quinta-feira, agosto 31, 2006

Sonic Youth "Murray Street" (2002)


Murray Street é uma das artérias de Nova Iorque. Reza a lenda que foi num estúdio desta rua que os Sonic Youth estavam aquando do desastre do 11 de Setembro de 2001, gravando este álbum. Um destroço de avião aterrou às portas do estúdio. Também consta que este marco da História moderna influenciou de algum modo a gravação do álbum. E, se assim foi, abençoado 11 de Setembro, no que a este contexto concerne.
Bem, a influência do 11 de Setembro pode não ser devidamente aferida, mas a introdução de um novo guitarrista, Jim O’ Rourke, pode sê-lo de uma forma mais concreta. As canções de “Murray Street” constituem, sem grandes dúvidas, um renascer da banda, que em 2002 perfazia 20 anos de actividade – sendo, pois, pouco consentânea com a “Youth” do seu nome. Thurston Moore, Kim Gordon e Lee Ranaldo já eram quarentões orgulhosos e Steve Shelley já lá está nesta altura.
Este é o mais instrumental dos álbuns dos Sonic Youth, onde as palavras dão decididamente lugar às guitarras. Diferente dos registos que os guindaram ao mega-estrelato indie, seja lá o que isso for, de “Sister” e “Daydream Nation”, lá no final dos anos 80, ou do flirt discreto com o mainstream de “Goo” e “Dirty” ou ainda das tonalidades artístico-épicas, quase impenetráveis, de “A Thousand Leaves”. Aqui a banda preocupou-se com a melodia, como nunca visto dantes.
O álbum é parco em termos de faixas, por isso é possível falar sobre elas uma a uma. As três primeiras faixas contêm Moore no papel principal. Todas elas são essencialmente faixas de calmaria, de guitarras doces e de esporádicas pisadelas no pedal. Algo anormal nos Sonic Youth, portanto. A mais emblemática, a grande faixa deste álbum, o sol que ilumina estes Sonic Youth é a quase instrumental “Rain On Tin”. Um trabalho melódico improvável nos Sonic Youth, porque até parece saída de alguma jam session entre os membros da banda, possível talvez apenas pela introdução de O’ Rourke, um carrossel de emoções que raia os oito minutos sem nunca parecer demais, um momento bastante agradável para qualquer ouvinte casual que aprecie o chamado indie rock e nunca se tenha sentido atraído pelos devaneios demasiado ruidosos, cacofónicos, que caracterizam este grupo. Ao vivo, “Rain On Tin” é um momento quase hipnótico, com o fumo dos cigarros a perpassar os holofotes de diferentes cores que se vão acendendo e apagando, enquanto a banda permanece embrenhada nos seus instrumentos.
Na esteira desta grande faixa, temos uma canção com um preâmbulo ainda mais atmosférico a fechar o álbum, da responsabilidade de Gordon, igualmente suave, igualmente progressiva, com o contador a atingir os nove minutos. Mais uma vez, o tempo passa lentamente, como se o relógio quisesse parar para escutar mais um pouco, a ver a que porto leva esta faixa.
“Karen Revisited” é a faixa de Ranaldo para este álbum (ele pica sempre o ponto em qualquer álbum) e remanescente de “A Thousand Leaves”. De facto, esta faixa parece encaixar-se melhor nos delírios experimentalistas barulhentos desse álbum do que na textura pouco abrasiva de “Murray Street”. Somente para filósofos apegados à beat generation e para usos puramente ambientais, especialmente a partir dos quatro minutos e meio – e a faixa passa dos onze…
As faixas mais comedidas não perdem por sê-lo, mas não se enquadram directamente no evidenciado pelas restantes, que são claramente mais trabalhadas e menos directas. A prova é que “Radical Adults Lick Godhead Style” fecha com um bom ruído à lá Sonic Youth dos velhos tempos e “Plastic Sun” é mais um remoque de Gordon às belas e fúteis divas estreladas da América. Agora que Madonna já não é tão adolescente quanto isso (os anos passam, não é, Kim?), o alvo escolhido foi Mariah Carey. É a faixa onde a raiva dos “jovens” Sonic Youth se mostra mais desinibida, consubstanciada na cavalgada do baixo de Gordon e na percussão nervosa.
É fácil não se gostar dos Sonic Youth. A banda perde muito tempo a fugir do formato tradicional da canção, nunca poderá passar na rádio (exceptuando raros momentos, como “Sunday” e “Sugar Kane”, e mesmo assim em versões editadas) e dá mesmo a ideia de retirar prazer em aborrecer todos aqueles que pretendam ver o imediato, não querendo entender que eles estão basicamente ali por uma questão estética e não pelo virtuosismo musical. Duvido que haja alguém que ouça muitas vezes repetidas alguns dos álbuns dos Sonic Youth, certas faixas são pura e simplesmente sons insanos com uma validade artística no mínimo questionável. “Murray Street”, contudo, é francamente acessível para os parâmetros da banda e mostra como eles conseguem ser audíveis e artísticos simultaneamente, que é possível distorção e melodia casarem-se sem que isso signifique sacrificar a sua filosofia nem rodar pelos circuitos comerciais. Pois, eles não devem estar para aí virados.
Eis uma banda com total vitalidade após 20 anos de carreira e praticamente sem alterações na formação, onde dois dos elementos são casados entre si e cuja filha de ambos figura na capa deste álbum. Dinossauros sem o jeito de muitos mas com um cariz intelectual inabalável.
Classificação: 8/10
Faixas a Reter:
"Rain On Tin";
"Sympathy For The Strawberry";
"The Empty Page"

segunda-feira, agosto 28, 2006

Gente Gira

(Quadro de Pablo Picasso - 1908)

Ali está Filomena. Filomena Garcia de Mello e Souza. Atente-se nestes aparentes pormenores, nenhum deles por acaso: o “de” entre Garcia e Mello; o “e” entre Mello e Souza, os dois “ll” de Mello e o “z” de Souza.
Não, ela não é brasileira, mas podia, de tão trigueira que é a pele; não, ela não escreveu mal o seu nome, porque isso seria inadmissível; ela é, apenas, uma figura de prestígio. As raízes deste nome, comenta-se por aí, derivam de antepassados espalhados pelos ramos mais obscuros da sua frondosa árvore genealógica. Será da família dum grande banqueiro? É possível. Será afilhada dos grandes industriais? Quiçá. Terá sido casada com algum descendente de sangue azul? É bem provável que sim. Azuis são os seus olhos, grandes órbitas penetrantes de tez marítima compradas ao melhor oftalmologista, bastas vezes eclipsadas por detrás dos seus volumosos óculos escuros.
O nome não devia interessar. O que é o seu nome quando comparado com a sua inefável mania de viver bem, divertida, numa discoteca a balançar as ancas, numa soirée a passear o seu glamour, numa apresentação pública a emprestar a sua vivacidade? Não devia ser nada, pessoas assim falam por si, imunes a identificações redutoras. Mas lá que dá jeito, dá. Nem que seja para colocar o pé na porta. Valha a verdade que todos aqueles pormenores no nome abrilhantam de sobremaneira o seu cartão de visita. Todos desejam possuir esse cartão, exibi-lo com orgulho aos amigos.
Ao seu lado, está Mu. Uma vaca? Ora essa, claro que não. Apenas Mu. Ninguém sabe qual o verdadeiro nome desta relações públicas. Outra vez com a história dos nomes: que isso interessa? Digna de relevo é a sua afabilidade, simpatia, disponibilidade. Poderia queixar-se da lufa-lufa do seu preenchido dia-a-dia, mas torneia o stress com sonoras gargalhadas de champanhe na mão. Mantém uma pele impecavelmente protegida por dezenas de loções dérmicas. A sua silhueta é invejável para uma mulher a ultrapassar a alta velocidade a barreira dos trinta anos. Usa e abusa da sua lista de contactos e amizades para deixar-se retratar nas mais variadas situações com diversas figuras públicas, dando largas à sua ampla fotogenia. Assina colunas de opinião de interesse quase patrimonial para a Humanidade numa revista para aspirantes ao sucesso. Conheceram-se alguns romances entre ela e alguns dos homens mais cobiçados da nossa praça, qual deles o mais fugaz. O único defeito que ela se auto-aponta em questionários sobre a sua personalidade é, invariavelmente, “a teimosia” – a teimosia de querer que tudo corra na perfeição, claro. Com Mu, ou sai tudo perfeito ou temos birras.
Ao canto, aparece Jessica Marlene. Escultural, epíteto de mulher fatal escarrapachado nos implantes de silicone e nas injecções de botox que ostenta descaradamente. Ex-modelo, ou ainda modelo, não se sabe ao certo, actriz, escritora de livros sobre o zen espiritual e o combate à celulite, cultiva a vida calma dos grandes iates nos mares cálidos das Caraíbas ou das praias de remotas ilhas gregas. Notabilizou-se ao serviço de uma marca de iogurtes líquidos com sabor a chicharro, com um anúncio onde marinava os corações com um andar ousado e bamboleante para depois fervê-los com um sorriso vermelhão e um piscar de olhos irresistível. Está sempre aberta a novas experiências, de preferência pagas por algum patrocinador, pois não se lhe conhecem ocupações fixas que não a frequência de luxuosos SPAs. Jovem, não naturalmente loura, mas cuja alouração lhe fica tão bem, cultiva ainda o gosto pelas artes e cultura. Qualquer delas. Dela escreveu-se “adoro degustar Kierkegaard a ouvir Canta Bahia” ou “quando vou ao Louvre opto sempre pelos tons magenta para as unhas da Gemey”. Envolveu-se com outro modelo, a sua relação gastou muita tinta nos jornais, mas agora tudo acabou, sem ressentimentos, que Jessica não perde tempo com isso. O seu novo parceiro é o promotor da inédita iniciativa que reuniu Filomena, Mu e a própria Jessica.
Esta é a iniciativa: juntar três figuras femininas para recolher fundos de apoio a uma família carenciada de Sernancelhe que possui dezasseis filhos, todos a viverem numa pocilga adjacente à casa. Se tudo correr bem, será construída uma casa nova suficientemente grande para a família. Se tudo correr mesmo bem, a casa será tão grande que até os porquinhos viverão na casa. Garantida está a publicidade a uma causa tão nobre, tão cívica, tão desinteressada como esta. Só alguém tão ilustre como estas três donas estaria ao alcance desta missão. O lema é: “Tirem-me de ao pé dos porcos, c*****o!”.
O autor desta ideia, o sempre empenhado namorado de Jessica, é um argentino, Pablo Alberto Zaurini, ou só PAZ. Inteligentemente, PAZ preferiu o retiro do anonimato, como é seu apanágio. PAZ descobre, nunca é procurado. PAZ reúne e faz actuar, pensa e faz nascer coisas bonitas. Trabalhar com PAZ é uma tranquilidade. Bem parecido, multifacetado, PAZ é desejadíssimo. Nunca comprou guerras, este PAZ. PAZ escolhe tudo a dedo. Diz-se que PAZ está para a vida social como o seu conterrâneo Maradona está para o futebol. Viva PAZ, há tanto tempo radicado em Portugal. Os portugueses olham para PAZ e reconhecem como ele é brilhante.

