quinta-feira, janeiro 24, 2008

Calma no Médio Oriente

A semana passada foi excepcionalmente calma no Médio Oriente. Em Israel foram assassinadas menos de 100 pessoas, um mínimo histórico desde meados do século… dum século anterior qualquer. Na Faixa de Gaza, em particular, apenas se assistiu a um tímido massacre de algumas dezenas de palestinianos e as forças israelitas contaram pelos dedos de algumas mãos decepadas de crianças órfãs as baixas que ocorreram aqui e ali, entre esporádicos ataques suicidas e um ou outro rebentamento de veículos estrategicamente posicionados. Em Jerusalém, o Muro das Lamentações voltou a resistir, miraculosamente, por mais uma semana, apesar dos minimais obuzes que inadvertidamente o atingiram e das insistentes cabeçadas dos crentes judeus. Ali ao lado, no Líbano, apenas se registaram três ou quatro dezenas de manifestações inicialmente pacíficas que descambaram para a violência usual. Mortos foram uns quantos seres indeterminados, para aí uns sessenta ou setenta, o equivalente a 0,0001 Maddies desaparecidas, ou seja, nada de preocupante. Também houve um divertido raid aéreo que culminou com a destruição quase total duma cidade aparentemente não-fronteriça, com prédios e mais prédios em ruínas ou lá perto, milhares de desalojados e vários cortejos fúnebres a céu aberto com bandeiras americanas a arder – nada de muito significativo, portanto, e que não se resolvesse com lutas fraticidas que geralmente custam a vida a umas quantas centenas de inocentes, como foi o caso. Na Síria, Damasco respirou ares de tranquilidade com o deflagrar de uma explosão no centro nevrálgico da cidade. Somente se contabilizaram 67 vítimas, entre cadáveres e estropiados que salpicaram de sangue os veículos e as estradas de terra batida em redor. Isto é, reuniram-se as condições para um passeio nocturno nos verdejantes, e expectavelmente minados, parques da cidade, ao fim de tanto tempo de privações. No depauperado Iraque, ou no Irão, queremos lá saber, aconteceu um sortido de tudo o que foi referido atrás, mais um ou outro blindado foi pelos ares e eclodiram mais umas quantas vendettas entre facções xiitas e sunitas, com armas químicas ao barulho. Também já morrem à fome em Bagdad, mas isso é irrelevante, provavelmente serão mais uns quantos curdos imprestáveis. O que importa é que entretanto retomaram a produção de petróleo. Ah, e encontraram finalmente armas de destruição maciça dentro dum depósito de urânio enriquecido, que, segundo consta, serve apenas para matar ratos e produzir electricidade. A grande nota de surpresa acabou por provir da habitualmente plácida Arábia Saudita, onde ondas de tensão e ansiedade estão a varrer de incredulidade os xeques do petróleo e as suas incontáveis mulheres: parece que existe uma moda revivalista a contaminar a sociedade saudita, consubstanciada na adoração da mullet de Tozé e nas bexigas faciais de Hélio, dois jogadores portugueses que semearam a simpatia e a curiosidade aquando do Mundial de Juniores em Riade, em 1989. Mas o que realmente perturba os cidadãos é a busca pelo novo objecto sagrado: uma camisola de Xavier, o patinho feio da Selecção lusa, o tal que nunca passou da cepa torta. Consta que é hoje um objecto muito mais valorizado do que é uma cópia do Corão ou mesmo uma fotografia do Fernando Couto sorridente e de cabelo curto.
O triste é saber que para a próxima semana tudo voltará ao normal. Ou seja, não acontecerá nada de relevante no mundo ocidental, nem uma crisezita financeira, e o quotidiano no Médio Oriente voltará a entrar-nos em casa pelas horas dos noticiários. Rai’s partam os directores de informação.

