segunda-feira, julho 30, 2007

Formosura Perdida

Abro a janela de par em par ao mundo. Num registo confessional, sibilo a nostalgia e a mágoa que me consomem em pleno Blogger.Este era eu com 32 anos, num raro momento de recato no meu domicílio, junto ao computador. Googlava por práticas de consubstanciar os lípidos e os glícidos em massa corporal na, então, novel Internet. Sim, eu sei que era sexy. “Too sexy for my shirt”, eu sabia bem que sim. E é esse o motivo porque agora, que o meu fulgor é apenas uma memória distante, me apresento publicamente em tronco nu – tudo o que vós sempre quisestes de mim, tudo o que vós sempre ambicionastes observar nos vossos mais acesos delírios voyeuristas, aqui têm. Descansai a vossa memória e poupai a vossa imaginação. Soltai “Aleluias” e hossanas ao Senhor. Bem sei que é de perfil; mas não sejais tão alarvemente obscenos e deliciai-vos com este perfil tão artístico quanto belo.
Como compreendia a vossa inveja, comuns mortais. Como devia ser triste para vós olhar para este corpinho torneado sem recurso ao “photoshop” e depois verem-se ao espelho e reconhecerem as vossas fracas figuras: se eu estivesse na vossa posição, tinha recorrido imediatamente ao aborto retroactivo da minha pessoa. Eu semeava invejas por onde passasse e estava plenamente consciente de tal facto. Era difícil resistir ao “sex-appeal” do meu peito assombroso, da minha cândida barriguinha, do meu rabinho macio, todos me diziam e eu sabia-lo bem.
Esqueçam o pormenor da minha barba branca – foi apenas uma brincadeira que tive com giz. Giz e farinha. Giz, farinha e cocaína. Pronto, confesso: era apenas cocaína. Leram bem, cocaína: eu era um “party animal”. Fazia jus ao meu nome. Hoje em dia, receio, sou apenas uma caricatura daquilo que era.
Bons velhos tempos. Ainda me lembro do meu estilo de vida arrepiante naqueles loucos anos-zero. Era Bungle para aqui, Bungle para ali, Bungle vem cá, Bungle não fiques aí. As solicitações não paravam. Entre um bidão de cerveja Cristal e um pernil de porco fumado, lá ia eu, mais uma festa de arromba, mais um cocktail fantástico num iate luxuoso algures nas Caraíbas, mais uma capa de revista, mais uma aventura amorosa, mais um super-lanche reforçado cheio de patés e molhos tão gordurosos quanto abundantes. Todas as revistas queriam o meu peito. Sim, uma foto das minhas maminhas ao léu, era tudo o que a imprensa queria.
E, analisando bem, à sombra da distância temporal que me separa dessa época gloriosa, é fácil perceber porquê. Qual Alexandra Lencastre, qual Dolly Parton, qual Alberto João Jardim: eram minhas as mamas que todos queriam ver. Mas eu resisti. Disse-lhes sempre, “passem cá mais logo”, “não me chateiem mais”, “quero lá saber do cachet de 10 milhões de euros”, “deixem cá os chouriços e o requeijão mas vão-se embora”, e os paparazzi nunca me conseguiram apanhar. Deixei de frequentar a praia, deixei mesmo de ir ao solário, passei a aceitar convites apenas dos melhores amigos para festas muito selectas. E fui sucedido. Nunca me apanharam e eu sei bem o quanto tentaram, esses pobres coitados.