E por falar em Maradona, reparem nesta foto:


Se observarmos as caras destas jovens, percebemos que o seu apelo é verdadeiro. Eis uma má trip, um charro de caldo Knorr, um chuto de gesso. Elas (e ele, discretamente ao canto), disparam-nos lúgubres olhares polvilhados com as costumeiras olheiras e avisam-nos com uma sinceridade tal que fazem corar qualquer Filomena, perder o sorriso a qualquer Mu e despertar comichão em qualquer Jessica. No vão de uma escada, estas jovens uniram-se em prol de um novo sentido para uma vida que lhes corria tão sombriamente como o semblante que transportam, qual cruz pesada às costas. Juraram deixar para trás as barracas e as filas aflitivas junto ao sítio de troca de seringas. Fumam maços de tabaco atrás de maços de tabaco e, enfim, um ou outro copo de cerveja, na esperança que haja algum laivo de alegria escondido por detrás de uma garganta seca de fumo ou de álcool. São sérios como um bloco de granito espetado à frente dos nossos narizes. Mostram que não há nada de alegre num ressacado, nem sequer o travo de alguma memória de efémeras euforias sentidas.
PAZ reparou neles. Fê-los capa de revista. Tornou-os públicos. Que lindo, jovens degradados em pé de igualdade com Filomenas, Mus e Jessicas, na mesma revista, aqui está a beleza dos tempos modernos. PAZ deu-nos esse prazer, o de tudo tornar “público”, igual para todos, como se alimentasse uma enciclopédia do social e a estendesse a todos os níveis. PAZ imitou a máxima de Warhol sobre os “15 minutos de fama” e concede espaço a tudo que detenha algum fundo de emoção. PAZ, o portador do verdadeiro espírito democrático, tornou-os equivalentes a uma elite. Uma elite desgraçada.
Não serão, afinal, todas as elites umas desgraçadas, expostas que estão assim, publicamente? Bem, elas lá continuam a ir com PAZ.

sexta-feira, agosto 18, 2006

O Arcanjo Gabriel

Jorge Gabriel já não é um homem. Isso era dantes. Jorge Gabriel é agora um arauto de Deus. Descobrimo-lo quando Jorge Gabriel passou a exibir a sua faceta de comentador. Portanto, críticas sobre Jorge Gabriel são vistas como heresias e eu, pecador, me confesso.
Nós já desconfiávamos: Gabriel, ao ser escolhido pelo banco do milénio para um spot publicitário com óbvias referências a um concurso por ele apresentado, tinha já revelado uma expressão facial de quem não estava para aturar as mediocridades proferidas por castas inferiores, que são afinal os vulgares indivíduos diferentes dele. Relembro que nesse spot, Gabriel cruza os braços e franze o sobrolho, esticando o beiço inferior para fora e baixando a cabeça, quando confrontado com uma charada da sua convidada, supostamente difícil de resolver e totalmente inesperada. A convidada, estóica, aguenta-se com um sorriso durante todo o spot. Mas Gabriel não, para não resvalar na parvoíce e para conservar uma postura adequada ao seu imensurável prestígio. Gabriel ficou sério e respondeu sem sequer dar tempo para o cronómetro começar a contar, com um rigor e uma prontidão assinaláveis, algo que tão bem se enquadra na sua personalidade assertiva. A convidada não teve como fugir, amarelecendo o sorriso: “Ah, afinal o banco do milénio também é o seu banco…”. Gabriel explodiu, mas na versão final do spot não mostraram qual foi a sua real reacção. Ela foi: “Mas é claro que é, ó totó! Só podia ser! És mesmo duh! Já não aguento tanta vulgaridade!”
Ele é dotado de inteligência superior, provavelmente ofertada por alguma entidade divina como corolário de tanto tempo a divertir os comuns mortais ao leme de ilustres programas, vide “Praça da Alegria” ou “O Preço Certo”. Gabriel teve a paciência, o céu deu-lhe a sapiência. Gabriel achou mais do que merecida esta inteligência que possui e julga que mais ninguém terá mérito para sequer chegar-lhe aos calcanhares.
Mas é ao futebol e aos comentários de Gabriel que queremos chegar. É que Gabriel não fala de futebol, o futebol é que fala por Gabriel.
Gabriel antevê o que se vai passar. Ele atira-nos, sem qualquer pudor, evidências à cara, problemas há muito alertados e que esses banais homens do futebol não quiseram ouvir. O Benfica está em crise? “Mas é isso que eu venho a dizer desde 1985!”. O Sporting está mergulhado no labirinto dos balanços e orçamentos? “Eu avisei que não iria demorar muito tempo para que tal sucedesse!”. O FC Porto é a equipa mais beneficiada pelas arbitragens? “Se virem o programa da 3ª semana de Janeiro do ano passado, poderão constatar que eu já tinha feito referência a essa questão!”. Não conseguimos surpreendê-lo. Ele acerta em tudo. Tem uma capacidade de previsão que só mesmo os seres superiores conseguem. E os seus colegas de painel aguentam-se à bomboca. Deviam aprender com Gabriel. Gabriel deixa que eles aprendam, desde que eles não o aborreçam muito, pois Gabriel tem muito que fazer. Gabriel só quer salvar o futebol, se alguém, que apenas precisa de ser minimamente clarividente, lhe deixar.
Carlos Daniel tenta, em vão, lançar polémicas para cima da mesa. Gabriel nem sequer petisca essas polémicas. Gabriel declara-as estragadas, impróprias para consumo. “Essa não é a questão fulcral. O que é essencial é outra coisa”, diz-nos, com um olhar esclarecido e ao mesmo tempo perplexo de tanta ignorância que fareja ao seu lado. Expele sopros de quasi-indignação, convicto das suas ideias. O resto do painel que se deleite com essas problemáticas menores. E nem pensem em contrariar o grande Gabriel. Não faz sentido discutir com Gabriel, se Gabriel tem razão.
Foi penalty? Gabriel acha que não. “Não”, diz-nos, pragmático, envolvido numa calma deslumbrante, como na foto que podemos ver. Quem disser o contrário é tão reles que nem merece qualificação. Desta vez, foi Rui Moreira quem ousou discordar, ele que também ambiciona subir os degraus que Gabriel palmilhou, mas que ainda tem que comer muita papa. Gabriel esboça um sorriso superlativo, ajeita-se na cadeira e pensa consigo “Mas que gajo tão estúpido! O que estou aqui a fazer neste lodo mental?”. Tudo o que Moreira possa dizer só irá reforçar em Gabriel a ideia da miséria intelectual de toda a gente que não perfilhe a sua opinião. Gabriel acabará por sacudir a poeira dos ombros e Carlos Daniel pedirá calma a Rui Moreira, pedindo-lhe moderação, não vá Gabriel passar-se de vez e abandonar o programa. O que seria do programa sem a eloquência cerebral de Gabriel?
Gabriel tem a escola toda. Sabe os melhores onzes, os melhores árbitros, as melhores tácticas. E se nem tudo corre como o planeado, então foi porque não ouviram bem o Gabriel. Ele até foi bastante acessível para um Deus e até disse o que tinha que ser feito. Não o terem feito dá azo a que Gabriel riposte com aquelas caras carregadas de jactância e polvilhadas com o fastio dos predestinados tão caracteristicamente suas. Costumam ser fatais essas expressões, sobretudo se combinadas com a ironia e o sarcasmo que Gabriel tão bem dispõe. Posto algebricamente, temos: “Pergunta com resposta evidente” + “Painel levemente discordante de Jorge Gabriel” = (“Jorge Gabriel corrosivo” + “Jorge Gabriel com a solução certa” ) x “Cara de poucos amigos”.
Lamentavelmente, Gabriel é do meu clube. Gabriel achará muito bem e ai de mim se pensasse o contrário – seria imediatemente repreendido (e bem), posto em sentido pelas suas sobrancelhas e respostas incisivas. Mas eu pergunto se alguém terá por aí um kit de sócio que lhe ofereça.