terça-feira, janeiro 15, 2008

A Pobreza É Um Luxo

O novo conceito de luxo é pagar para ser pobre. A ideia partiu da Xupax, uma empresa ligada à ocupação dos tempos livres das classes mais endinheiradas. Aparentemente condenada ao fracasso, a Xupax apercebeu-se que a ideia poderia singrar quando reconheceu que existem pessoas que gostam de sofrer e, acima de tudo, pessoas estupidamente ricas que pagam estupidamente para sofrer.
Por um montante inicial fixo que pode variar entre os 50.000 e os 250.000 Euros semanais e por um período nunca inferior a duas semanas, o cliente poderá gozar as delícias da vida dos pobres. Estão disponíveis as seguintes rubricas em pacotes customizáveis e extremamente flexíveis (extras entre parêntesis):
- trabalho mal-pago e com um chefe rezingão (chefe que humilha: + 200€ por cada ataque nervoso);
- casa nos subúrbios, apenas acessível por transportes públicos (apenas acessível a pé: +5€ por cada metro em terra batida; sem electricidade, água ou gás: +250€ por cada item);
- mulher anafada com bigode ou marido bêbado com unhaca no dedo mindinho (filhos na droga: +1.000€; filhos na droga e na prostituição: +2.000€ - valor que passa para 1.500€ se a prostituta vier com chulo, a providenciar pelo cliente);
- crédito malparado (possibilidade de exibir bens ainda não pagos aos amigos para ostentação: +5.000 € por cada unha roída de inveja);
- férias na Caparica (férias na casa dos sogros: +200 € por dia);
- visionamento em directo de jogos do Benfica (possibilidade de aparecer na reportagens da TVI: +3.500€);
- fome (MUITA fome: +500 €);
- doença apenas curável em establecimento público (doença incurável: o dobro do valor do pacote escolhido);
- outros extras avulsos, como espera de eventuais filhos à saída de escolas públicas e levar com a porta na cara dum estabelecimento comercial ou público: situações negociáveis caso-a-caso.
Vários magnatas e socialites gastaram exorbitâncias com esta experiência lúdica. Homero Bello de Gonzaga, notável milionário brasileiro, levou toda a sua família para duas semanas de horror numa favela paulista. Ninguém morreu, miraculosamente e apesar dos ferimentos. Homero considerou o tempo dispendido como “muito enriquecedor”, por estranho que pareça – Homero gastou mais de setenta vezes o equivalente aos rendimentos esperados totais das vidas dos seus 30.000 vizinhos da favela. Adiantou ainda que os níveis de adrenalina são incomparavelmente superiores aos do rafting ou aos de qualquer actividade tida como radical. “Jóia. Muito legal”, adiantou, ainda aturdido pelo choque.
Já Titá Gugu Xixi, colunável de Paço d’Arcos, ficou sem palavras. Não apenas por causa da operação mal sucedida à laringe, mas porque as expectativas foram largamente superadas. “Olhe, sei lá, super-chique, foi divertidíssimo viver como um porco durante dois meses. Nem shampoos de algas tinha, veja bem”. Nada lhe custou em demasiado. “Olhe, achei engraçadíssimo ver as miúdas a engravidar com 12 anos e os miúdos metidos com agulhas e facas e mai-não-sei-quê, de morrer. Eu própria achei giríssima a vida com ordenados mínimos aturar um trabalho tão estupidificante como é embalar clisteres durante 10 horas por dia e ainda ter que aturar um marido podre de bêbado ao chegar ao T1, sei lá. Demais”. Recomendou vivamente a Xupax a todas as suas colegas, mas admitiu que não era capaz de viver assim para sempre. “É adorável como experiência, mas com aquilo que ganhava não podia ir a Saint Tropez nem daqui a 30 anos, ‘tá a ver?”.
A Xupax tem a carteira de pedidos totalmente cheia e não está a aceitar mais inscrições. O esquivo director-geral da Xupax escusou-se a tecer comentários. Apenas confidenciou que “ser pobre não é para todos”.
PS - Texto baseado em factos reais constatados na Índia.

