domingo, março 16, 2008

Estou Feliz... Já Não Estou

Querido diário:
Hoje estou muito, mas muito feliz!
Estou mesmo muito feliz!
Acabei de receber o animal de estimação que tanto pedi!
Entrou um pombo esfomeado e perdido pela minha janela!
Adoptei-o logo!
Como estou feliz!
Meti um cobertor por cima dele para que não fugisse!
E ainda o aquecia!
Mas ele não parava quieto...
E então, dei-lhe com duas felizes pauladas com o cabo da vassoura!
E ele lá se acalmou!
Ai, que felicidade!, um pombinho só para mim!
Bem, já não o vejo desde ontem...
Deixei-o lá ficar, tapadinho…
Vou lá ver como ele está...

Afinal, já não estou feliz.
O pombo não prestava.
Bolas.
Vejam lá como ele ficou.
Bah.
Deitei-o para o lixo, para junto da fruta podre e dos pacotes de leite.
Ainda não existem Ecopontos para aves mortas (pode ser o Ecoponto laranja?) – se calhar, porque não arranjaram miúdos para fazer o anúncio.
É pena e ainda fico menos feliz por isso.
Vou seguir o conselho do meu veterinário.
Amanhã vou comprar uma andorinha de porcelana, daquelas que se espetam na parede.
Não se mexe muito nem faz barulho.
Mas pelo menos não suja tanto, querido diário.