Mantive uma roda-viva de encontros sociais, era desejado aquém e além-mar para todos os eventos mediáticos, princesas e reis de todo o mundo admiravam-me enquanto passeava garbosamente os meus quilos de formosura nas passerelles do jet-set e nos clubes privados de Saint-Tropez a Santa Monica, preferencialmente sentado numa cadeira de rodas para não queimar calorias vitais. Retirei e proporcionei toneladas de prazer a quem comigo partilhava as galas mundanas e as prémières de Cannes, Berlim e Veneza, calquei passadeiras vermelhas que ficaram permanentemente marcadas com o meu peso e deformei bancos traseiros de limusinas duma forma irreversível – sofá onde me sentasse ficava irremediavelmente inutilizado e era imediatamente colocado em leilão na Christie’s. Tudo isto sob o brilho incessante dos flashes, que me fotografavam enquanto mastigava meia gazela embebida em mostarda ou espezinhava a Victoria Beckham em LA, mas que nunca me captaram em topless ou sequer a cor da minha pele quatro dedos acima do joelho. Eles, aí por volta de 2008 ou 2009, começaram a desistir, perante a minha capacidade em manter-me discreto, embora terrivelmente famoso. Largaram as câmaras em desespero no chão e içaram um pano branco – “Mad Mad Bungle, atestamos a nossa inépcia em fotografar os seus seios morbidamente obesos”, assinaram eles num edital oficial afixado na Junta de Freguesia de Marbella. E eu ri-me, sem porém evitar engasgar-me em dois leitões assados e passar uma noite mal dormida no Hospital da CUF.
Porém, a cobiça desmedida atraiçoou-me. Iludido pela gordura fácil, deixei de ser tão sedentário, fiando-me em malditos comprimidos e ampolas de hormonas milagrosas que, disseram-me, me fariam engordar rapidamente. Abandonei os hábitos carnívoros que eram a minha imagem de marca e passei a comer saladas de espinafres e rabanetes estufados. Passei a beber sumo de laranja ao pequeno-almoço e deixei de ter 7 ou 8 refeições diárias. Ganhei o hábito perverso de me banhar em cremes de beleza e loções tonificantes. Aquilo foi-me mudando progressivamente. Enredei-me em grandes sarilhos, pressenti a ruína iminente do meu status. Não conseguia parar, aquelas drogas demoníacas eram mais viciadoras que a própria cocaína e caí em desgraça. Todo eu tornei-me num aglomerado de estrogénios. Já ninguém queria saber de mim. Aos 38 anos, estava irreconhecível. As pessoas que dantes me admiravam afastaram-se. Ao sentir-me abandonado, tentei, num assomo de desespero, afirmar-me com a minha nova imagem através duma infame sessão fotográfica para a revista de Sábado do “24 Horas”, hoje cabalmente reconhecida como a mais risível de sempre duma celebridade. Eis apenas um lamiré da mesma:Já não era eu. Isto não era eu. As pessoas perceberam e largaram-me definitivamente a partir daí. Eu morri para o grande público naquela altura. E se hoje choro a minha tristeza perante vós é para que não esqueçam o meu exemplo. Comei. Devorai enormes quantidades de snacks e carnes vermelhas sem pudor. Exibi. Revelai todos os vossos atraentes atributos físicos, se é isso que o público quer. Sentai-vos e afastai-vos do esforço físico. Não façais como eu, que perdeu a oportunidade de fazer uma grande maquia com as minhas maminhas que hoje já não são desejadas, apenas por pensar que tanto estas como o mistério que elas encerravam seriam eternos. Fiquei sem mamas decentes e o mistério tornou-se desinteressante. Perdi tudo. E hoje, por fim e perante vós, revelo-vos o grande mistério. Vede. Vede bem. Apreciai. E rogai para não cair no erro que eu cometi. É esta a minha mensagem para todos vós. Agora despeço-me, que tenho ali mais um pratinho de ervilhas para comer. Chuif.