sábado, janeiro 12, 2008

Deixa Mamar

Perdão pelo título. Percebi mal. É “Deixa-me Amar”, afinal.
Ah, está bem. É só a língua portuguesa a ser traiçoeira. Culpemos a língua. Eu, por mim, não tenho problema nenhum. Se fosse “Deixa-me Matar”, “Deixa-me Roubar” ou “Deixa-me Colocar Uma Música da Kelly Family Enquanto Descasco as Batatas” é que já colocaria reticências. Quereis amar, porém? Amai com toda a força, eu deixo.
Visitem então o blogue. "Já", como suplicam os fãs e autores do blogue. É interessantíssimo, não só cromaticamente, mas também a nível de conteúdo.
Eu cá nunca vi telenovelas da TVI. Nem a própria TVI, excepção feita ao futebol (Luís Sobral, com esse timbre de voz podias ser o Leonard Cohen do jornalismo oportunista português). Sim, sou demasiado práfrentex para isso, não me coíbo de o afirmar. Mas arrisco uma possível estrutura para a telenovela, com todas as probabilidades de erro a que me sujeito.
- Uma família rica que vive numa quinta e cuja fortuna é incomensurável, OBRIGATORIAMENTE com criada, NECESSARIAMENTE gorda e muito simpática, que serve sumo de laranja pela manhã, quando TODA a família se reúne à mesa religiosamente às 7:30 em ponto. A família TEM de ter um patriarca sóbrio e extremamente respeitado – que será o Ruy de Carvalho ou o Sinde Filipe, é aproveitá-los enquanto forem vivos. Dentro dessa família, dois irmãos, desavindos, um muito bem intencionado e outro muito pérfido, ambos muito impulsivos e competitivos em todos os aspectos das suas vidas. De preferência, acabarão por se apaixonar pela mesma rapariga, que provirá dum estrato social inferior e que conquistará os elementos menos ásperos afectos à família rica (entre eles estará a criada, os netos do patriarca, que são fruto duma relação anterior de algum dos filhos e que andam lá pela quinta, bem como a esposa do patriarca, se este não for viúvo, o que até será mais provável). Este triângulo amoroso será o fio condutor sentimental da história, embora todos saibamos que no fim ela ficará com o irmão-bom.
- A rapariga sofrerá muitas desilusões e vê-la-emos a chorar bastas vezes em primeiro plano, com uma música lamechas do Rui Veloso, Santos & Pecadores, Paulo Gonzo ou qualquer outra estrela nacional como pano de fundo. A sua vida será uma montanha russa de emoções e ela será uma tipa que veio parar ao local onde se desenrola a história por acaso. Ora desiludida, como referi, ora extremamente feliz, felicissimamente parva, exultando com o seu amor (os irmãos da família rica ou um amigo de infância, o qual nos apercebemos logo que não terá hipóteses), que confidenciará à sua grande amiga, claramente menos atraente em termos físicos. A rapariga irá planear casamentos como quem bebe copos de água, mas estes cairão por terra quando tudo estiver a postos. Esta sua amiga viverá uma história de amor não-assumido com um pobretanas qualquer, que, embora muito honesto e benquisto, é um trapalhão de primeira. Esta relação constituirá o fio burlesco da história, o rapaz trapalhão será o jogral do enredo e será nestes diálogos que os argumentistas aproveitarão para lançar todo o seu manancial de piadas. O rapaz será exortado a fazer muitas caretas e os seus amigos fartar-se-ão de brincar com a sua inépcia, incluindo o bêbado da taberna (infelizmente, o Canto e Castro já não pode fazer este papel, então busque-se o Manuel Cavaco), gerida por um casal de velhos sempre a par de todas as novidades e a postos para assumir a figura de consultores afectivos.
