínio e Morte – com a sua prisão, todo o legado histórico de Tó Quim e de Zé das Bombas foi ignorado e varrido da memória colectiva de toda a Humanidade, por intermédio duma espectacular reacção química universal, sugerida pelo próprio Tó Quim – o que explica o facto de ainda hoje se acreditar em Deus e na reencarnação, bem como o facto de nunca se ter ouvido falar em Tó Quim ou em Zé das Bombas. Apesar de tudo, Tó Quim foi absolvido, sem escapar ao apedrejamento público levado a cabo pelos magistrados e juízes do processo na mata de Monsanto (“O Martírio do Monsanto”, 27 de Março de 1996). Tó Quim ficaria ainda privado de exercer qualquer actividade produtiva para além de artefactos em madeira, o que constituiu um golpe profundo no seu ego. Ainda assim, criou um modelo de mesa-de-cabeceira em mogno que ganhou o 2º prémio no Festival do Móvel de Freamunde, graças aos seus motivos gótico-rococós aplicados à marcenaria para uso doméstico. Regressou à sua amada Carrazeda de Ansiães para se reencontrar com as suas raízes, mas tudo o que achou foi uma nota de hipoteca na sua antiga casa e a campa da sua mãe vandalizada no cemitério local. Constatando que nada havia que o prendesse a Carrazeda de Ansiães, vogou aleatoriamente até aterrar em Alfândega da Fé e por aí ficou até à semana passada, onde ditou as suas memórias a uma ex-prostituta para futura publicação, falecendo em 17 de Outubro de 2007, com sinais evidentes de caspa e algumas lêndeas no baço. No futuro, não se prevêem homenagens nem condecorações ao grande e execrável Tó Quim. As contribuições de Tó Quim tenderão a permanecer incógnitas para as gerações vindouras e estas não sentirão pena nenhuma.

quinta-feira, outubro 25, 2007

O Maravilhoso Mundo Empresarial

- Estou a dizer-vos… esta porcaria vai explodir!
- Ahahahahah! O puto tem graça!
- É… esta nova geração é só humoristas… muito bons!
- Mas, bolas! Vocês não estão a ver? Barras de dinamite, um temporizador em contagem decrescente… esta porcaria vai explodir! Isto não é nenhuma brincadeira!
- Muda lá a graçola, ó rapaz! A gente quer mais e melhor!
- E escusas de inventar desculpas.
- É. Nós estamos fartos de “isto vai explodir”, “a casa vai cair”, “agora está a chover”, “o moçambicano de cem quilos violou-me”, “o Benfica vai perder”…
- Ahahahahah! Essa está boa! Desde quando é que o Benfica perde? O maior clube do mundo? Alguma vez?
- Só mesmo o puto para se sair com uma dessas… a dizer uma barbaridade destas…
- Se o Eusébio o ouvisse, levava logo com uma pratada de tremoços em cima! Bem feita!
- Tirem-me desta redoma! Esta coisa vai mesmo explodir! Eu não quero morrer!
- Chega de choradinho, miúdo.
- Sim, entretém-nos mais um pouco.
- Seus #$%$#&&#!!! #?>$&/%?!!!! Cambada de sádicos!
- Ahahahah! O miúdo está mesmo desesperado, olha lá!...
- Não tenhas medo, rapaz. Não te vai acontecer nada. Isso é apenas uma réplica.
- É uma réplica o car****!!! Vou pelos ares dentro de 2 minutos! E depois, quem vos vai divertir?
- Rapaz, desempregados é que não faltam.
- Nós exploramos alguém mais, sem remorsos. Portanto, trabalha como quisermos em qualquer circunstância.
- Sim, senão vais para o olho da rua e depois arranja-te como quiseres.
- E, além do mais, o teu pânico é simplesmente maravilhoso de assistir… ihihihihih!
- Com medo duma coisa de plástico…
- Como se isso mordesse…
- Gostamos desse teu número de desespero, mas está na altura de evoluir.
- Vá lá, não temos o dia todo.
- Temos ainda mais uns quantos jovens estagiários para observar.
- Sacanas! Eu sei que esta porcaria é uma bomba de verdade! E que os vidros por onde me espreitam e toda esta estrutura são à prova de explosões! Mas eu vou morrer aqui fechado! Tirem-me daqui, car****!!
- Ahahahah! E o gajo pensa mesmo que a bomba é verdadeira!
- Ó rapazito, preocupa-te com o que é mesmo importante e deixa de te armar em vítima…
- Buáááá! Vou morrer aqui!! E eu só queria a porcaria dum emprego!
- Este miúdo está a desiludir-me...
- Pois é, não está a dar o litro.
- Ó rapaz, trata lá de fazer umas coisas jeitosas…
- Sim, pá, tem lá alguma criatividade! Dá uns saltos, faz malabarismos, encena um teatro…
- Podes servir-te de qualquer um dos cadáveres ao canto…
- Sim, e podes brincar com as facas que tens aí à disposição…
- Tens tudo para brilhar, miúdo!
- TIREM-ME DAQ…