sexta-feira, julho 27, 2007

Queimando a Casa

Ele disse para si mesmo, “não bebo mais”, mas devia ter falado alto, talvez alguém tivesse ouvido. A sua voz interior não conseguiu calar os delírios etílicos que se apossavam de si e lá foi ele, mais um copo, mais um pedido de esquecimento pelas tristes horas de inconformismo cerceado que suporta todas as semanas, mais uma jornada de busca por algo desconhecido que lhe revelasse as razões das coisas. Sabia que nada iria aprender. Mas cedeu sem resistência. Mais esta vez. A sua voz interior afundou-se para onde não podia ser ouvida. Ela já bastava.
Viva o fim-de-semana, que se passa tão a correr e com tantos projectos impossíveis de concretizar. A vontade que lhe animava até ao final da tarde de 6ª feira soçobrava às primeiras gotas de cerveja, lá se iam as ideias magníficas, mas, que se lixe, o que conta é a festa, mesmo que seja sempre a mesma bebida, no mesmo sítio, à mesma hora, com a mesma gente, a mesma merda de conversas trôpegas, as mesmas caras de frete e de alegria artificial, o que conta é a libertação. O que convém é ele estar consciente da derrocada da sua mente pelo seu próprio inconsciente, é ele saber que pode ser ele próprio a controlar a sua alienação e esta não ser ditada por mais ninguém. Ou isto ou o suicídio, que é bem mais rápido, mas que não dá a ilusão das pequenas vitórias morais. A alegria é uma vitória moral e ele quer torná-la maior que qualquer realidade inapelavelmente derrotada. Lute-se a destruição com a destruição.
“E quem me leva a casa?”, perguntou ele a cambalear, saído do bar, eram 4 da manhã, a mulher não ia gostar, achava ele, pela sua torpe cabeça. Ela estaria, sozinha ou talvez não, quem sabe?, provavelmente agarrada a concursos e telenovelas imbecilizantes na TV e sem nenhum sentido de zapping, nem do aparelho, nem da sua própria vida. Ela convertera-se num conjunto de rotinas sobrepostas em jeito de arranha-céus de dejá-vu’s. Era isto que ele pensava, pois na verdade desconhecia o que ela fazia ou pensava, era um mistério que não lhe interessava por lhe ser irrelevante. O amor já não existe, talvez nunca existisse algo mais que uma súbita paixão física, mas foi isto que ele escolheu, a certeza da imobilidade e o conforto da estabilidade, foram estes os votos que foram trocados, foi aquela a cerimónia protocolar do seu matrimónio, foram aqueles contraceptivos inúteis que tornaram os seus filhos uma realidade, e era tudo isto e muito mais que era necessário esquecer. Ela já conhece os contornos da relação, ela já nem sequer se importa, ela já não tem ambições maiores que esta, preserva apenas um extremo pulsar contemplativo e passivo que lhe preenche os dias e que lhe mantém a sanidade a níveis elevados, evitando-lhe chatices e choros maiores.
E ele também não quer chatices, não quer levar ninguém com ele para o abismo da sua existência, essa gente, apesar de tudo, não merece. Ele faz os possíveis para que percebam que ele é o capitão do seu barco e que será o último a sair do desastre onde se enfiou, queria que todos percebessem a tempo e saltassem borda fora da sua vida e então, no fundo do mar, iniciaria tudo de novo, um “format c:” ao seu disco já pouco rígido, um “reset” deliberado a todo o seu passado e presente, tudo em silêncio, tudo como se nada se passasse, tudo sem sinais de alerta que levantassem as irritantes vozes da consciência.
Era difícil entender. A caminho de casa, apanhando com o ar fresco da madrugada pela janela aberta do lado do pendura, ele focava pontos dispersos na cidade dos malditos, das criaturas negras e grotescas que se arrastavam nas bermas das estradas e nas portas dos bares nocturnos, tentando conter o rebuliço da sua cabeça e do seu estômago. “Não devias ter bebido tanto, pá, o que ela vai dizer?”, dizia-lhe o amigo, preocupado com os seus estofos. A cabeça dele pendia, os ouvidos dele estavam muito alertas, em cada semáforo os arranques das motorizadas aceleravam as suas células nervosas, o eco dos risos de miudinhas com o hímen por rasgar ribombava no seu cérebro e as gargalhadas dos rapazes imberbes espalhavam-se na sua nuca, velhos e crianças horríveis, diabólicos riscos contínuos e terríveis lombas soluçantes, entre imagens difusas e confusas de rostos desconhecidos e situações absurdas, labaredas crepitantes e ardores no organismo, casados numa amálgama cromática proto-psicadélica.
Deve ser esta a sensação do afogamento.
Deve ser assim que se começa de novo.
À saída duma rotunda, ele não conteve o vómito. E vomitou pela janela fora, até o carro se imobilizar na berma. Alguns carros passaram a alta velocidade, ninguém parou ou sequer reparou que estava ali alguém a cuja noite parecia ter acabado mal. “Estás bem?”, perguntou o amigo, levemente preocupado. Que excesso de retórica. Que pânico tão formal. Ele estava melhor que nunca.