- Existirá uma empresa, ligada por qualquer meio à família rica, gerida de forma implacável por uma administradora cruel, mas extremamente sensual – papel criado de propósito para a Alexandra Lencastre, que preparar-se-á especialmente para o papel com horas e horas de solário, oxigenação capilar, fortalecimento hormonal do seu, já de si, enorme par de mamas e aprimoração do sotaque Cascaisiano a níveis estratosféricos. Existirá um colaborador galã (pode ser o irmão-bom, por exemplo) sempre revoltado com a liderança da empresa, um visionário empresarial, um injustiçado. A administradora, com o apoio de um amigo sinistro (pode ser o irmão-mau) que lhe é leal de forma doentia e nunca a larga, fará os possíveis para sabotar as boas intenções do galã. A auxiliá-la, encontraremos ainda uma outra amiga, uma figura deveras antipática e desprezada por todos os protagonistas, mestre na arte do sorriso cínico e da manipulação sentimental. O amigo sinistro da administradora deseja que ela seja sua, mas a administradora quer é o galã, que por sua vez nem a pode ver pintada à frente. A amiga da administradora, a meio da história, será atingida pelo Cupido e também quererá o galã para si, não olhando a meios para atingir os fins. Enquanto isso, a empresa, que em termos organizativos é pouco menos que perfeita, embora todos passem mais tempo a tratar da sua própria vida e a tratarem-se coloquialmente por “você”, passará por dificuldades inesperadas. Um inspector da Judiciária (pode ser o Rogério Samora?), tão sagaz quanto inoportuno, passará a ser visita frequente do luxuoso escritório e quererá analisar uma misteriosa pasta com documentos comprometedores, que todos farão questão de guardar até aos episódios finais. Será usual a administradora começar a falar sozinha na sua casa mobilada pelo IKEA, COM UM COPO DE WHISKY COM TRÊS PEDRAS DE GELO NA MÃO, planeando assassinatos e chantagens em voz alta. Este será o lado noir, frio e cosmopolita da história.
- Os miúdos, filhos dos irmãos, entre órfãos e filhos de pais divorciados que só sabem o que é viver com a avó, frequentarão um colégio sem ponta de sujidade. Será notável o instinto precoce para a moda, pois todos estarão na crista da onda em termos de vestuário e penteados. Serão mestres nas novas tecnologias e nos desportos radicais. Uma professora muito atenciosa e querida ousará enfrentar o director do colégio, um tipo mal-encarado e parado no tempo que se afronta com facilidade com qualquer atitude dos miúdos, apenas para defender uma atenção especial a um miúdo em particular – que, sabe-se, já fumou um Davidoff que roubou à mãe ou que, num acto de loucura sem precedentes, bebeu três cervejas Tagus numa festa da escola e foi apanhado semi-nu na praia como consequência. Pobre rapaz este, viverá sempre com o estigma do James Dean lá do sítio. Este será o lado juvenil da história e será por aqui se que se irá evidenciar a próxima Vera Kolodzig.
Confusos? Verão que tudo é fácil. Fico-me por aqui. Com estes ingredientes já temos o essencial. Agora é criar monstruosos laços de família e esclarecer verdades que se julgavam absolutas: afinal, o pai de X é na verdade seu irmão e X nem sequer é um ser humano, mas sim um macaco ultra-desenvolvido que tem um fetiche pelos pés de Y, que por sua vez não gosta de Z, mas sim de K, enquanto W e P não eram primos, mas sim siameses filhos de Z e K é homossexual e gosta de W, seu próprio filho, mas W tem os diamantes que roubou a P e P não pode deixar de ser amigo de Z enquanto este não resolver o caso das fotocópias ao rabo de K, que é a sua mãe adoptiva e vive com Y, após uma fuga frustrada com W para a Venezuela quando X ainda andava metido nos meandros das apostas ilegais com Z, que batia em P enquanto bebia para esquecer a cadela desaparecida de K ou de W. Enfim, depende de quantos meses quisermos esticar a história.
E quanto mais a história durar, mais os argumentistas mamam. “Deixem mamar”? Pois mamem. Agora sim, faz todo o sentido.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Bingo