- Eh, pá… afinal aquela coisa explodiu mesmo…
- O puto tinha razão…
- Quem é que colocou lá a bomba verdadeira?
- Não sei… Talvez tenha sido a Solange da lavandaria.
- Despedimo-la?
- Não, deixa estar, quem é que nunca se esqueceu duma bomba em locais desapropriados?
- É verdade, deixa lá estar a Solange.
- E agora?
- Agora é limpar o sangue e preparar a redoma para o próximo inquilino.
- Quem será?
- Um tal de Hernâni, recém-licenciado numa universidade de ciências sociais…
- Boa, boa, esses gajos dão o cu por cinco tostões… e agora, o que nos falta ver antes das seis da tarde?
- Uma tal de Ilda, colocámos-lhe numa jaula com cinco beduínos esfomeados.
- Vamos a isso! Estou expectante; sempre gostei de animais!
- Aposto que ela não se aguenta nem dois minutos…
- Apostado!

quarta-feira, outubro 24, 2007

Surrealizar Por Aí

Portugal inteiro aguardava com expectativa por João Loureiro. A demissão do cargo máximo do Boavista foi um mero pretexto para uma conversa com a fleumática Ana Lourenço na SIC Notícias. O que todos nós, até a férrea Lourenço, queríamos saber, em jeito de quem não quer a coisa, de desdenhar e querer comprar, era se João Loureiro iria reformar os Ban. E ele, remetendo, enfim, o xadrez da avenida para segundo plano na fase final das suas justificações para a sua não continuidade enquanto presidente da colectividade, lá admitiu que sim, que seria possível, ele que até tem mantido encontros recentes com ex-membros da banda. O clímax fora atingido, no seu íntimo Ana Lourenço deve ter suspirado de alívio.
Com isto, Lourenço salvou a entrevista, acalmou Loureiro e dissipou as dúvidas que pairavam sobre a permanência de Loureiro em estúdio, temido que foi, por momentos, o remake da badalada dispersão de Santana perante a mesma Lourenço dos lábios pintados em tons muito escuros. E, mais importante que tudo isto, relançou a carreira dos Ban, ao não negar a especulação da sua reunião. Portugal estremeceu.
É compreensível este frenesim de sensações que invadiu os lares dos portugueses com televisão por cabo. É que, afinal, os Ban foram uma grande banda pop dos anos 80. E com isto, acabei de perder a consideração dos pouquíssimos pobres diabos que teimavam em acompanhar este blogue.
Talvez o que se reteve na mente das pessoas tenha sido o aspecto tremendamente yuppie de Loureiro, o filho do major, menino-bem do Norte com o curso de Direito, a abanar as ancas tapadas por umas calças subidas até à parte superior do tórax, acomodando a poupa proeminente ao sabor do vento, agarrado ao microfone debitando palavras elaboradas com a sua voz Ban(al). Além do mais, toda a banda partilhava os mesmos gostos de moda, o que incluía um baixo subido até ao pescoço ou as horríveis guitarras sem cabeça. Tudo bem, é de facto uma imagem cenicamente forte e inapelavelmente kitsch, mas não se esqueçam que estávamos nos anos 80 – e se criticamos os Ban pela imagem, certamente que temos de criticar todo o visual da maioria das bandas dessa época.
E é neste contexto visual aparvalhado da altura que os Ban devem ser inseridos. Estilisticamente não tão ousados como as bandas hair-metal ou os inenarráveis Flock of Seagulls, por exemplo, mas musicalmente enquadrados na vanguarda do som pop da altura. OK, especialmente em Portugal. O primeiro álbum da banda, “Surrealizar”, surgiu em 1988. Nesse ano já se antevia uma inflexão do paradigma musical: do lado de lá do atlântico, os Sonic Youth editaram “Daydream Nation”, um ambicioso álbum de noise-rock, os Pixies reuniram-se com Steve Albini para “Surfer Rosa”, um ano depois de “Come On Pilgrim”, e os então seminais Nirvana gravaram a sua primeira demo-tape em Seattle; no Reino Unido, mais contido na revolução, Manchester começava a dar cartas, com os Stone Roses. E por cá, a pop ainda vivia o seu período de fulgor. Depois, os Ban lançariam “Música Concreta”, em 1989, e deram por findas as suas actividades com “Mundo de Aventuras”, em 1991 – e aqui começava a morrer o admirável pop português, começando a cedência às guitarras mais rasgadas e às batidas mais roqueiras que davam cartas pelo mundo. O pop português vindouro, em termos genéricos, jamais conseguiu aproximar-se da magistralidade dos grandes momentos dos Ban e sempre pareceu mais forçado do que inspirado, de forma a receber o precioso tempo de antena.
Os Ban podem ter demorado a aparecer (pois já existiam desde 1983, então ainda sob o nome Bananas (!), praticando algo muito mais escuro e semelhante aos Joy Division – diz quem os ouviu nessa fase), mas apareceram em força. Havia uma espécie de guerra-fria com os conterrâneos GNR para saber qual deles ocuparia o trono da pop portuguesa. E se é certo que os GNR atingiram o reconhecimento mais cedo e durariam muito mais tempo (até hoje), os Ban quase sempre se revelaram mais acessíveis, sem nunca terem enchido Alvalade e sem serem tão provocatórios. Músicas orelhudas para passar na rádio era com eles. Nunca agradaram a facções mais radicais, mas estou certo que cativaram muitos adolescentes, pré-adolescentes e gente de idade mais adulta fascinada pela pop inócua, pela bolsa de Nova Iorque e fã do pezinho de dança com o copo de ginger ale na mão – sim, música yuppie, era isso que queria dizer. Era um estilo respeitável na época.
É deles A música pop portuguesa dos anos 80. “Irreal Social” é grande, com a sua batida seca, uns pingos de saxofone, uma guitarra à la The Edge, o dueto formidável de João Loureiro e Ana Deus e a letra memorável. Ainda comparando com os GNR, se estes tiveram letras lapidares como “ser mãe é a aspiração natural de todo o homem moderno”, “faz-me impressão o trabalho, a inércia faz-me mal”, “era só para brincar ao cinema negro, os corpos no lago eram de gente no desemprego” ou toda a letra de “Ana Lee”, os Ban respondiam com frases curtas como “dá-me um ideal, um imaginário”, “não me dês moral” e o soberbo “surrealizar por aí” – simplesmente delicioso. “Irreal Social” foi o expoente máximo conhecido de rebeldia do menino João Loureiro e é uma música que deve perpassar gerações e ser imortalizada. Se há algo de positivo na pop dos anos oitenta, “Irreal Social” é o exemplo acabado. Sem reservas.