quinta-feira, julho 26, 2007

Introdução às Técnicas Ditatoriais

Professora (P) – Atenção, meninos! Sabem de que é que vamos falar hoje?
Joãozinho (J) – Nãããão!
Diogo Feist de Carvalho e Cunha (D) – Quero um Ferrero Rocher!
Aninhas (A) – Vamos falar de coisas bonitas, para variar…
Zezinho (Z) – Buááááá!!! Eu fiz xixi nas calças!
Manelzinho (M) – Buááááá!!! Eu fiz xixi nas calças do Zezinho!
Tininha (T) – Quero lá saber, a minha mãe diz que eu vou ser uma galdéria…
Luisinha (L) – O quê?
P – Vamos falar de ditadores! Vou testar até que ponto vocês conseguem identificar os vossos inimigos! Digam lá se não é giro!...
D, A e T – Ena!!!
Z – Buáááááá!!!! Roubaram-me a sandes que tinha deixado na casa de banho!!!
M – Buáááááá!!! A sandes do Zezinho sabe a merda!!
L – Porquê?
P – Eis a primeira fotografia: digam lá quem é este mau.
D – Tem bigode…tem uma faixa vermelha no braço… é mau… É alguém do Benfica?
P – Não, não é do Benfica. Continue a tentar, futuro Dr. Carvalho e Cunha.
A – É o Superhomem de dia, sem o fato de herói, sem óculos e sem a capa.
P – Que disparate, Aninhas! Ele é mau, não pode ser o Superhomem!
L – Porque é que ele é mau?
P – Luisinha, TODA a gente sabe que ele é mau! Que pergunta, pensei que a Luisinha tivesse aprendido alguma coisa no jardim-escola! Mais uma dessas e fica de castigo, sem leitinho com chocolate!
Z – Buááááá!!!! Esse ditador mete-me medo!!!
M – Buááááá!!!! O Zezinho assusta-me quando tem medo!!!
P – Vá, vou dar umas pistas: é alemão e não gosta de judeus nem de comunistas…
J – Michael Schumacher, só pode, é o único alemão que estou a ver...
P – Morno, Joãozinho, morno. Este senhor é um pouco mais velho…
J – É o pai do Schumacher? O avô do Schumacher? O tipo que inventou as salsichas?
T – Sr. Professora, o que acontece se eu meter a cabeça do meu Nenuco no meu pipi?
P – Que dizes, Tininha?!? Que horror!!!
T – Pronto, e se eu meter a cabeça do meu Nenuco no Pipi do Joãozinho?
J – Mas… Eu não tenho pipi…
D – Cale-se, João, você sabe perfeitamente que tem, só está cheio de vergonha. A classe média é toda igual.
P – Vá, vamos a acalmar. Ninguém sabe? Eu ajudo: o primeiro nome dele é Adolfo…
A – Adolfo Luxúria Canibal?
P – … não!! É Adolfo Hi… Hi…
J – Hiroshima!
D – Olhe, eu não estou bem a ver, mas dever ser Hitler.
P – Bravo, futuro Eng. Feist de Carvalho!! Brilhante!! Adolfo Hitler é a resposta certa!
Coro, excepto Z e M – Pois é! Que cabeça a nossa!
Z – Buááááá!!!! O Manelzinho passou-me a SIDA e disse não ao mesmo, mesmo eu tendo cavalinho branco para todos os jogos!!!
M – Buááááá!!!! Eu gostava de ter SIDA a sério para passá-la a valer para o Zezinho!!!!
P – E este? Que ditador mau é este?