quarta-feira, agosto 16, 2006

Isto Não É Um Cachimbo


(Quadro de René Magritte - 1928/29)
… e fez questão de enfatizar a sua certeza, como se estivéssemos a falar do mais assertivo dos dogmas.
Olhei para Reinaldo, embrutecido de espanto.
Será que estou a ficar maluco? Terei bebido demais? Estarei a sonhar?
Este é o meu conceito das coisas; observo a realidade e descrevo o que vejo de acordo com o que está instituído – isto é, um “cachimbo” é um “cachimbo”, porque se convencionou chamar-lhe isso mesmo, um “cachimbo”.
Reinaldo achava que não, e não o fazia por qualquer preciosismo artístico esboçado para irritar o vulgar indivíduo; simplesmente duvidava que o que se lhe deparava fosse um cachimbo e não admitia contestação. Tinha criado a sua própria teoria. Justificava sem problemas.
- Isto é apenas uma pintura de um cachimbo; não se pode fumar tabaco através daquilo que estou perante; e mesmo chamar ao engenho de madeira que permite fumar tabaco “cachimbo” será impor-me uma terminologia com grande dose de subjectividade criada por algum iluminado que resolveu criar os dicionários; eu prefiro chamar-lhe “odoratice” – ao objecto, não à sua representação gráfica.
Vamos por partes, Reinaldo.

Reinaldo não é maluco; pelo menos, não demonstra qualquer sinal de deficiência cognitiva, pois urde frases estruturadas, percebe a minha questão e tenta demonstrar racionalidade no seu evidente paradoxo.
É certo que isto, de facto, é uma pintura. Reinaldo é afinal um ultra-realista. Mais realista do que todos nós. Reinaldo não aceita representações da realidade. Reinaldo somente aceita a realidade. Estou a imaginar como seria Reinaldo resguardado em casa durante algum tempo, sem acesso ao mundo exterior excepto pela sua janela: todos os jornais que lhe colocassem sob a porta seriam puro lixo, pois dar-lhe-iam apenas quadros de uma realidade não constatável directamente; as fotografias que conservava nas gavetas seriam figuras puramente abstractas sem nenhuma relevância concreta, mesmo que elas retratassem a sua vida ao mais ínfimo pormenor; até as memórias, por mais fortes que fossem, seriam mero objecto cinematográfico, ficcional, desprovidas de consubstanciamento palpável; a sua realidade seria o marasmo dum quotidiano enjaulado entre quatro paredes e a simples observação da movimentação exterior – agora chove, agora faz sol, agora o carro passou, agora faz calor. Reinaldo vive sem passado nem futuro; vive de presentes momentâneos e está disposto a bater-se pela sua identidade factual contra esses iludidos que pejam o mundo – gente como eu. Reinaldo é um anarquista temporal. Esta filosofia permitir-lhe-á prosseguir com a sua estratégia de desacreditação daquilo que parece óbvio aos outros, pois não se deterá perante argumentos históricos ou cogitações de cenários eventuais. Ou é, e é-o agora, ou nunca foi nem será.
Reinaldo é contra o nosso sistema linguístico, presumo. Põe em causa que um “cachimbo” se chame “cachimbo”. Porque será? Poderá ser por não lhe soar bem ou por estar a ver qualquer coisa diferente. Esta última perspectiva atira-o para o limbo da mente – como podemos estar a ver duas coisas diferentes se eu estou aqui com ele, se temos exactamente a mesma definição para o que vemos e se ele reconhece tudo isto como verdadeiro? Como podem duas realidades perfeitamente coincidentes serem distintas entre dois indivíduos com a mesma percepção, ao mesmo tempo? É verdadeiramente absurdo. Reinaldo, queres ser mais surrealista que os mais surrealistas?
Acho que ele gosta de rebaptizar as coisas. Deve julgar-se suficientemente desenvolvido e importante para redefinir as palavras que ele não inventou. E aqui salta a vertente artística de Reinaldo para a frente dos nossos olhos. Reinaldo, o detentor da patente da “realidade absoluta”, pode então renomear tudo o que lhe apeteça.

Está tudo mais claro, Reinaldo. Sim, claro, isto nunca é um cachimbo. Nem nunca Sherlock Holmes fumou um. Porque Sherlock Holmes nunca existiu e porque só víamos o actor que o caracterizava num cinema ou numa revista – portanto, uma acumulação de virtualidades, uma soma de nulidades concretas. Cachimbos há-os em tabacarias. “Odoratice”… que raio de nome, Reinaldo. Porquê, Reinaldo? É o teu gosto pessoal?
- É aquilo que me lembro de dizer quando seguro este “odoratice”, este que tenho aqui na minha mão, dentro do bolso, quando o acendo, como agora – dando uma baforada veemente – Cheira-me a este nome. Mas amanhã poderá ser outra coisa qualquer. Os dicionários devem ser permanentemente actualizados mediante as experiências pessoais de cada um e há léxicos diferentes para cada um. Tem de ser assim.
Para Reinaldo, não há volta a dar. Eu não quero discutir mais. Julgo que sou o único amigo que lhe resta e para mim, pobre enfezado que tem memória do passado e uma visão romântico-virtual das coisas, dói-me ver Reinaldo a pregar solitariamente os seus ideais, incompatibilizado com o mundo normal das normais pessoas. Vou acenando que sim, embora sinta, com alguma pena, que Reinaldo caminha a passos largos para a insanidade total, tal como nós ainda a definimos.