Mas não se pense que os Ban foram “one-hit-wonders”. Não; aliás, uma audição do seu “best-of” (“Num Filme Sempre Pop”, 1994) revela mais gemas pop às quais o tempo não atribuiu a merecida relevância. Descontando “Mundo de Aventuras”, a canção homónima do álbum que foi o último assomo criativo da banda, tendo inclusivamente feito parte do alinhamento daquelas compilações “Nº1” que saíam no final de cada ano sob o patrocínio do Fido da Seven-Up e que talvez tenha tido algum destaque (no clip, Loureiro na fase George Michael pós-Faith exibe a barba por fazer, os óculos escuros e o troco nu), algumas outras geniais criações ficaram apenas na memória de poucos. Cito as mais imperdíveis: “Dias Atlânticos”, uma balada doce do fim de uma tarde de Verão (“revisitei mais desenhos animados”, outra frase forte); “Rosa, Flor”, que bem podia ter tido mais tempo de antena na rádio com o seu je-ne-sais-quois de Smiths; “Excesso, Aqui”, outra vez a vírgula no título duma faixa mais sombria e erótica (uau!), bem apimentada por teclados ambientais e ritmo afunkalhado; “Suave”, tal como o nome indica, com Loureiro sibilando as palavras com o apoio do “uuuuh-uuuh” de Ana Deus; “Pá-Rá-Rá”, título visionário para a canção “Hmmm-mmmm-mmmm” dos Crash Test Dummies, música igualmente saturada de pop por todo o lado, com harmónica e tudo; e “Num Filme Sempre POP”, o épico, se assim podemos dizer, dos Ban, que encerra o “best-of” e sintetiza o espírito da banda. Uma mão-cheia de grande música pop.
Sobre a eventual reforma dos Ban, tenho sentimentos contraditórios a exprimir: se, por um lado, é perfeitamente legítimo que João Loureiro queira regressar para tentar dar aos Ban a importância histórica que eles merecem realmente ter no plano da música pop portuguesa (e cantada em português), por outro lado o mundo em que os Ban cresceram é hoje uma imagem distante, uma fotografia amarelecida pelo tempo e que levanta risota aos descontextualizados. Seria, a meu ver, trágico que João Loureiro se lançasse na gravação de um novo álbum e estragasse o que de bom fez no passado – quer fazendo música dos anos 80 vinte anos depois, quer adaptando os Ban à cartilha do século XXI, sendo qualquer uma das hipóteses francamente sofríveis. Aliás, talvez até seja provável que Loureiro não consiga reunir toda a banda – e Ana Deus também seria insubstituível (nota: Ana Deus, que posteriormente integrou os Três Tristes Tigres com Alexandre Soares, ex-GNR do tempo de “Dunas”, ou como o panorama musical português se resume a meia dúzia de personalidades e bandas com formações muito promíscuas).
Para mim, o veredicto certo será Loureiro reunir a banda para uma digressão de celebração da sua música, deliciosa para os nostálgicos, e lançar um álbum ao vivo. E se ele quiser continuar na música com novos sons, que não toque nos Ban – lembro que ele também integrou os Zero e estes também tiveram um excelente single, “Tudo ou Nada” (nota: dos Zero fazia parte… Alexandre Soares).
Enquanto Jaime Pacheco vai aguentando aquela manta de retalhos que é a equipa do Boavista e João Loureiro, o filho do major, pergunta aos filhos se deverá escolher regressar à advocacia activa ou aos palcos (sendo que a recandidatura parece estar definitivamente afastada), surrealizemos por aí.