T – Quando vejo esse tipo, fico logo com vontade de fumar um charuto… posso fumar?
P – Claro que não, Tininha! A menos que seja num espaço devidamente ventilado.
A – Parece o Avô Cantigas mais novo!
P – Não, não é. Vejam lá se sabem… este ditador está zangado com a América…
D – Ouça, ou é o Bin Laden ou o Hugo Chávez. Qual deles o mais caturra.
J – É o gordo da Madeira, o tal que o meu pai diz que devia morrer atropelado por um camião cisterna da Galp a arder assim que saísse do aeroporto de Lisboa…
P – Não, Joãozinho. Embora exista uma relação: esse senhor que o teu pai odeia e este são ambos de ilhas…
Z – Buáááááá!!! Atirei o pau ao gato e o gato morreu mesmo!!!!
M – Buáááááá!!!! O Zezinho inutilizou a minha carga de dinamite com o gato da minha avó!
L – O que são ilhas?
D – Mas que ignorância a sua, Luísa… Apetece-me mesmo dar-lhe um estalo… Sr. Professora, bata na Luísa por mim, está perfeitamente insuportável, esta miúda…
P – Eu gostava, futuro Arq. Diogo Feist e Cunha, mas depois sou suspensa por ser demasiado violenta… Também não estão a ver quem é?… Fala espanhol…
T – O nome dele está debaixo da minha língua… espera, o que está debaixo da minha língua é um pedaço de sémen caramelizado…
J – Estou mesmo a ver quem ele é… é amigo do tipo que tem a cara nas camisolas vermelhas do meu irmão drogado…
A – O meu pai gosta muito dele, Sr. Professora… diz que todos devíamos aprender com ele.
D – Que horror!! Vê-se mesmo que esta criatura nunca saiu da Cova da Piedade…
P – Realmente, tenho de concordar com o futuro Presidente Feist de Carvalho. Este homem é mau!!! O primeiro nome é Fidel… Fidel Ca… Ca…
A – Fidel Catavento!
J – Fidel Castro!
P – Bravo, Joãozinho! Muito bem! Fidel Castro é a resposta certa!
Z – Buááááá!!!!! Eu sabia a resposta desde o princípio mas o Manelzinho estava a apertar-me os tintins e eu não pude responder!!!
M – Buááááá!!!! O Zezinho tem dois tintins e eu só tenho 1!
P – E agora este ditador. Quem é, quem é?
(silêncio curto)
P – Ninguém sabe?
(silêncio médio)
P – Então, não há ideias?
(silêncio longo)
P – Bolas, meninos, então? Este devia ser o mais fácil…
Z – Buááááá!!! Já não consigo jogar andebol!!
M – Buáááá!!! Arranquei o braço do Zezinho e agora não consigo colá-lo de volta!!
J – Sra. Professora, não faço a mínima ideia.
A – Nunca o vi.
D – Lá na Quinta da Marinha não mora.
L – Hein?
T – Quero lá saber…
P – Bolas, mas vocês não viram o concurso da televisão? Não têm ninguém na família que tenha sido torturado? A PIDE não vos diz nada?
Coro – Não.
P – Estou tramada. O nosso ditadorzinho… A causa de todos os males actuais… O nosso bode expiatório preferido … vá lá… olhem lá bem para ele…
J – Pinto da Costa?
D – Odete Santos com maquilhagem?
A – Aquele sargento que matou três meninas?
T – Deve ser um paneleiro qualquer…
L – Quem?
M – Buáááá!! Eu não queria chorar primeiro que o Zezinho!
Z – Buáááá!!! O Manelzinho antecipou-se à minha birra!!
P – Salazar!!! O nome dele é Salazar!!!
Coro – Aaaaaah!!!
D – Nome giríssimo!
A – Ah, como havíamos de saber? Só conhecemos personalidades internacionais…
J – Nunca vi a cara dele nos livros de História…
L – Eu também não… mas isto sou eu, que como muito queijo… como é que ele se chama mesmo?
T – Bah, esse não tem cara de quem fez mal a alguém.
P – Bem, visto que a matéria não está bem estudada, amanhã vamos voltar a discutir técnicas de argumentação com recurso a falácias e demagogia barata, bem como as formas eficientes de eliminar adversários políticos.
Coro – Oooooh!...
P – Sim, vamos reaprender técnicas fabulosas, desde o fantástico gaseamento em massa até ao sinistro tiro na nuca! Espero que gostem!
Z e M – Buááááá!!!!