segunda-feira, agosto 14, 2006

O Cão Perdido


6:45.
- Está lá? Olhe, acabei de encontrar o seu cão.
- Como? – num registo claramente enramelado – Quem fala?
- Não interessa. Vi o seu anúncio e estou a ligar-lhe por causa do Dali, o labrador preto.
- Dali? – voz entrecortada por um bocejo – Nós já resolvemos esse caso há quase um ano… Obrigado pela preocupação, mas esse não é o nosso cão. O Dali está connosco… e está bem.
- Amigo, não me está a dizer que o cão que acabou de me urinar as jantes e defecar em cima da pasta do meu PC que inadvertidamente deixei no chão não é o seu cão…
- Receio que não…
- Como não? Ele parece-me “perdido”, porque um cão em condições normais não faz este trabalho; além do mais, no anúncio está a dizer “para ligar para os seus donos”, já que “quer voltar para casa” para “descansar”. Além disso, as expressões focinhais do cão indicam-me que se trata mesmo do Dali.
- Não pode ser – ouve-se um ruído de fundo que poderá ser o remexer nos lençóis – o Dali está agora bem acorrentado, não sai para a rua. E duvido que faça essas coisas que me disse. Onde você se encontra?
- Estou à porta do café Primavera em Aveiro. E quero que você assuma a responsabilidade pela porcaria que este cão fez!
- Ouça, são 6:45 de manhã e já lhe disse que o Dali…
- Mas acha que eu ando a gastar dinheiro do telemóvel que a empresa me paga a telefonar a estranhos para brincar? Já lhe disse que é ele! É preto, abana o rabo quando chamamos por “Dali”, é vagamente parecido com o pintor surrealista na porcaria irreconhecível que faz, conserva exactamente o olhar de inocente que aparenta na foto e quando lhe pergunto “tens mesmo 9 anos?” ele fica mudo, a arfar para mim – ora, quem cala, consente! E agora está a fazer-se à minha sandes de fiambre! Venha aqui ter, se fizer favor!
- Lamento, esse não é o meu cão. Há muitos labradores com a descrição que me fez. Passe bem.
- Você acha que eu estou a brincar, não é? É esta a educação que dá ao seu cão? Quer dizer, primeiro é anúncios à procura dele; agora, depois da porcaria feita, desresponsabiliza-se dos actos que ele comete! Não tenho culpa que não saiba ensinar o seu cão! Venha aqui ter, já lhe disse! Venha limpar-me as jantes e a mala do meu PC, que nem lhe consigo chegar perto!
Chamada interrompida.
7:00.
- Senhor do Dali?
- Você outra vez? Ouça, já não estou a achar piada nenhuma…
- Ai não está? Quem não está sou eu! E já lhe disse que não estou a brincar! Pois fique sabendo que o seu cão babou-se para dentro do meu galão enquanto você desligou-me o telefone na cara! E estive a correr atrás dele para apanhá-lo!
- Olhe, lamento muito, mas agradeço que não…
- Você agora vai ouvir-me… e bem! Quer fazer o favor de levantar o seu rabo da cama e vir buscar o seu cão? Eu nem quero saber de recompensas, só quero que me pague o pequeno almoço e limpe o que tem a limpar!
- Tenha juízo… esse não é o meu cão!
- Ai é assim? Pois bem, ouça lá isto – ouve-se um pequeno ruído, como se o emissor estivesse a fazer força, a arrastar algo pelo chão – Ó Dali, fala lá para o teu dono para ele reconhecer que és tu - há um pequeno barulho, não perceptível – Então, é ou não é?
- Não percebi nada. Já lhe disse que o Dali está aqui comigo, esse é outro cão…
- Vem aqui buscá-lo ou não?
- Não!
- Ai é? PUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!!!! – um barulho ensurdecedor, quase que a ligação ia abaixo.
- Que… que foi isto? – o receptor parece assustado.
- Rebentei-lhe a cabeça com um balázio! Agora já não há cão para ninguém! Se quiser, venha cá buscar os miolos! Eu avisei-lhe!
- Você é maluco! Deu cabo de um pobre animal! – a voz emociona-se – Você devia ser preso!
- Agora está com medo, é? – num registo sarcástico.
- Eu… eu vou ligar à Polícia! Você está armado e é perigoso! – gaguejando.
- Amigo… acalme-se… você foi apanhado para o programa da manhã da Rádio Tótil FM!
- Hã? – expressão de total surpresa.
- Não se preocupe, não aconteceu nada de mais. Só disparei sobre um toxicodependente travesti e o cão vadio que o acompanhava! Isso do Dali era falso, foi só um truque para captar a sua atenção! E foi difícil, você ainda desligou e tal…
- Mas você matou mesmo alguém? – ainda sentindo preocupação.
- Eh pá, matei um desses vagabundos que ninguém se importa de ver morto mais o seu rafeiro cheio de pulgas… Você importa-se?
- Quer dizer…
- Não diga mais nada! Só por participar, você acabou de ganhar um vale de compras no valor de 250 euros na loja Pagabem, em Ílhavo! E que tal?
- Eh, pá, nada mau! Só por participar?
- Só por participar! Passe nos estúdios com a senha que lhe daremos a seguir e é só levantar o talão! Um abraço a todos aí em casa… e também ao Dali! Esqueça a história da Polícia, está bem?
- Eh, pá, está bem! Obrigado e bom dia!
- Bom dia.
18:30. Após algumas queixas pelo mau cheiro, as autoridades vêm finalmente recolher o cadáver do toxicodependente que jazia ao pé do café Primavera. Do referido rafeiro que o acompanhava não há sinais, nem tão pouco vestígios de sangue. Supõe-se que se tenha perdido.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Algures Entre o Céu e o Inferno


Morrison (M) – Man, és tu quem eu penso que tu sejas?
Hendrix (H) – Eh, pá, lá vem este gajo… Jim, o grande poeta do século… há quanto tempo!...
M – Serás tu o Rei Lagarto? Cabelos feéricos, dedos de cristal enegrecido, dançando velhas canções índias no ventre dos lobos…
H – Mas qual Rei Lagarto, meu?! Sou eu, o Jimi! Qual é a tua? Estás a ressacar?
M – Jimi! Desculpa lá… estou mesmo ressacado. Estou a ficar alterado com a falta do néctar da inspiração.
H – Pois é… neste sítio não há nada que se beba. Mas tu foste sempre um maluco, não é da falta da bebida!
M – Haha, tens uma piada do caraças… deixa lá que tu e o teu estilo…
H – Ouve lá, e um acidozinho, tens?
M – Quem me dera, man, quem me dera… Voando alto sobre as chaminés, fazendo amor com os cometas dentro de uma juke-box…
H – Sabes quem é que eu vi no outro dia? A maluca da Janis.
M – A Janis? Ela curtia uma onda marada… Tem ácidos?
H – Não, pá. Ela está toda lixada… no outro dia estava toda stressada à procura de umas calças novas e de umas flores para o cabelo.
M – A vã busca do material… que é feito da espiritualidade dela?
H – Qual espiritualidade? Uma gaja que cantava blues a falar de Mercedes-Benz? Man, ela sempre foi uma bezana de primeira… Tiraram-lhe a bebida, tiraram-lhe a alma…
M – A alma, esse fluido místico encarcerado dentro de um corpo humano impuro, fétido…
H – Man, se eu visse o Kurt por aí, até lhe perguntava se ele nos orientava alguma droga que nos ajudasse…
M – O Kurt?
H – O Kurt… O Kurt Cobain, um puto lá da minha terra… Um gajo porreiro, um junkie de eleição, mas muita esquisito, fala coisas dispersas sem construir frases com nexo…
M – Eh, pá, não estou a ver quem é…
H – Não sabes quem é? Uma estrela quase tão grande como nós, ídolo das novas gerações…
M – Man, eu morri em 1971 em Paris, fiquei por lá, sei lá quem é o gajo…
H – Em Paris? Tu curtiste a França? Eu bati a bota em Londres, um ano antes. Londres… cena porreira, falavam a nossa língua… Acho que curti com uma ou outra francesa, mas nem percebi se ela gostou ou não… é só “amour, frou-frou, je t’ aime…”, sabes como é que é, um black a tocar guitarra excitava as gajas ao rubro…
M – Londres, Los Angeles, Nova Iorque, Paris,… tudo a mesma merda. Estive com gajas de todo o lado, criava-las na minha cabeça, se fosse preciso...Mas antes a beleza poética de um boulevard que a frieza arrogante do Big Ben… Devíamos ter destruído esses preconceitos urbanísticos, esses ditadores do espaço, esses ícones da subjugação… O espaço é livre, é uno, é nosso… mas quem é esse Kurt, afinal?
H – Eu também só o conheço por ser da minha terra, também nunca ouvi a banda dele… Aparece aí a murmurar de vez em quando… Faz barulho com a guitarra de uma forma espantosa…
M – Não quero saber de guitarras. A mim interessam-me as palavras, a expressão da dor, da euforia, do amor e do ódio que atravessa toda a mente dos homens… O sexo dos anjos e a fúria das águas de rios imaginários no deserto… E tu, quando é que deixas esse instrumento para te concentrares na essência infinita que é o sentimento humano expresso pelas palavras?
H – Man, a guitarra é a minha essência, a guitarra é a minha vida…
M – Ou a tua morte…
H – Ou a minha morte… Queres ouvir a minha nova malha?
M – Não, meu, deixa estar… Estou demasiado sensível para ouvir algo com atenção… O que é que vais fazer com esse Zippo?
H – Ia utilizá-lo para sacar uns sons espaciais da minha guitarra… e depois ia queimar a guitarra. Estou farto de encores e de tocar a “Purple Haze”…
M – Ah, a celebração… A rendição dos homens aos braços dos deuses… A festa inútil por gente inútil sem esperanças… nuvens de pó imensas que crescem dos desfiladeiros e nos entram pelo cérebro… giramos e tombamos nas catacumbas da matéria até apodrecermos eternamente…
H – Estás a chamar-me de inútil?
M – Não, meu, estava só a divagar… Estou com dificuldades em expressar-me sem recorrer a nenhuma droga…
H – Man, és um chato de primeira!... Só te consigo aturar quando estou alucinado… Como naquela vez em 1968, lembras-te?
M – Devia estar bêbado…
H – Estávamos os dois. Não queres reeditar esse momento? Passamos melhor o tempo…
M – O que é o tempo? Man, és tão alienado… prendes-te nesses conceitos relativos que não interessam às almas superiores… tu não tens tempo a perder nem tempo a ganhar… tu és o teu próprio tempo…
H – Desisto. Prefiro voltar a tocar a “Purple Haze”. Curte lá este som… Yeah, baby! Uhhhh… Yeah!!!
M – Avisas-me quando arranjares alguma droga? Eu snifo qualquer coisa que me devolva ao regaço dos deuses…
H – Sim, estou a ver que precisas de algo. Vai passando por aí, pode ser que tenha novidades… Deixas-me continuar a explorar sons na minha guitarra sossegado? Não queres mesmo ouvir?
M – Vai, continua lá na tua experiência. Se sentires o útero da mãe natureza nas cordas da tua guitarra, eu quero estar aqui para ver…
H – Já estive com ela muitas vezes… tens é estado distraído… Jim, estás mesmo em baixo.
M – Em baixo? Eu julgava que estava em cima…
H – Man, tu próprio disseste que o tempo é relativo; se o tempo é relativo, porque o espaço não há-de ser também? Em baixo ou em cima não interessa, nós somos o universo.
M – Boa, man, essa foi boa. Apanhaste-me.
H – Estás a ver? Também não sou assim tão limitado… Fica aí um bocado a olhar para o infinito ao som da minha guitarra, as coisas hão-de aparecer naturalmente…
M – Então fico… Que mais podemos fazer?
H – Nada. O que podíamos fazer já foi feito. Agora só temos de ficar por aqui.
M – “Temos”? Por quê? Tu sabes?
H – É uma intuição, como todas as outras. Não tentes saber pelas tuas palavras.