«(acabamos) por motivos diversos. Uns elementos tinham outras opções de vida e, talvez, algum cansaço. Depois de os "Ban" terem acabado, lancei o disco dos "Zero". Entretanto saiu uma colectânea dos "Ban" e fizemos ainda uma digressão final que serviu para colocar uma pedra final no agrupamento. Por outro lado, na música, como em tudo na vida, é necessário saber parar. Eu prefiro que os "Ban" sejam vistos, e o próprios "Zero", como marcos fundamentais na música moderna portuguesa e serem relembrado com saudade, do que se continuar a fazer coisas sem prazer, com resultados piores.» João Loureiro, http://anos80.no.sapo.pt/ban.htm

segunda-feira, outubro 22, 2007

Arte & Ofício

Estou tão cheio de tudo. Algumas coisas não enchem. Muitas esvaziam-se. Vogamos em semi-vácuos de consciência em direcção ao nádir absoluto.
Noto que este mundo é constituído pelo somatório de almas que ambicionam tudo… mas conseguem nada. E tudo o que falha a forma não tem conteúdo que lhe salve. Não há espaço para des-modas na estação da moda. Sentem-te como diferente e sugam-te a individualidade para um mega conjunto oco e uno – eis como te assimilam. De um passas para zero e daí nunca sairás.
Acheguem-me as lembranças de tempos em que nunca fui. Façam-me relatórios dos tempos que nunca serei. Assino por baixo. Reafirmo a inutilidade do hoje. Observo a exponenciação de apelos num mundo vão à cata da logaritmização do código universal.
É melhor que acredites em mim. Juntos bocejaremos melhor do que isolados. Citaremos autores desconhecidos como se fossem nossos pais. Faremos boa figura. Seremos um mais um igual a dois e esquecer-nos-emos dos grandes algarismos. Deixaremos de ser dígitos não reconhecidos. Refugiar-nos-emos no nosso próprio mundo. Na nossa arte incógnita. Nos nossos devaneios experimentais. Um universo alternativo do actual.
Que é um universo nulo. Infinitamente zero. Imensamente nada.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Eu Gosto do Sorriso do Meu Coveiro

Acho imensa graça ao maroto. O tipo é um bem-disposto, risonho, uma excelente companhia, pelo que me é dado a entender. Parece-se com um actor. Se calhar até é. Dizem-me que todos os tipos do crédito imediato são maus; com efeito, chegaram-me aos ouvidos relatos pouco recomendáveis dos feitos de tais personagens, gente que passou momentos de intensa aflição à conta deles, por neles ter confiado; gente que penhorou haveres e projectos futuros por não ter sabido controlar a sua ganância. O Sr. G., um chato de primeira, desencorajou-me fortemente a não cair na cantiga. Eu julgo que ele terá inveja de mim e que ele é um grande ingénuo. Mas eu não acredito ser assim. Cá para mim, só me dizem isso que é para eu não ficar tão bem como eles. Eu já os topei, sou mais esperto do que eles pensam.
Então o tipo diz-me: “quer pagar rápido ou devagar?”. Vejam bem a fineza. A elegância. A solicitude. Na maior parte dos bancos, eu pago e calo com as trombudas e rígidas prestações que não escolhem outro momento que não aquele que foi pré-definido, seja ele dia santo ou não. Aqui, não. Além do mais, posso escolher pedir até sabe-se lá quantos mil euros. De uma só vez. Espectacular. O tipo ainda se despede com um “do que é que está à espera para concretizar todos os sonhos da sua vida”?
É verdade que até tenho sonhos. Molhados e secos; leia-se, uma grande viagem com praia e sem praia. Mas isso fica para mais tarde. Nenhum dos meus sonhos é demasiado grande. Ao contrário de muita gente, eu sei controlar-me. Se tivesse de desenhar os meus sonhos num alvo de parede, nunca arriscaria colocá-los no centro, na confluência das grandes ambições, mas sim na periferia, na zona mais acessível e na qual se ganham uns pontinhos que, bem amealhados, fazem uma boa figura. Não tenho capacidade de ser crocodilo, sei disso; mas, se me alimentar criteriosamente, poderei ser uma lagartixa ainda maior.
Por isso, quero um telemóvel melhor que o do Sr. A.; um LCD maior que o da Sra. B.; um computador, mais impressora, ecrã, câmara, colunas e scanner para o miúdo não se queixar que não lhe dou nada e que o filho do Sr. C. é que tem tudo à maneira; preparar o casamento da miúda, pois ela sempre sonhou com isso, todas as suas amigas se casam e, embora o meu futuro genro seja um parvo, ela merece um casamento bombástico; umas roupas novas para a patroa não amuar e para ela possibilitar-me sexo casual com regularidade; umas jóias para a sogra não me aborrecer mais com as suas lengalengas; mobiliário de sala novinho em folha, que o Sr. D. já fez isso e a sala deles ficou um mimo, sendo que os meus móveis já têm todos mais que cinco anos; já agora, aproveito e pinto a casa toda de novo, pois o meu vizinho, o Sr. E., também já fez o mesmo e insiste para que façamos o mesmo. Isto e alguma coisa mais que por agora não me lembro.
São coisinhas pequenas, como se vê. Não peço carros, nem casas, nem mesmo viagens. Só estas pequenas mordomias chegam para me fazer feliz. Não há-de ser nada. Lá pela patroa receber o salário mínimo e eu pouco mais que isso, não significa que não possamos ser felizes como todos os outros. O Sr. F., meu grande amigo, diz que está tudo bem com ele – ele só precisou dum telefonema e teve logo dinheiro fresco para comprar uma máquina de café, daquelas todas modernas. Ou lá o que era. Gaba-se muito das suas aquisições e necessito de ter algo para lhe responder à altura. Já o Sr.G. diz-me para não me meter nessas cavalgadas, mas eu nunca gostei muito dele. O Sr. G. vive num prédio asqueroso e tem mau aspecto, raramente é simpático, por isso não nunca me fio por ele.
Depois, olho para as taxas: na ordem dos 20 e 30 por cento. Bastante razoáveis. Eu não percebo muito de números, era tão sofrível a matemática que escolhi ir para línguas e mesmo assim não aprendi a falar francês convenientemente. E não acabei o 11º ano. Mas, vamos lá ver, 70 ou 80 por cento é que é um número alto, não é? 20 e 30 por cento parece-me muito simpático. Então peço o máximo. Disseram-me “com certeza, Sr. Firmino!”, e eu tenho quase a certeza que era o Fernando Mendes a falar. O tipo d’ “O Preço Certo em Euros”. Euros é com ele. Ele até parece um mealheiro. Um tipo porreiro, nada pode correr mal.
Já tenho o dinheiro comigo. É muito dinheiro, mais do que eu e a patroa ganhamos em 3 ou 4 meses. O miúdo está deslumbrado. A miúda já escolhe vestidos de noiva por catálogo e quintas deslumbrantes para o copo-de-água. A patroa em estado de euforia. Até a sogra não reclamou. É dinheiro rápido, é dinheiro fácil, adoro esta sociedade de consumo. Vou poder ser como os outros colegas. Vou ser feliz. E vou poder exibir todo o meu estatuto diante desse Sr. G., que é para ele calar-se duma vez com essa história do “coveiro”.
Que ideia. O tipo do crédito é uma jóia de pessoa. E agora vou estourar o dinheirinho, esfregar as mãos em novas mercadorias. Quando tiver de pagar tudo de volta já serei uma pessoa mais feliz. Afinal, o que é que pode correr mal a este humilde endividado?