quarta-feira, julho 25, 2007

A Marcha do Orgulho Heterossexual

Foi com um turbilhão de reacções variadas que Trancoso recebeu a sua primeira Marcha do Orgulho Heterossexual. Os habitantes da pacata vila beirã não ficaram indiferentes ao evento, nem os curiosos e adeptos do Movimento Heterossexual (MH) que se deslocaram propositadamente à simpática localidade para manifestar a sua solidariedade à iniciativa. A Marcha tornou-se o grande evento turístico desta região neste ano e equaciona-se a repetição da Marcha em 2008.
“Queremos acabar com os tabus”, referiu-nos o líder do MH, José Manuel António Francisco (JMAF). “Nós sabemos que não somos tão evoluídos cultural e intelectualmente como os homossexuais, mas merecemos ser tratados com respeito, especialmente aqui no interior, onde a solidão e a pressão social própria dos meios pequenos acaba por ser angustiante e asfixiante”, esclareceu JMAF, a propósito das motivações da Marcha. “Também somos seres humanos”, adiantou a mesma fonte, “afinal, sabemos fazer contas do tipo 2+2=4 e soletrar todas as letras do alfabeto, embora com dificuldades em relação ao K, ao I grego e àquela letra parecida com um V a dobrar, como todos os homossexuais. Alguns de nós até já leram autores estrangeiros, veja lá”.
Cerca de 10 carros alegóricos e 60 heterossexuais desfilaram no centro da vila, ou, dito de uma forma mais concreta, desde a casa da D. Glória até ao Talho Central e daí até ao busto do Dr. Miranda, durante cerca de 1 hora. Entre garrafões de vinho, preservativos queimados e músicas do Quim Barreiros e do Tony Carreira, a Marcha incluiu dezenas de homens bigodudos e mulheres de seios avantajados em semi-nudez, violência conjugal explícita, grávidas de 9 meses assediadas por homens babados de gabardina, uma família bastante numerosa, peixeiras, taxistas, um ou outro toureiro ou fadista e o Hugh Heffner, representado pelo seu procurador português. Alguns slogans apresentados foram “Amo quem quiser/ Desde que seja mulher”, “Para rapar o meu tacho/ Nada melhor que um bom macho”, “Pénis com vagina/ Resulta aqui e na China” e “Não sabemos multiplicar nem dividir/ E não temos armário por onde sair”.
Muitos curiosos acompanharam o desfile. Pelo lado mais tolerante, a D. Gertrudes, confessou-nos “achar graça ao evento”. “Desde que a minha Celeste morreu que não tenho mais ninguém… e nem quero ter: hoje em dia, já não me esfregam como deve ser. Nem a Dina lança discos nem nada”, comentou, em jeito de desabafo. A D. Gertrudes explicou-nos o porquê do seu apoio: “Deixem lá esses rapazes e raparigas à vontade, o importante é haver amor. Nem sempre houve amor entre mim e a Celeste e lamento o tempo que perdemos a discutir sobre as propriedades afrodisíacas do Denim e a cursar camionagem. Eles que aproveitem, comigo não terão problemas”.
Outros, porém, mostraram-se desagradados. Foi o caso do Paulino e do Faustino, um casal homo e metrossexual deveras ofendido. “É uma vergonha” e “O mundo está perdido” foram duas frases muito repetidas pelo casal, visivelmente agastado com o que consideravam ser uma “provocação de mau-gosto”. “Ouça lá, mas tem algum jeito amar uma mulher? Pindéricas sem jeito, só sabem dar gritinhos… Não têm músculos de homem nem nada que se pareça. Um horror!”, deixou escapar Paulino, com uma expressão de asco a moldar-lhe a cara. “É ridículo o que esta gentinha faz para ter atenção. Deviam estar em casa, a tratar da depilação e do bom filme francês que anda por aí, em vez de se meterem em cobóiadas com o sexo oposto. Meu amigo, isso é passé, é demodé, caiam na real e evoluam. Ser gay é a única evolução possível. Porcos! Tarados!”, comentou Faustino, enquanto resistia a arremessar um tomate na direcção dum sósia do Zé Povinho. Faustino lá refreou os seus ânimos agitados, voltando-se para o seu companheiro: “Se calhar é melhor não, ainda sujo a minha camisa de lantejoulas e depois quem a limpa, amor?”. A Elsa e a Vanda, um casal composto por uma lésbica e um transsexual que já se chamou Roberto Aguiar, também estavam veementemente contra a Marcha, que fizeram questão de acompanhar com uivos e apupos de desaprovação. “Fascistas! Reprodutores! Tradicionalistas!”, foram alguns dos insultos do mais enervado do casal, o ex-Roberto. Mais calma, Elsa não deixou de vincar o seu desconforto: “Faz-me impressão pensar que Portugal está assim tão heterossexual… isto é por causa das coisas que se vêem na televisão, naqueles canais codificados, e da excessiva propaganda da igreja, que é, como todos sabemos, uma canalha de padres rebarbados que alienam a nossa juventude e a conduz para os maus caminhos. Por exemplo, sabemos que o pároco daqui proibiu jovens que estão em pleno processo de se assumir como homossexuais de ouvir Scissors Sisters e George Michael, bem como a vetar a participação dalgum jovem numa boys ou girls band. É a mais pura repressão dos instintos naturais, julgava que hoje em dia seria inimaginável!”.