quarta-feira, agosto 09, 2006

A Não Perder


Esta foi uma iniciativa pioneira. Audaz, para alguns; louca, para outros (quase todos); não deixou ninguém indiferente, contudo. As televisões de todo o Mundo reuniram-se. No fim de extensas negociações que duraram largas horas (sem recurso a directos), eis o que está reservado para visionamento obrigatório nas televisões portuguesas durante o ano de 2007:

Janeiro
- Mortos na estrada por excesso de álcool após o reveillon;
- Assassinato de quatro crianças num orfanato no distrito do Porto – inclui: chegada sob ameaça dos réus ao tribunal, José Maria Martins no papel de advogado de defesa e debates sociológicos no Parlamento;
- Casamento de uma filha de um banqueiro português com 1 dos seguintes pretendentes, eventualmente à sua escolha: um actor de telenovelas brasileiro, um joalheiro de 50 anos israelita ou um dromedário argelino.

Fevereiro
- Mortos na estrada por aluimento de terras junto ao IP4;
- Crise petrolífera mundial, com os preços da gasolina sem chumbo-95 a dispararem, numa acção aparentemente concertada das petrolíferas, para os 3,15 €/litro nos revendedores portugueses. A crise não deverá afectar Espanha, sendo que em Ayamonte o mesmo produto estará disponível por menos 1,25 €/litro que em Portugal. As manifestações e buzinões de protesto deverão durar todo o mês – e não se queixem, que o mês é o mais curto de todos;
- Nova série “Morangos com Açúcar”. Deverá intitular-se “Os Morangos no Carnaval numa Falésia junto ao Cabo da Roca, Mascarados de Animais Marinhos e com 3 Amigos Novos que Vão Cantar e Divertir todo o Colégio da Barra, que Entretanto Ardeu Outra Vez e Por Isso Foram para a Falésia junto ao Cabo da Roca Passar o Carnaval e Esgotar o Orçamento Disponível em Dispendiosas Imagens no Exterior”. Deverá acontecer, pelo menos, um acidente junto à falésia, mas não se verá sangue.

Março:
- Mortos na estrada por excesso de velocidade na ponte Vasco da Gama;
- Guerra no Médio Oriente: uma espectacular reedição da Guerra dos Seis Dias, mas com mais meios técnicos de cobertura. A CNN assegurou os direitos de transmissão de um bombardeamento no Líbano, a começar dia 8 pelas 2 da madrugada locais, para desencanto da BBC, que fez tudo para conseguir o exclusivo mundial. Contudo, a CNN assegurou o patrocínio da Coca-Cola durante o bombardeamento mortífero e isso ditou a diferença;
- Cheias nas lezírias ribatejanas. Campinos clamarão pelo Verão e culparão o Governo pelas deficientes condições de escoamento. Governo declinará responsabilidades e apontará o dedo à bacia hidrográfica do Tejo.

Abril:
- Mortos na estrada no fim-de-semana prolongado da Páscoa, provavelmente por excesso de álcool, velocidade e talvez de amêndoas;
- Digressão mundial dos D’Zrt chega finalmente à Rússia. Tó P. irá mascarar-se de soldado russo em frente ao Kremlin. Angélico irá vestir-se de tchetcheno para uma fotografia no meio da Praça Vermelha. Ambos levantarão uma grande polémica e o grupo será forçado a cancelar os 2 concertos. Os desacatos entre os fãs irados provocarão dezenas de mortos e Putin desmarcará a recepção oficial ao grupo. Zé Milho irá aproveitar para fazer uma madeixa loura no aeroporto;
- Novo concurso na RTP: “A Degola dos Inocentes”. 1 dos concorrentes será alvo de uma maldade por parte de algum dos outros 5 concorrentes (tipo um choque eléctrico). Após algumas pistas, algumas delas falsas, ele acusará um concorrente. Se este for efectivamente o culpado, ser-lhe-á cortado um dedo. Se este se declarar inocente, será degolado. Emoções fortes é o que se espera deste concurso apresentado por Jorge Gabriel ou, se o Sporting estiver a ser muito prejudicado no campeonato, por Fernando Mendes.

Maio:
- Mortos na estrada na região de Fátima, por excesso de peregrinos a piquenicarem nos acessos ao templo;
- Final do campeonato de futebol: gravação de um CD com insultos aos clubes rivais por parte do clube vencedor na festa de consagração. O treinador vencedor surgirá na capa desse CD a virar o rabo para o ouvinte, com um sinal positivo do seu polegar. São esquecidas todas as questões sobre arbitragem;
- O 14º,15º e 16º espectáculos da Leopoldina nos Coliseus de Lisboa e Porto irão acabar com uma celebração colectiva de LSD e marijuana entre os actores e alguns espectadores. A televisão deverá captar as paranóias de Leopoldina no palco, incluindo aquela em que ela amarra um castor a um duende e pega fogo a ambos.

Junho:
- Mortos na estrada por elevada concentração de sardinhas assadas no asfalto;
- Torneio de Toulon irá revelar mais uma jovem promessa portuguesa, que irá passar todo o defeso em conversações com os maiores clubes ingleses e espanhóis, com inúmeras viagens e desmentidos pelo meio, mas que no fundo irá permanecer no Olivais e Moscavide por empréstimo;
- Nova política fiscal anunciada pelo Governo: cada peça de roupa cor-de-laranja deverá ser taxada uniformemente a 15 € por pessoa e a 1 € por cada acompanhante dessa pessoa, até ao limite máximo de 1500 €/ano. Essa mesma pessoa perderá todos os benefícios fiscais acumulados em exercícios anteriores até 2001. Este anúncio deverá merecer veemente repúdio do Bloco de Esquerda e Ana Drago deverá fazer greve de fome, toda nua, junto ao Palácio de S. Bento, durante uma semana. Poderá eventualmente sucumbir, mas isso não foi assegurado pelas televisões aquando do fecho das negociações, para grande frustração dos canais generalistas.

Julho:
- Mortos na estrada por falta de sinalização adequada nas principais Estradas Nacionais;
- Roubo espectacular no Mercado do Bolhão: cerca de 2 toneladas de leguminosas e 200 kg. de peixe serão levados pelos larápios. O pranto generalizado das varinas e agricultoras atingirá proporções inimagináveis e o Governo ver-se-á obrigado a conceder um subsídio extraordinário. Levantamentos populares de indignação por todo o Minho, Trás-os-Montes e Beira Alta farão cerca de 3 mortos, um dos quais será cão;
- Divórcio entre a filha do banqueiro português casada em Janeiro e o dromedário argelino, o pretendente por ela escolhido. Ela acusar-lhe-á de a ter enganado, fazendo-se passar por um camelo. Ele não comentará, divertido que estará a filmar mais uma campanha publicitária da Camel na Turquia.

Agosto:
- Demasiados mortos na estrada, com o regresso maciço dos emigrantes;
- Incêndios florestais diários e a deflagrarem várias vezes no mesmo sítio, se possível;
- Querem mais que isto para este mês?