quarta-feira, outubro 03, 2007

Como Se Pintam as Unhas dos Pés

- Viste o vestido dela?
Vânia contempla a sua ternurenta patinha tamanho 36 após uma demão do novel verniz dum conceituado laboratório francês.
- Horroroso.
Gracinda saboreia a acidez do adjectivo. Deixa que a qualificação negativa percorra lentamente todos os extremos nervosos do seu cérebro, sem escapar nenhum. Assim sabe melhor. Qual escanção do escárnio, há que saber apreciar a forma de diminuir terceiras ausentes. E este “horroroso” é das melhores castas. Como é delicioso conspirar.
- Deplorável.
- Ela tem um gosto terrível. Sempre teve.
- Só mesmo ela para comprar aquele traste!...
- Parecia uma matrona da feira.
Ainda mal refeita da anterior injecção onanística de maldizer, Gracinda explode numa gargalhada tão forçada quanto breve e sonora.
- AHAHAHAH!!! E que matrona!!! Será que não tem espelhos em casa, a tipa?
Assim mesmo, que é para todos saberem o quão Gracinda desgosta da outra. É sensacional arranjar aliadas que partilhem as mesmas mini-guerrilhas pessoais. O cheiro do verniz abafava-se por sopros na direcção das unhas, agora num tom carmim forte. Vânia tinha outros alvos, contudo.
- Mas olha que o cabelo da prima dela…
- Ui! Sabes que ela anda zangada com o Marcelo?
As unhas ficaram arredadas de atenção. Vânia arrebitou as sobrancelhas. A intriga que se avizinhava bem que exigia toda a sua concentração. Para que se querem as amigas? Para dizer mal das outras. As outras dirão mal dela. E ela, no centro desta teia de bisbilhotice, ocupa o lugar central, fazendo sempre o melhor do melhor. É tudo um jogo recíproco de troca de galhardetes. Se é segredo, há que divulgar. O que é evidente simplesmente não interessa. Considerem-se num mercado de informações pessoais onde a frontalidade não é, de forma alguma, valorizada. Onde a fachada é muito iluminada mas o interior está cheio de cuspo e vísceras prontas a rebentar. O breu da alma vai emergindo por sobre o matiz do verniz.
- Não me digas…
- A sério. O Marcelo já não pode com ela. Noutro dia, passei por eles no Shopping…
- O Shopping W, não?
- Claro, só vou a esse. Os outros são detestáveis.
- Simplesmente pavorosos, filha. De fugir. Eu faço como tu.
Não que Vânia não soubesse que Marcelo já andava chateado há muito com a prima da outra. Nada disso. Mas podia acontecer que Gracinda soubesse qualquer coisa mais. Não que Vânia não soubesse que todas as suas amigas iam ao Shopping W. Não. Havia que dar uma colher de chá à amiga de circunstância, uma pequena achega de proximidade para que ela se sentisse plenamente confiante para contar mesmo tudo.
- Mas ia eu a dizer, noutro dia passei por eles no Shopping… e o Marcelo estava cá com umas trombas… Ela estava muito nervosa quase a gritar com ele… a sério, só mesmo aquele panhonha do Marcelo para aguentá-la com todo aquele mau feitio…
- Bem, ela tem um feitiozinho… vai lá vai… tanto ela como a irmã, a gorda das camisolas largas… que par de amostras…
- Ouvi dizer que o Marcelo já deu umas facadinhas por fora…
Gracinda sabia mais do que apenas “ter ouvido dizer”. Sabia que Vânia tinha estado com Marcelo, tinha sido a própria cunhada do Marcelo, a irmã gorda da prima da outra, a revelar-lhe – jurou que viu Marcelo a sair do prédio dela. E as gordas não mentem. Vânia tinha sido muito permissiva numa casualidade quotidiana – deixara que Marcelo carregasse as suas compras até casa, após deixar cair o saco das conservas mesmo aos pés dele. Deixou que ele entrasse. Depois fechou a porta. Alguma coisa se passara, o ar de Marcelo transformou-se a partir daquele momento. Gracinda sabia que Vânia iria acusar o remoque. Já com o pé esquerdo pintado e quase seco, Gracinda fecha o frasco do verniz e lança um olhar penetrante para Vânia, que se debate com o 3º dedo do pé direito.
- Bem capaz disso é ele!
Gracinda sorri de forma amarela. Vânia não se descoseu. Mas a forma como ela não levantou os olhos do seu pé e como percorreu o pincel do verniz recorrentemente sobre a mesma unha, aplicando-lhe sobrecamadas desnecessárias, esclareceu implicitamente Gracinda. O tom ríspido da resposta, o desinteresse fictício e teatral de Vânia também ajudou. E a Gracinda bastavam-lhe estas pequenas sensações, ligeiras pistas, discretos detalhes, para confirmar as suas suspeitas. Todos os detectives deviam ser mulheres. Gracinda insistiu, num sádico prazer que afligia Vânia, desesperada por não ter mais que cinco dedos por pé aos quais se dedicar:
- Ele está muito bem conservado para a idade, trata-se bem… e dizem que tem muito dinheiro…
- Dizem que sim… Passas-me os algodões?