JMAF assegurou-nos que a autarquia exibiu desde cedo a vontade de colaborar para que nada corresse errado: “A autarquia até nos disse que iria entregar vibradores a casa dos homossexuais, se tal fosse necessário para impedir retaliações”. Algo que desagradou profundamente a Elsa: “Não é com vibradores que nos compram; aliás, nós somos seres tão evoluídos que não nos conseguem corromper por nada. Só admitiria negociações se me apresentassem a Shakira”. O representante da edilidade minimizou as críticas – “Estamos abertos a todas as raças e credos e achamos que a comunidade heterossexual portuguesa tem tanto direito à manifestação como outra minoria qualquer” –, refutando a alegada tentativa de aliciamento: “É falso que a autarquia tenha tentado demover qualquer contra-manifestação, para mais recorrendo à oferta de vibradores. O orçamento é demasiado limitado, mesmo a aquisição de baldes de vaselina para as grandes orgias da assembleia municipal é-nos proibida”.
Um heterossexual, que não se quis identificar, levantou o véu sobre o estado da arte em Portugal: “É lamentável que se eu quiser passear normalmente com a minha mulher no parque tenha de ir vestido com calças de cabedal justo e mala a tiracolo, lendo um livro sobre a vida do Oscar Wilde e ela tenha de usar calças de ganga com a carteira no bolso de trás e cabelo à tigela para passarmos despercebidos. Nalgumas zonas do país, nomeadamente nalgumas tabernas, até chapadas podemos mandar nelas, mas na maior parte do país somos claramente discriminados e apontados como elementos estúpidos e não desviantes”. Maria das Dores, uma heterossexual extravagante, declarou, alto e em bom som, “eu gosto muito de homens morenos e altos, excitam-me”, o que provocou desagrado e algumas risadas mais ou menos incrédulas do público que assistia à Marcha. “Sim, gosto deles, e adoro que me dêem uma carga de pancada de vez em quando. Sou assim, gosto de ser servil. E adoro ter filhos. Já vou em 6”. Pela sua natureza a roçar o caricatural, Maria das Dores foi das mais visadas pela turba homossexual em fúria, que lhe presenteou vários mimos, chegando quase a vias de facto. Felizmente, a GNR local estava preparada e organizou, em colaboração com a organização “SOS Heterossexualidade”, uma sessão de depilação grátis para os gays e um jogo de demonstração da Martina Navratilova para as lésbicas, o que colocou água na fervura e evitou males maiores.
E como reage JMAF às acusações de que os heterossexuais provocam “escândalos gratuitos”, ao juntar homens e mulheres de mãos dadas, ostensivamente aos beijos ou à pancada na via pública e em trajes menores? “Reajo com indiferença. As pessoas têm o direito a serem como são e esse é o meio que encontraram para se expressar”. Paulino e Faustino não concordam: “É apenas para provocar, esses homens de família e essas mulheres assanhadas apenas querem tirar-nos do sério. Mas Frankie Goes to Hollywood continuará a ser a minha banda favorita, continuarei a flirtar com homens sensíveis e depilados, homens a sério!, nos jardins da Gulbenkian em plena luz do dia e o arco-íris estará sempre à porta da minha casa. Peludos! Gordos! Depravados!”, invectivou Paulino, enquanto Faustino avisou: “Meus amigos, se um dia forem tão bons como eu em ciências sociais e políticas, se algum dia conseguirem apreciar a verdadeira arte moderna e se se mantiverem solteiros e sem filhos a vida toda, talvez algum dia possa ter uma conversa a sério com alguns desses gajos e gajas… Mas duvido muito… Trogloditas!”.
A finalizar, JMAF reforçou o apelo: “Heterossexuais, uni-vos e lutai pelos vossos direitos! Organizemos um lóbi forte como o deles! Homens: façamos amor com as nossas mulheres e, se elas não quiserem, vamos agredi-las! Mulheres: sejam promíscuas e pensem muito em sexo e em criar grandes famílias! Passo a passo rumo a uma sociedade livre!”.