Setembro:
- Mortos na estrada à saída de locais de diversão nocturna. Essencialmente, as vítimas serão jovens, mas ocasionalmente também encontraremos bebés e grávidas, para consternação geral;
- Arranque de campeonato desastroso para o Benfica. O novo treinador, Álvaro Magalhães, morrerá de ataque cardíaco na deslocação encarnada ao campo do Nacional da Madeira, após um falhanço de Pedro “18 milhões” Mantorras. As ambulâncias não conseguirão chegar a tempo, dado que o público pensará que o ruído das sirenes virá da claque feminina e desprezará a chegada das equipas de socorro. Apesar da morte do líder, Fernando Chalana congratular-se-á com empate conseguido com um “penalty” duvidoso apontado por Rui Costa no final do 14º minuto de compensação. O árbitro não julgará ilegal o recurso de Rui Costa a uma bengala, perante o sorriso conivente de Rui Alves na tribuna;
- Legalização das ofensas verbais no Parlamento. Será possível um deputado comunista chamar “filho-da-puta fascista” a um deputado do CDS-PP e insultar os ministros da maioria com “és um corno de primeira, a tua mulher é uma vaca e as reformas que estás a dar aos cotas são uma miséria do caralho”, ao que o Ministro deverá responder “a tua mulher não se queixou”. A televisão deverá enfocar-se, com recurso a vários directos, na primeira sessão parlamentar nestes termos.

Outubro:
- Mortos na estrada à entrada das localidades, por motivos desconhecidos;
- Mega espectáculo na Praça Sony: Delfins, Cradle of Filth, Floribella, Manowar e Coro Sto. Amaro de Oeiras juntar-se-ão num tributo aos imigrantes romenos do Metropolitano de Lisboa. Batalha campal durante o concerto do Coro de Sto. Amaro de Oeiras, cabeças de cartaz, provocará dezenas de feridos e intoxicações por inalação de gás pimenta;
- Holanda afundar-se-á no Mar do Norte, por rebentamento de vários diques em simultâneo. Bélgica e Alemanha receberão os refugiados; controlo das explorações de cannabis passará para as mãos de cartéis colombianos. Rijksmuseum será transferido para o Centro Cultural de Belém. Van Gogh, Vermeer e Rembrandt adoptarão dupla nacionalidade holandesa-portuguesa.

Novembro:
- Mortos na estrada, devido à incompreensível regularização do trânsito em contra-mão nas auto-estradas;
- Tsunami estrondoso na Figueira da Foz não provocará outros danos que não humanos. A malha urbana da cidade permanecerá miraculosamente intacta, mas os seus habitantes serão varridos Mondego acima. Os novos habitantes da Figueira serão essencialmente peixes, mas ainda se encontrarão algumas espécies de polvos nos edifícios mais baixos. Cadáveres recuperados até à zona de Penacova até ao dia 25 do mês;
- Desmantelamento de grupo organizado e há longo tempo referenciado que promovia acções de reciclagem de pilhas, papel e plástico na zona da Grande Lisboa. A Polícia Judiciária congratular-se-á pela rapidez de execução, bem como o Ministro da tutela; o país sentir-se-á mais seguro que nunca com a falta de Ecopontos e Pilhões (que nunca ninguém viu, mas que incomodavam muita gente).

Dezembro:
- Mortos na estrada. A BT-GNR referirá que maior parte dos acidentados estavam a comer filhós e sonhos ao volante;
- Pai Natal dirá que não à distribuição de prendas, alegando atrasos nos pagamentos. As renas ficarão chocadas e as crianças não lhe darão grande importância, pois irão descobrir muitos outros indivíduos de barba nos diversos centros comerciais; cancelamento definitivo da personagem Leopoldina, substituída pela Carnificina, um simpático éspecimen feminino de escorpião venenoso, que canta death-metal e paralisa crianças, resultando num incremento significativo das vendas natalícias do Grupo Sonae;
- EUA anunciarão novo programa de desenvolvimento mundial. O plano irá incluir uma Guerra Mundial de 3 em 3 anos, nunca em território americano e sempre, de preferência, perto da Alemanha. Portugal não se irá pronunciar, a não ser pela voz rebelde de Ana Drago, se entretanto sobreviver à greve de fome de Junho.

O não cumprimento destes requisitos resultará numa pena extremamente grave a aplicar aos países, entidades e indivíduos violadores do acordo. A pena será de tal forma grave que ainda não está decidida, não estando posta de parte a designação de Júlia Pinheiro para único pivot televisivo de todas as estações, 24 horas por dia.
Um bom ano…. e boa televisão para todos vós!

terça-feira, agosto 08, 2006

Não Te Deixarei Morrer, Eládio Clímaco


Eládio Clímaco possui uma discrição assinalável, considerando o nome que está inscrito no seu B.I.. “Eládio Clímaco?”, pasma-se quem olha para o nome. “Deve ser um excêntrico”! Nada mais erróneo. Eládio é uma paz de alma. Um senhor da televisão. A RTP é a voz de Eládio, Clímaco é a imagem da RTP. E com isto, Eládio já está, com mérito, nos anais da História recente de Portugal.
Eládio tem o que muitos sonham ter, mas que poucos conseguem: uma carreira. Ele contém em si a galanteria típica dos anos 50 do século XX. Carrega um sorriso terno digno de um Clark Gable. Envelhece sem nunca perder a simpatia que o caracteriza. Clímaco transpira tradição e afabilidade.
Eládio bem que poderia olhar com desdém para sucedâneos seus bem mais extrovertidos, mas também claramente mais aparvalhados, tipo Jorge “Treinador de Bancada com os Azeites” Gabriel, José Carlos “Abichanado com a Mania que tem Graça” Malato e mesmo Fernando “Imito para a Elite” Pereira. Mas ele, na sua grandeza moral, não o faz. Eládio sorri antes com bonomia. Clímaco passeia a sua classe como locutor de programas do National Geographic, sereno e tranquilo, enquanto os outros fazem figuras questionáveis em anúncios e programas de qualidade duvidosa.
Atentem bem na figura de Eládio: sóbrio, elegante, cortês. Mesmo nos anos 70, nunca se lhe viu uma rebeldia maior que uma gola de pull-over timidamente subida ou uma patilhazinha levemente comprida. Olhávamos para Fialho Gouveia e era vê-lo fumar em frente à câmara; reparávamos em Carlos Cruz e lá estava ele com enormes óculos de lentes esverdeadas; víamos Luís Pereira de Sousa bronzeadíssimo e bigodudo na Feira Popular num Domingo de Verão. E Eládio, recatado, esboçava um sorriso de camaradagem, como que dizendo “isso não é para mim, meus caros; eu quero é partilhar o silêncio das águas com os animais, passear no bosque e trocar cartas de amor com a Ana Zanatti”.
Com Zanatti, Eládio protagonizou uma das maiores histórias de amor impossível do imaginário português dos anos 70/80 do século passado. Folheavam-se revistas a ver se encontrávamos algo que nos dissesse que Clímaco e Zanatti finalmente assumiram a sua adoração mútua. Víamo-los com tanta empatia a apresentar Festivais da Eurovisão e Jogos Sem Fronteiras que sempre pensámos que haveria algo mais nos bastidores. Mas faltou sempre aquela fagulha. Eládio e Zanatti acabaram por viver uma paixão bastante comedida – como se fossem actores de um filme romântico a preto-e-branco. A paixão construiu-se de troca de olhares e sorrisos cúmplices, por entre palavras cuidadosamente ditas e ao som de Carlos Paião.
Eram ambos de tal forma marcantes que se tornaram o blueprint para qualquer apresentador que se preze. A sua presença foi tão luminosa que, hoje em dia, medimos a qualidade de apresentação em forma de “Clímacos” e “Zanattis”. Por exemplo, Júlio Isidro ainda consegue ser “8 Clímacos em 10”, mas já Tânia Ribas de Oliveira apenas vai nas “5 Zanattis em 10”, faltando-lhe ainda um longo caminho para percorrer. Ai de quem tente pôr em causa esta escala de excelência locutiva.
Clímaco tentou, numa fase posterior em que Zanatti se distanciou para outras lides, formar um par com Ana do Carmo, uma ilustre desconhecida que sublinhou o início dos anos 90 com linhas de esperança. do Carmo era igualmente simpática e acima de qualquer suspeita. Mas Clímaco já desenvolvera rotinas inquebráveis com Zanatti. A mística com do Carmo apenas durou breves anos, ainda com os Jogos sem Fronteiras e na Arca de Noé, com os animais, uma grande paixão sua, como pano de fundo. Depois, do Carmo eclipsar-se-ia. Eládio persistiu, ciente que a sorte bafejaria os que são bons de coração, como ele.
E então, o advento da televisão privada retirou-lhe o tapete sob os pés. A concorrência implacável não concedeu espaço à sua imagem. Era urgente algo novo para os responsáveis e directores. Os Jogos sem Fronteiras desapareceram do espectro televisivo. Os Festivais da Eurovisão viram a sua credibilidade destruída aos microfones de Rui Bandeira e de outras personagens vergonhosamente foleiras. Friamente, Clímaco passou à Velha Guarda num instante. O seu coração podia estar dorido, mas a compostura e dignidade ninguém lhe conseguiu sonegar.
Restar-lhe-ia a locução dos mais variados programas. A sua voz foi adquirindo a sensibilidade do veludo e a sabedoria dos tempos com o passar dos anos. A sua influência atingiu o zénite nestes meandros da locução. E, mais uma vez, ouvimos Clímaco e Zanatti, um masculino, outra feminina, lado a lado. A ternura dos bons velhos tempos. Ambos a apresentar a vida na selva indonésia ou os caminhos perdidos do litoral alentejano. Agora, já ninguém consegue conceber um programa sobre a fauna australiana sem sentir a voz cuidada de Clímaco. Se conseguirmos, estamos a falar de imitações baratas. Não chegam sequer a “4 Clímacos em 10”.
Este ano, veríamos quão cruel foi o destino para o bom do Eládio. Estava como peixe na água, a apresentar o “seu” Festival da Eurovisão. Tudo parecia correr pelo normal. Já não havia a grandiosidade de, por exemplo, “Um Grande, Grande Amor” de José Cid, nem sequer a definição pop de “Waterloo” dos ABBA, mas as coisas também não estavam assim tão mal. Só aqueles finlandeses malucos pareciam destoar. Mas quando esses finlandeses, os Lordi, começaram a ganhar pontos atrás de pontos, Clímaco perdeu a esperança. Sentimos um homem destroçado nesse dia. Era ouvi-lo com desespero dizendo “Estes finlandeses vão ganhar, com certeza… mais 12 pontos da Suécia. A Dinamarca seguramente que vai dar 10 pontos na próxima votação”. O desalento era evidente. Eládio revelou, sem quaisquer pudores, todo o jogo de influências por detrás do Festival da Eurovisão, onde os vizinhos se pontuam reciprocamente com classificação máxima. Ninguém parece levar a mal, mas só Eládio abriu o seu peito à Europa.
Não estava certo, Clímaco. Aqueles horrorosos metaleiros finlandeses colocaram um ponto final no teu cândido sonho – a preservação do Festival da Eurovisão como baluarte da decência, longe das modernices exóticas e fiel à tradição de António Calvário, Manuela Bravo, Armando Gama e até Dora. Agora estás sozinho. O golpe foi forte demais, doeu-nos ouvir o embargo na tua voz, a tremura nas tuas mãos. Resiste, Eládio.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Pastilhas Elásticas