Vânia não estava a gostar do rumo das coisas. Pressentia que Gracinda sabia algo e que a iria espremer para revelar coisas proibidas. Quem lhe mandou falar na prima da outra? Era dessa personagem que Vânia queria saber coisas, de forma a acicatar Marcelo numa eventualidade futura. Do Marcelo sabia ela bem. Erro primário número um: nunca se refere directamente aquilo que se quer, deixamos que as outras suponham. Mas Gracinda não queria afastar-se de Vânia, podia ser-lhe útil no futuro. Vânia não seria uma amiga a 100%, mas como inimiga é que não. Havia que inflectir a direcção da conversa e deixar os seus prazeres inquisitórios para outra ocasião.
- Toma lá… os algodões estão caros, não achas?
- Caros é a favor! Estão caríssimos!
- Tens mais alguns que me possas emprestar?
- Estás com sorte porque apanhei umas dúzias em promoção.
- Fantástico!
- Está tudo tão caro hoje em dia…
- Se está… com 100 euros já não consigo ir ao cabeleireiro e depilação e depois passar pelo Shopping W e comprar uma mala decente… custa tudo os olhos da cara!
- Eu comprei estes sapatos abertos anteontem. Combinam mesmo bem com a cor do verniz.
- Ai, que sapatos lindos! São tão giiiiiiiiiiiiros!!!
- Obrigada!
Estava tudo bem. Os sapatos são muito feios e não valem nem metade do seu exorbitante valor. Não há crise, apesar dos preços altos dos mecanismos cosméticos a que usualmente recorrem, porque os cartões de crédito continuam com plafonds aceitáveis. Para que servem os homens, afinal? Esses parvos podem achar que são imprescindíveis e insubstituíveis, mas no fundo são um mero troféu social da mulher. Da verdadeira Mulher Moderna. Com M’s maiúsculos.
E nada melhor que uma discussão sobre preços e moda para desviar as atenções.
Depois disto, um desconfortável silêncio. Os pés estavam finalmente pintados. As unhas dos pés pintam-se por vaidade, numa primeira fase; e por necessidade, numa segunda fase, onde não ter as unhas pintadas significa estar fora de moda. Pintam-se com cores fortes, que as cores fracas são da moda passada. Pintam-se com o instinto, em pinceladas mais ou menos rápidas, enquanto pela cabeça percorrem pensamentos e críticas várias a outras mulheres. Para fora, contudo, transparece uma imagem de harmonia e normalidade. Tudo é demasiadamente bom, nada é definitivamente mau. Porém, a realidade é quase sempre contrária. Segundo Gracinda e Vânia:
- Estão adoráveis!
- Adoro a tua cor.
- A tua também é espectacular.
Mas faltavam mais palavras. Gracinda aguardava ainda por uma cedência de Vânia. Vânia palpitava com um mistério que ansiava revelar, mesmo sabendo que não devia. A tentação provou-se irresistível.
- Admito, dormi com o Marcelo.
- Ahh! Não acredito!
Não havia surpresa. Antes uma satisfação camuflada, um palpite intimamente confirmado. Gracinda rejubilou com a sua vitória. Ansiava pela descrição que Vânia não podia recusar oferecer.
- Foi muito fácil. Ele estava a desejar outra mulher. Notava-se isso de longe. Foi só encostar-lhe a mão ao peito.
- E foi mesmo…
- Até ao fim.
- Até ao fim?
- Fizemos tudo.
- Tudo? Tudo mesmo?
- Não… Apenas tudo daquilo que é normal, evidentemente.
- E onde…
- No sofá da sala. Logo ali.
- E como…
- Fomos rápidos e disfarcei bem. O Marcelo adorou. O meu marido não deu por nada.
- Ahhh…
- Prometes que não contas isto a ninguém?
- É claro que sim. Nem precisavas de dizer… Sortuda!
Vânia sabia que o seu segredo estaria a salvo por pouco tempo, talvez o tempo suficiente para arranjar um contra-segredo de Gracinda ou para arranjar um álibi esclarecedor. Mas tinha recrudescido a sua fama de “femme fatale”, alargado a sua aura de “men eater” a níveis nunca dantes vistos – o ganho de prestígio instantâneo e de inveja dissimulada das outras mulheres amparava a aparente fraqueza de ter revelado algo de sigiloso da sua vida. Gracinda, por seu turno, tinha obtido um trunfo que poderia ser-lhe vital de futuro, pese embora a sua raiva interior por ter sido Vânia a felizarda e não ela mesmo, que emagrecera 2 quilos nos últimos meses e julgava-se mais apetecível do que nunca. Para além disso, muito importante, tinha agora um tema de conversa que iria despertar atenções nos cochichos surdos dos salões de beleza.
Novamente, um silêncio incómodo povoou o espaço destas pedicuras amadoras. Tinha sido proveitosa a sessão. Um segredo contado, um segredo sabido, eis como todas as partes ganham no eterno dilema do prisioneiro feminino. Além do mais, os pés pareciam óptimos, como que rejuvenescidos.
- E que me dizes da viagem da Verónica às Seychelles?
- Uma pindérica, essa mulher. Pediu crédito rápido para pagar a viagem. Não tem onde cair morta.
- E o marido dela?
- Um falido. Perdeu tudo num negócio de restauração.
- E o que eles percebem disso?
- Nada. Toda a gente faz de conta que percebe… e depois há alguns que se lixam.
- Detesto gente que se faz passar por aquilo que não é.
- Eu também. Hipocrisia não rima com a minha personalidade.
- Nem com a minha.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Ensaiando o Hino Sem Ensaiar o Ensaio