Dois cães a copularem na rua. O afã do macho, a passividade da fêmea, patas ao alto, línguas de fora, já está. Márcio reconheceu-se. Lembrou-se de Ludovica. De quando ela se lamentara, “nós não fazemos amor, nós temos sexo”. Pois é, somos animais. E com isto, Márcio adquiriu uma revista de computadores no quiosque, sacando da nota mais alta que tinha na carteira e ostentando-a ao vento. Que é para não haver dúvidas: era racional, era mais que um animalzeco, ao fim ao cabo. Não era um rafeiro comum. Era culto, sabia ler, tinha posses. Tudo o que não parecesse premeditado era no fundo um cálculo programado, uma manobra de diversão para incautos. Tudo era planeado, até as eventuais debilidades que se quisessem mostrar. Se as houvesse, claro. Ludovica, essa, perdera a sua vida atrás dum balcão qualquer e Márcio perdera o gosto por ela ao fim de umas poucas relações. Tinha perdido o apetite e ela começara a ganhá-lo desmesuradamente. Já não a suportava.
Se a vida é uma roda viva de emoções, então parassem-no lá em cima. Não foi ele que inventou a tecla “Insert” nos teclados. Vivia bem com isso. Das aparências à realidade vai uma bela distância. Do sexo ao amor vai outra. Da desilusão à verdade é que nem por isso. Infelizmente para alguns. Parassem-no lá no alto e deixassem-no a contemplar as vistas, que isto cá em baixo é de loucos. Alguém disse que somos turistas nesta vida, já não sei quem, mas devia ser muito bronco, e nós nunca sabemos bem se era ao certo, nunca ninguém nos dizia onde tirar as melhores fotografias e como evitar os bairros problemáticos. Lera numa revista: alguém clamara que esta vida terrena era um passeio, talvez tenha sido numa coluna do social, e, de facto, Márcio passeava-se com uma revista de computadores debaixo do braço, de bolsos recheados. Passeemo-nos, então. Mas a cidade era sempre a mesma.
As moscas teimavam em não mudar e zumbiam forte. Era um desespero. Isto afinal é mesmo um passeio, porém é um passeio aflitivo, pleno de sobressaltos e obstáculos. Márcio encalhara. Nas contradições, nas perífrases e na estupidez de recursos e figuras de estilo que só fazem falta aos poetas, mas também porque à sua frente não se andava para a frente. Reflectia consigo para não reflectir com mais ninguém e abstraía-se do resto. Márcio parara. Pessoas em linha no passeio passeavam com desdém pelos apressados, como se quisessem fazer bingo em cima do passeio.
Torneada essa canalha de pessoas despreocupadas que Márcio detestava, e invejava, por que não admitir?, voltou a esquina e pisou um pedaço de vómito. Ou seria apenas uma refeição dalgum sem-abrigo? Talvez. Dava sorte. Também diziam isso. Quem se referia muito a esta frase era a Isaltina. A Isaltina tinha um grande peito e estava sempre a pisar merda. Três-meia-volta, a Isaltina estava com os pés em cima da merda e justificava assim a sua azelhice natural. Ela desapareceu algures no passado de Márcio e esse talvez tenha sido o seu grande azar. Ou sorte. Tudo pode ter mais que uma interpretação, talvez mesmo as fórmulas matemáticas que Márcio desconfiava. Agora o peito de Isaltina estaria flácido e ela moraria num quarto alugado na baixa, contara-lhe uma amiga comum. Prostituía-se por dinheiro, pois claro, ninguém se prostitui por amor, ou por compaixão, ou por qualquer outra coisa bonita. O dinheiro pode ser bonito. Se for nosso, evidentemente. Isaltina podia prostituir-se por ser apenas uma devassa, mas não, não era uma hipótese credível. Não tinha estaleca intelectual para tanto. Márcio deplorou o sucedido e no seu íntimo insultou o sem-abrigo que fedia na esquina. Abominava pobres. Materiais e de espírito. Mas seguiu em frente. Seguiu para bingo.
Que bonita expressão. Que exemplo de movimento e proactividade. Márcio deu uma vez por si a espreitar a vizinha da frente e soltou para si “bingo!, eu bem sabia que a vaca se despia à janela”, apenas por descuido, claro, era mesmo estúpida a tipa. Ela nunca lhe passou cartão, contudo. Nem premiado nem outro de qualquer espécie. Não devia estar destinada para si, tanta era a sua ignorância. Mas a ignorância vencera, a todos e a Márcio em particular, mais uma vez. Era um resultado que já não surpreendia. Márcio não tinha como a atrair. Deu por si, sozinho com o seu belo ego , a masturbar-se com a visão dela, assumindo a derrota final – se não podia tê-la, tinha a sua mão, a formalização corporal do seu espírito naquele momento. Renúncia ao jogo no seu estado mais puro. Batotice sentimental com contornos de vício. Assim era fácil. Não custava nada, nem ao coração, nem à cabeça, a mão não se queixava. Márcio olhou para a porta. Estava fechada. No interior, pelo meio das grades, espreitou o salão. Mas ainda faltava um pouco para a abertura.
Jogar por jogar é banal. Márcio jogava a dinheiro, ia ao bingo. Assim como assim, podia estourar o dinheiro em álcool ou em sexo, mas preferia arriscar para ganhar mais. Ou podia perder tudo. Enfim, o que haveria de perder? O seu malfadado orgulho? Onde ele estaria? Talvez numa bola acertada que lhe preenchesse a linha e o fizesse soltar um grito de vitória. Pouco importa. “Ganhar mais”, isso sim, ter um motivo para se vangloriar, um telemóvel com muitas luzes, notas de 100 euros a florirem dos bolsos, um ror de exibicionismos tal que até custa pensar. Não há que pensar muito. As coisas grandes da mente vinham ter consigo naturalmente. A sua racionalidade era suficiente para proporcionar um elevado índice de espontaneidade sucedida. O que quer que isso fosse. Márcio deu mais uma volta ao quarteirão, mais um giro, mais uma revista especializada e quando chegou já a porta abrira. Sentou-se na mesa do costume e seguiu em frente, no bingo, para bingo.

terça-feira, janeiro 01, 2008

Zero-Nove

Na numeração romana não existe o zero.
Pois a mim dava-me jeito um.
Ouvi dizer que pelo desejo de nós os dois
Pode surgir o três.
Sozinhos na cama do quatro.
Quarto do hotel de estrelas cinco.
Qual acto diabólico, besta de triplicado seis.
Os pecados, sabemo-lo, são sete.
E é com este que estamos feitos num oito.
Agora é a grande prova dos nove.