Perguntei-lhe o que ela achara do meu amigo.
- Não tem estilo – respondeu, taxativa, soprando um balão volumoso de uma pastilha de morango.
A resposta não foi assim tão simples quanto parecera. Ela quis dizer muitas coisas.
Não ter estilo significa não dar nas vistas. Não serve.
Não dar nas vistas significa ser mais um indivíduo incógnito na multidão. Não serve.
Um indivíduo incógnito na multidão não é comentado por ninguém. Não serve.
Quem não é objecto de comentário não satisfaz os desejos de protagonismo. Não serve.
Quem não detém protagonismo não está talhado para liderar nem para transmitir segurança. Não serve.
Aquele que não transmite segurança não agrada a uma mulher, não lhe preenche uma das essenciais qualidades exigidas. Não serve.
Se não agrada a uma mulher, bem que pode desaparecer que não faz cá falta.
Não interessa se o indivíduo em causa pudesse andar camuflado para evitar que pensem que ele tem estilo, que dá nas vistas, que é altamente comentado, que é um líder cheio de segurança e que agrada, e de que maneira, à sua mulher – ele até podia ser o gajo da telenovela ou o gajo do Nobel. Mas como não houve aquele “click” inicial decorrente da primeira impressão superficial, então ele perdeu-se pelo escoador da memória, foi efectivamente mais um anónimo que raiou as pestanas maquilhadas dela sem deixar marcas.
- Não há segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão – ela lembrou-me essa fatídica frase feita, fazendo-me ver que estava perante mais uma adepta do instantâneo, uma indefectível do café solúvel em água, uma aficcionada do sabor fugaz das pastilhas elásticas, coleccionadora de fotografias à la minuta. Para ela, segundas oportunidades, óperas intermináveis, esperas superiores a cinco segundos, tudo o que não tivesse o rótulo de novo, fresco e limpo, era simplesmente insuportável, antiquado, merecedor de desprezo.
Ela adora o gajo do Lamborghini amarelo filho do industrial dos sofás, o tal que muda de penteado todas as semanas e que frequenta o solário de forma a passear as suas diversas tatuagens, esse que apareceu no anúncio dos iogurtes e que mora, diz-se muito por aí, num condomínio fechado lá para os lados do Guincho.
- Esse gajo, sim, tem estilo – comentou com os olhos a brilhar, expelindo novo balão gigantesco pela boca.
Furei-lhe o balão na cara, deixando-a totalmente coberta de pastilha. Ela não achou graça.
- Devias ver o teu estilo agora – ironizei. Nesse momento, passei a ser mais um “parvalhão sem graça”. Entenda-se, “sem estilo”; são tudo variações sobre o mesmo tema.
Podia começar a ler mais revistas sociais, ir aos mesmos sítios de toda a gente e vestir a marca da moda, a ver se aprendo alguma coisa sobre a evolução da sociedade contemporânea. É que, por este andar, tornar-me-ei especialista em rebentar balões na cara de mulheres iludidas.

domingo, agosto 06, 2006

Crispim



O gato foi lamber-lhe a cara pela manhã, mal o sol se levantou. Deu duas voltas por cima do colchão de água, soltou um ligeiro miado e foi anichar-se junto do vaso no corredor. Crispim lá acordou, passando a mão pelo cabelo rapado, coçando o tronco nu sob o lençol branco, observando com olhos cerrados a luminosidade que raiava pelas aberturas dos estores. Meio zonzo, cumprimentou o gato com uma festinha na cabeça e entrou na casa de banho. Apoiando uma mão sobre o mármore claro do lavatório e passando com a outra mão sobre a pele junto ao queixo, concluiu que teria que dar um retoque na sua pêra. Colocou um CD de uma colectânea de êxitos do disco sound no leitor e retornou aos lavabos para lavar os dentes. Depois, ligou a máquina de barbear e eliminou todas as pilosidades que cresceram durante a noite, como ervas daninhas sobre uma cara que se queria aprumada, esteticamente desenhada de forma a satisfazer o seu desejo de asseio e cumprir todos os parâmetros do seu conceito de beleza moderna. Enquanto os Pet Shop Boys exortavam os russos a irem para o oeste, iludindo-os com promessas de vida boa, vida pacífica, o gato higienizava-se com a sua língua e Crispim espalhava cuidadosamente a sua gama de cremes e loções para a pele, para os olhos, para os lábios, para o cabelo, uns em forma de bisnaga, outros no corpo de um spray.
Na cozinha, experimentando os seus chinelos Pierre Cardin na pedra lisinha e impregnada com uma fragrância a framboesa, abriu uma revista sobre decoração. Colocou o canecão sobre a mesa e despejou o leite para cima dos corn flakes estaladiços. O gato encostou-se à perna depilada de Crispim, mas este ignorou-o enquanto lançava a colher à boca com os olhos postos num magnífico candeeiro sueco. Limpou os cantos da boca cuidadosamente com um pano. Pôs a caneca na máquina de lavar louça. Vaporizou as plantas na marquise ao som de Earth, Wind and Fire. Mas quando se olhou satisfeito ao espelho com o seu novo anel já cantarolava Boney M.. Pensou em ir ao supermercado comprar agriões para sua salada. Ajeitou o brinco brilhante na sua orelha e endireitou os óculos escuros na sua cara. Certificou-se que levava todo o lixo para o caixote na rua.