Eu só estava à espera da derrota final da selecção de râguebi para poder atirar-me a ela, qual placagem ao clímax instalado. Neste texto tenho de reconhecer que estou afectado pelo Síndrome Rui Santos – Luís Sobral, ou seja, vou aproveitar-me da melhor altura para desancar em qualquer coisa. Quando as coisas estão más, é o bota-abaixo desenfreado e sem pudor. Oportunismo puro, portanto. Mas como não sou um poço de virtudes, não me sinto constrangido. De forma alguma.
Bem, mas o facto é que a selecção de râguebi nem sequer está em baixo. Moralmente, refira-se, a avaliar pela campanha de “palmadinha nas costas daqueles que perdem por muitos”. Nunca vi tanta empresa a colar-se a um grupo de perdedores… que o são, em termos objectivos.
O meu blá-blá-blá pretende não tanto atingir a equipa em si, que lá deve ter feito o seu melhor, mas sim esta Comunidade, que se comoveu de forma inusitada perante uma modalidade quase incógnita, num registo com laivos sociológicos deveras interessantes.
A questão é esta: o que lhes sobra em moral escasseia, e de que forma, em vitórias.
Indo directamente ao assunto: por que raio hei-de sentir-me orgulhoso por aquela canalha de advogados, engenheiros e doutores brutos e aos gritos que leva cabazadas das equipas “a sério”? Por que razão hei-de curvar-me perante o seu proclamado patriotismo ilustrado através dum hino gritado ao jeito dum ataque epiléptico colectivo e, no mínimo, risível? Por que razão o amadorismo deve ser louvado como se o profissionalismo fosse uma coisa má que deve ser combatido sob o pretexto da superioridade dos pobrezinhos?
Tentando ser pragmático e por partes: a história do hino é a mais pitoresca delas todas. O que toda a gente parece não compreender é que o patriotismo não se esgota em eventos desportivos. Quero deixar isto claro: NÃO É POR GRITAREM MAIS ALTO QUE OS OUTROS COMPATRIOTAS QUE ESTES GAJOS SÃO MAIS PATRIOTAS. NÃO É POR FAZEREM PARTE DUMA SELECÇÃO NACIONAL QUE OS VOU IDOLATRAR COMO REPRESENTANTES MÁXIMOS DA NAÇÃO. Estes gajos, que são, na sua maioria, da alta sociedade, até podem roubar no dia-a-dia, emitir facturas falsas, receber ou entregar dinheiro por baixo da mesa, cuspir e deitar lixo para o chão, pôr fogo na floresta, violar criancinhas e fazer compras sistematicamente no Corte Inglés. MAS DESDE QUE CANTEM O HINO DE FORMA HISTRIÓNICA, AH!, ENTÃO ESTÁ TUDO BEM. Fartei-me de rir das suas expressões mongolescas, gritando desafinadamente como se não houvesse amanhã. Patético.
O hino é apenas um símbolo. O verdadeiro patriotismo vê-se no dia-a-dia, com atitudes reais e não através de momentos simbólicos. No fundo, foi o regresso da bandeira exposta na varanda, outro assomo ridículo de pseudo-nacionalismo. Nada disto me espanta, contudo. Portugal começa a habituar-se, de forma assustadora, a estes ensejos perfeitamente fúteis e a empolá-los como se fossem orgasmos épicos de portugalidade. As selecções nacionais são por onde se afunilam as únicas expressões de nacionalismo possível. É só andar numa estrada portuguesa e ver por onde anda este espírito de união no quotidiano: escondido junto do cachecol à espera do próximo jogo.
E isto, a meu ver, é muito triste para um país. Mas só para mim; o resto do mundo deliciou-se com o circo do hino aos gritos e, regra geral, lembra-se que pertence ao mesmo país que o vizinho apenas e só quando há um evento desportivo a decorrer.