quarta-feira, março 05, 2008

O Passo Em Frente No Abismo

- Vou-me atirar. Eu vou-me atirar! – sentenciou Osvaldo, entre dentes, com olhos alucinados e lábios secos.
- Não faças isso! – implorou Estêvão. Estêvão era um grande amigo de Osvaldo. Conhecidos desde longa data, relação cimentada por anos e anos de turmas escolares em comum, peripécias nocturnas conjugadas na primeira pessoa do plural, medos, esperanças e convicções partilhadas em conjunto durante os largos anos da adolescência.
Tinham sido décadas de adolescência. Um ano da adolescência equivaleu a três ou quatro dos que se seguiram. Os dias tinham muito mais de 24 horas, os números não eram apenas números, eram vivências com faces que deixavam marcas. Numa semana as coisas mudavam radicalmente, não havia a sensação de estar tudo na mesma, a loucura da revolução sublinhava cada gesto, cada atitude. Foi uma espécie de tropa para a vida. E, como na tropa, fazem-se amigos que podem durar uma vida inteira. Osvaldo já era mais que um irmão para Estêvão, o irmão que nunca teve. Osvaldo era uma parte decalcada de si, tinham sido formados nos mesmos moldes, mentes unas de corpos umbilicalmente separados. A Estêvão custava-lhe muito ver Osvaldo naquela situação de desespero, naquele “ninguém me agarre!” em direcção à desgraça anunciada. Era como se parte de si estivesse ali igualmente exposta à vergonha, como se uma quota-parte significativa do sofrimento tivesse sido transferida para si próprio. Estêvão insistiu, quase em pranto:
- Isso não vai dar em nada, Osvaldo! Olha lá bem para ti, estás bêbado!
- Deixa-me! Eu vou-me atirar mesmo! Agora é que é! – contrapôs Osvaldo, resoluto na sua embriaguez.
- Deixa-o ir – soltou Matias, mais afastado, num quase-suspiro de conformação.
- Cala-te, pá! Ele não está em condições! Ajuda-me para ele não se atirar! – lutou Estêvão.
- Caga nisso. É deixá-lo ir – reafirmou Matias, impassível, sorvendo o whisky do copo com estilo, uma expressão de detective desalinhado das grandes séries de acção estampada com orgulho na cara.
Matias não seria o melhor dos amigos, nem de Osvaldo, nem de Estêvão. Mas era conhecido nos círculos mais chegados como “um gajo porreiro”. Um tipo que está genericamente bem com todos, mal com nenhum. Não deviam esperar grandes coisas de Matias, ele nunca foi particularmente generoso nem proactivo, mas também não esperassem grandes desfeitas dele, não era costume dar o dito por não dito, falar sem agir. E era um tipo com piada, bons conhecimentos, bem relacionado, um trunfo para a vida social. Matias não construíra um edifício sólido de amizades nem se impressionara com a turbulência da puberdade, surfara através dela com uma calma gigante, auxiliado pelas grandes quantidades de álcool e drogas que absorvera em incontáveis concertos rock, as inúmeras deflorações que participara e um espírito niilista militante. Estava com Osvaldo e Estêvão porque calhara, porque não havia mais nada para fazer, porque Osvaldo tinha um carro de alta cilindrada, porque Estêvão pagava copos, porque amanhã era apenas amanhã e hoje havia que aproveitar o bom que a noite tem.
Matias estaria também inquinado em termos etílicos, mas ninguém nunca o poderia afirmar com certeza absoluta. O certo é que, para ele, a angústia de Osvaldo era um espectáculo menor no grande show que era a sua própria vida, sempre levada ao extremo. E o drama de Estêvão era ainda mais irrelevante.
- Ó Osvaldo, não ligues ao gajo, hã? Ouve o que eu te digo: tu vais-te arrepender! Isso não é uma boa ideia! – suplicou Estêvão, agarrado ao amigo.
- Larga-me, Estêvão! LARGA-ME, CAR***O! ESTOU FARTO QUE ME PRENDAS! DECIDI, ESTÁ DECIDIDO: VOU-ME ATIRAR! JÁ!!!! – desabafou Osvaldo. Matias sorria com cinismo.
Osvaldo fartava-se rapidamente de Estêvão quando estava com os copos. Tudo bem, melhor amigo que Estêvão não podia haver: um tipo preocupado, atencioso, companheiro de risos e sempre presente nas desventuras, fiel que nem um cão. Mas isso fartava Osvaldo, que via com bons olhos a desenvoltura de Matias, a sua postura rebelde, o “quero lá saber”, o “iá” desleixado com que atendia qualquer ordem, a piada sarcástica disparada com o timing certo, o seu comportamento destemido. Matias libertava o animal que Osvaldo tinha, Estêvão era o domesticador do seu animal, sempre assegurando que ele não saía da jaula para seu próprio bem. E Estêvão fora muito importante durante muito tempo, mas Osvaldo queria mais, ansiava muito por igualar os feitos de Matias, não podia parar, para mais estando muito bem ensopado em bebida. Com a bebida exaltam-se as verdades, assumem-se riscos.
- Tu não estás a ver bem… tu vais-te matar, pá… – ainda tentou Estêvão. Mas Osvaldo não queria saber.
- JÁ, CAR***O!! AHHH!! – e Osvaldo lá foi. Matias observou com curiosidade. Estêvão resignou-se.
Atirou-se. Ao comprido.
A tipa já tinha olhado uma ou outra vez. Era a Irene, mulher com feitio difícil, abrupta, embora voluptuosa. Semeara uma fama de irascível incorrigível, trucidara homens simplesmente com o olhar, era o fruto proibido definitivo, um desafio à altura dos melhores engatatões de qualquer praça. Irene olhara com alguma repulsa para a figura de Osvaldo, rosnara no seu íntimo como um cão de guarda atrás da cerca perante o intruso que se avizinha. Mas Osvaldo convencera-se que não, que seria um convite dissimulado para uma noite de fausto sexual. Estêvão pressentira que o olhar de Irene não era de desejo e daí a sua cautela. Irene poderia perfeitamente sancionar publicamente alguma atitude atrevida q.b. de Osvaldo, já não seria a primeira vez e não teria pejo nenhum em repeti-lo. E Osvaldo ia com ela fisgada, tropeçando no seu próprio bafo a álcool. Matias também sabia que Irene não apreciava estes avanços, por experiência própria. Só que ele estava a desejar umas boas risadas, sabendo de antemão que Osvaldo não possuía o savoir-faire dos grandes galãs e que se iria espalhar ao comprido.
Mas Osvaldo atirou-se. Mesmo a sério.
Chegou-se ao pé do precipício que era Irene e nem hesitou.
- Eh pá, e se eu te pagasse uma bebida e nós fossemos ali para trás, tu mostravas-me as tuas mamas e depois…
Não houve propriamente depois. Osvaldo nem sequer chegou a fim da sua queda. O sopapo de Irene foi estrondoso e Osvaldo, com o seu equilíbrio em baixo, andou às piruetas para trás. Todo o bar olhou. A risota foi geral. Estêvão abanava a cabeça e Matias ria-se a bandeiras despregadas. Osvaldo retornou à base, aturdido, com os dedos de Irene marcados na cara.
- Eu atirei-me a ela, vocês viram… – constatou Osvaldo.
- … e caíste mal. Eu avisei-te. Agora o pessoal vai gozar-te durante uns tempos. E perdeste toda e qualquer hipótese que tinhas com ela – elucidou Estêvão.
- Que se lixe. Estêvão, paga-me aí um copo. Estão mais gajas por aí, vocês já viram bem? – prosseguiu Matias, cheio de vontade de se divertir à grande. Sim, o facto é que havia muito mais mulheres por aí. E com a visão deturpada pela bebida elas ainda se tornavam mais atraentes. Havia muitos mais abismos para tentar e o mais reconfortante é que nenhuma das quedas seria fatal, as oportunidades sucediam-se, era como um jogo de consola com vidas infinitas. Matias já sabia essa história de cor.