Crispim era gay. Homossexual. Bicha até ao tutano, paneleiro desenvergonhado – embora isto não fosse bonito de se dizer. Não enganava ninguém. Havia que pôr os pontos nos i’s, era uma florzinha da pior espécie que adorava ser penetrado por trás por belos marinheiros. Mudava regularmente de parceiro, sem nunca se estabilizar. O seu sonho era um broche por noite – ou, como referia nas revistas, “ando à procura do amor como qualquer pessoa normal”. Só que Crispim não era normal, era demasiado gay para ser normal, e sabia-o. Era puramente gay, no sentido mais perverso do termo. Maricas, mariconço sem reservas. Aquelas falinhas mansas de desmistificação do protótipo gay, como dizer que “somos seres perfeitamente comuns, apenas com níveis de sensibilidade inusitados para um homem, mas com capacidade de viver e sentir como os demais”, não se revestiam de sentido para Crispim. Ele queria extremar as possibilidades carnais do seu corpo até aos mais ousados limites juntamente com outros da mesma igualha. Qual sensibilidade, quais manifestações exóticas com drag queens à mistura, ele queria era curtir da maneira mais física possível. E por aqui se explicava o enorme prazer de ser gay.
Mas Crispim era rico, famoso, não podia ser um veado como os outros que se metiam em bicos de pés para alcançar o estatuto social de minoria. Ele já o detinha, como bênção não pedida. E como não conseguia disfarçar o óbvio que era a sua efeminada figura, reconheceu desde cedo as suas preferências sexuais – “homens peludos e fortes, que lhe fizessem rir e que apreciassem arte colorida, de preferência” – e assumiu desde logo um discurso de normalidade perante a opinião pública. Isto é, aos olhos de toda gente, Crispim afirmava que era um cidadão normal, cumpridor, sem desejos especiais por sexo, disposto a ajudar todos, cooperante com todas as outras minorias, respeitador de todos os direitos, com uma leve tendência vaidosa, mas perfeitamente equiparável com um vulgar homem. Porém, Crispim sabia que tudo era mentira. Mentia com todos os dentes. Era um hipócrita convicto – teria de sê-lo, se não quisesse ser rotulado de “maricas sem vergonha”, que ele no fundo sabia que era, mas que não queria parecer para os outros. Na verdade, ele fugia aos impostos, por fazer sexo oral ao chefe da repartição de finanças, detestava os ciganos, vivia sozinho apenas porque não conseguia manter um parceiro por mais que uma semana, arte para ele era conseguir dar conta de um batalhão de bombeiros de um só fôlego, borrifava-se para quem via em dificuldades, porque difícil, difícil, é levar com um pénis negro avantajado pelo recto acima (até chorava de dolorosa felicidade). E, mais que tudo, detinha um poder de influência espantoso, inalcançável a qualquer um, importante para facilitar toda a sua charmosa mensagem e show-off. Ele era o líder do misterioso lobby gay, o tal que se fala por aí.

Naquele dia, iria receber na sua casa uma jornalista para mais uma reportagem ao homem do momento: Crispim, ou seja, ele próprio. O paradoxo do modelo de homem ser um gay. Bem, isso pouco interessa no século XXI. Os jornalistas eram seleccionados a dedo por Crispim: não podia dar-se ao luxo de conceder declarações a qualquer um. Todos tinham de ser coniventes com a sua estratégia de manipulação de imagem, de modo a que o seu poderoso lobby ganhasse corpo na sombra. Exemplos? A escolha do primeiro-ministro, do presidente do conselho de administração daquela empresa multinacional, o futebolista revelação do Campeonato de Juniores, a guerra no Médio Oriente, a crise de petróleo, as florestas amazónicas, o novo episódio do Noddy,… tudo passava por ele. Faz calor? Se Crispim quisesse, o tempo arrefecia. Falta-te um emprego? Queres ser empregado aonde? Precisas de um creme depilador? Crispim criava um exclusivo, se quisesse, junto dos mais renomeados laboratórios franceses. Queres ser conhecido? Ele arranja-te contactos com figuras famosas do jet-set. Procuras novas experiências? Vira o teu cuzinho para o Crispim e o futuro ser-te-á risonho.
A jornalista surpreendeu Crispim a mastigar os agriões. Crispim engraxou a jornalista, em sinal de cortesia.
- Bem, a sra. Alice é bastante famosa, lembro-me de ter entrevistado Saddam Hussein, Gorbatchev, Mick Jagger e Floribella… e foi você que esteve junto ao Pinto da Costa quando o carro dele explodiu, não foi?
- Não, essa foi a Alice e ela está com uma incontinência avassaladora, não pôde vir. Eu sou a Eduarda, substituta dela, e lembro-me de ter sido picada por mosquitos quando cobri a Ovibeja do ano passado, que foi a minha coroa de glória jornalística. Diga-me, você gosta de pegar de marcha atrás, se me compreende…
- Como? – engasgou-se Crispim, com suores frios a lavarem-lhe a fronte – Ouça, as regras são claras, não vamos levar a conversa para o lado sexual, senão nunca mais falo à sua revista… a Alice sabia bem disto, não lhe disse? – avisou, agastado.
- Ah, sim, claro… Nada de falar de homens de cabedal nem em paradas gay…
- Sim… Eu sou perfeitamente normal, não alinho nesses espectáculos decadentes e chocantes. É possível ser-se gay sem cair em lugares comuns e sem ser kitsch. Agora, não é possível ser-se gay sem…
- Um belo vibrador na mesa de cabeceira?
- Não! – escandalizou-se Crispim – Eu ia dizer, sem respeito mútuo e entendimento… De certeza que você compreende como deve ser conduzida a entrevista? Nada de referências insultuosas! – voltou a avisar, de uma forma mais acintosa.
- Claro, claro… Vamos então falar de tamanhos. Qual é o tamanho ideal de pénis para si? Para mim, 20 cm são suficientes, mas…
- Chega! Fora! – Crispim expulsou Eduarda de casa, bruto e indelicado – Você há-de receber o castigo que merece! – e Crispim, entre muitas outras qualidades, cumpria rigorosamente o que prometia. Suspirou quando fechou a porta e foi medir a sua tensão, nervosíssimo que estava.
Soube-se que Eduarda nem sequer irá à Ovibeja este ano; com sorte irá cobrir a chegada das andorinhas à Beira Alta pela Primavera. Crispim cancelou a assinatura de revista, apesar de todas as desculpas formais enviadas pelos redactores e pelas coberturas muito favoráveis feitas a Crispim nas várias convenções sociais em que esteve presente. Crispim etiquetou a revista de “intolerante e homofóbica” e a revista teve uma quebra brutal nas vendas. E se um dia destes notarem que falta a luz apenas na vossa casa durante várias horas, pensem bem se não gozaram com Crispim quando o viram na rua com uma camisa de alças verde berrante a passear o gato pela trela. Sim, Crispim, o gay aparentemente despretensioso que lidera o lobby gay, paneleiro de primeiríssimo grau.

sábado, agosto 05, 2006

Para Ty



Tu não estás bem. Não percebo a tua obsessão pelo ridículo. Fazes figura de parvo a toda a hora. Não te chegava teres agrafado o teu escroto à bainha dos bolsos das calças. Andaste a correr quase despido junto à linha lateral. Pintaste o tecto da cozinha de amarelo e carmim. Trucidaste o teu hamster na batedeira eléctrica da loja de electrodomésticos e provocaste um curto-circuito que destruiu várias máquinas expostas. Exigiste ser insultado por um polícia no domingo à tarde. Bebeste a água da retrete e deitaste Evian pela sarjeta. Apresentaste lantejoulas na cerimónia de entrega do diploma do teu filho. Julgas que há extraterrestres no armário e gafanhotos em Plutão. Agora pegaste fogo ao frigorífico e foste comprar duas grades de cerveja para colocar no fogão. Já ninguém sabe o que seguirá.
Acho que nem sequer te sabes queixar. Qual é o teu problema?
- Dão-me cabo do juízo, pá! Estou farto de ser desautorizado! Ninguém me respeita!
Assim não vais a lado nenhum. As tuas lamentações são tão lamechas… Coitadinho, coitadinho. Tens falta de atenção e carinho, é?
- Sim, pá! Gostava que alguém fizesse algo bom por mim…
Pára o choro. És um rato vestido de homem! Não consegues enfrentar os teus medos. Como podes querer que alguém faça qualquer coisa por ti?
- Eu só quero ser feliz…
É natural. Almejamos todos o mesmo. Sei lá… muda a tua atitude e mudarás a opinião dos outros sobre ti.
- Eu quero uma palete de post-its para espetar na testa do Valentim Loureiro!
Não, é melhor não. O major está de férias e não quer ser incomodado.
- Então… eu quero partir uma guitarra na cabeça do Pacheco Pereira!
Não podes ser tão violento. Vais logo para a prisão ou para o hospital. Pacheco Pereira não serve como desculpa.
- Bolas! Já sei! Quero que me mandem com tomates aos olhos! Tomates vermelhinhos e frescos!
De certeza que é o que queres? Penso que não é uma grande melhoria… ainda te lembras das laranjas e das moedas que te acertaram nas virilhas, não te lembras? Não deve ser uma sensação muito agradável, pois não?… Bem, acho que já não irás melhorar… Seja feita então a tua vontade… Boa sorte para ti.
- Para mim?
Para ti.
- Para mim!...Uau!, lá vem pessoal com tomates!