Outra parte tem a ver com o amadorismo. SÃO AMADORES, AZAR; PERDERAM COMO DEVIAM. De vitórias morais estou eu farto. O Sporting, na altura do Bobby Robson e Carlos Queirós, fartava-se de jogar à bola. Ganhou somente uma Taça de Portugal. Desde essa altura que as vitórias morais não me dizem nada. Porém, o espírito olímpico, o “o que interessa não é ganhar, é competir”, algo em completo desuso em todos os planos da sociedade actual, parece ter ganho novo corpo recentemente: “Ah, mas valeu a pena o esforço”. Acham que sim, barões de Coubertin dissimulados? Objectivos de “perder por poucos”, “levar menos de cem pontos”, “conseguir um ensaio”, “ver se um neozelandês não nos parte os ossos” não me parecem um grande exemplo para a sociedade civil. Experimentem esta transposição para a vida real: “vou para o emprego para ver se saio às cinco e não faço nada”, “estuda apenas para ter um 10”, “acerta apenas três no Totoloto, que seis é demais”, “fica aí no teu cantinho e não digas nada, a ver se te safas”, etc.. O facto de serem amadores não pode servir automaticamente para o discurso do “coitadinho português”, ai tão fraquinho que ele é, ai que pena que nós temos, ai que Nossa Senhora nos acuda… se era para perder todos os jogos e se tinham consciência de tal, fariam melhor se tivessem dito logo após o apuramento ter sido obtido: “Muito bem, fizemos a nossa parte, agora entregamos o nosso direito a quem provar conseguir fazer melhor figura”. Para mim, não foi uma vergonha eles terem perdido, já que selecções nacionais contam pouco para o meu bem-estar e, bem vistas as coisas, toda a gente esperava que perdessem. Mas não considero edificante perderem por largas dezenas de pontos.
Vide a selecção de basquetebol: igualmente “underdogs”, com poucas hipóteses de ganhar qualquer jogo. Ganharam dois. Não fiquei eufórico, longe disso, mas não será este um melhor exemplo do “fazer das fraquezas força”? Não, porque não havia lá amadores Oreys e Uvas e argentinos nacionalizados a assassinar o hino, a meu ver. Vi muito pouco destaque a esta selecção em relação ao que foi dado à de râguebi.
Em resumo, esta selecção de râguebi tem tudo de mau: começando pela qualidade de jogo (seremos os menos maus dos piores e isso para mim não é boa notícia, seja no desporto ou em qualquer outra actividade) e acabando na desculpabilização dos coitadinhos (tipo “vejam o nosso orgulho em ser carne para canhão”), passando pelos resultados humilhantes, do género daqueles que nós aplicávamos aos outros em hóquei em patins.
Por falar nisso, recordem-se lá se sentimos alguma pena ou respeito quando trucidávamos o adversário no hóquei… é que a ideia que transparece do râguebi é a de que todos os outros nos respeitam massivamente por termos perdido por muitos. Será o râguebi um desporto de gente assim tão digna e desportiva? Pode ser. Mas duvido que nos tomem assim tão em conta. É mais uma palmadinha nas costas.
Depois falam-me no futebol. Ridículo. Quer queiram, quer não, é a ÚNICA selecção capaz de ombrear com as melhores (pronto, no hóquei talvez ainda consigamos ficar nos 5 primeiros). São mimados? Não cantam o hino? Andam à batatada fora de campo? Seja. Mas fazem a vida negra às potências mundiais do sector. Conseguiram lugares de destaque, de prestígio internacional, nas suas últimas representações. Isto é que me é relevante: que nós consigamos estar num plano de destaque colectivo pelo nosso valor REAL e não pelo suposto valor MORAL. São profissionais, obscenamente pagos, embora continuem a ser meros humanos, e depois? Quem não queria sê-lo? Têm inveja? É crime ser-se profissional e cometer erros? O medo é cometer erros, então sejamos amadores para nos perdoarem tudo? Poupem-me. Elevem-me os vossos padrões de exigência, por favor.
Agora, lá para os lados de Cascais, um grupo de rapazes encorpados e mal-encarados dá largas ao seu nacionalismo ufano ao som do primeiro álbum dos Heróis do Mar, desafinando enquanto brada cânticos heróicos. Mas não descobriram nenhum caminho marítimo nem nada que chegue perto da glória. São adorados. Em Manchester, Ronaldo rapa o peito e coloca um creme da cara enquanto pisca o olho a mais uma orgia. Deplorável. Vence jogos, contudo.
Fiquem com a vossa derrota memorável; eu fico com a minha vitória esquecível. Digam-me depois é se se sentem tão bem quando perdem “de cabeça erguida” nos pequenos despiques da vossa vida diária. Eu sei bem que eu não.