PS: Para quê outro aeroporto? Para quê tanta confusão? Veja-se este exemplo: até Trancoso, pode ler-se no site oficial, já é “servido” por 3-três-3 aeroportos! A saber: Porto (200 km), Lisboa (350 km) e Madrid (395 km – não 350 nem 400 km, mas cirúrgicos 395 km). E isto apenas “a nível internacional”. A nível nacional deve estar servido por mais de uma dúzia de aeroportos e heliportos – a abundância deve ser tanta que só a vergonha pode explicar o facto do “nível nacional” estar omisso na webpage. Outra curiosidade: para três aeroportos apenas existem 2 estações ferroviárias na proximidade… mas uma delas está no “concelho”… e disponibiliza o serviço Intercidades! Valha-lhes isso.

terça-feira, julho 24, 2007

Enorme Reportagem

Hoje vamos contar-lhe a história da fadista Dália Dengosa, uma jovem com problemas de incontinência que encontrou na música portuguesa uma forma de solucionar os seus problemas monetários, mas não a incontinência que a afligia. Assombroso. Ela é Dália Dengosa, a cantadeira mais mijona de Alfama e arredores, se é que ainda há casas de fado nos arredores. E mesmo no centro da cidade existem fundadas dúvidas. Uma inquilina num prédio quase, quase condenado e praticamente, praticamente devoluto na zona antiga de Lisboa (i.e., pode ser em qualquer lado da capital, excepto no Parque das Nações) confirmou-nos que já não há casas de fado como antigamente, mas sabe que as casas de alterne florescem como cogumelos na zona, se por acaso os cogumelos florescessem. Além do mais, esta inquilina, que não se quis identificar como sendo a D. Cidália da Bica, jura a pés juntos que viu o Abel Xavier a entrar numa dessas casas de alterne. Sim, Abel Xavier, numa casa de alterne. Ou num bar gay. Num local de pura devassa, portanto. A D. Cidália da Bica, curvada na janela do rés-do-chão do seu nº 32 da Rua dos Mártires e a coberto do seu anonimato, lá revelou que há muitos australopitecos a rondar a zona em busca de diversão e de algum prazer barato e superficial. Isto durante a semana. Ao fim-de-semana, são mais frequentes as visitas de homens do Neanderthal, munidos de óculos extravagantes e adereços de moda bizarros. Um deles é capaz de ser Abel Xavier. Mas poderá ser Dennis Rodman. Quem diria, dos Chicago Bulls para Alfama vai uma grande distância. Bulls são touros, touros, tourada, Campo Pequeno, Campo Grande, é no interface do Campo Grande que nos vamos encontrar, ali junto às penas do pombo morto e perto da poça de urina que amarelece o azulejo riscado com deliciosas tags, sempre tão graciosas, de microfone na mão, questionando à senhora que vende nougats, “Para quando uma promoção de Verão? Tipo: 3 nougats, 50 cêntimos, com oferta da canadiana com que fingi um estiramento do calcanhar na semana passada na compra do 6º nougat?”. Não há sentido de marketing. Os vendedores de rua não se sabem promover. Nem eles, nem os ceguinhos do metropolitano, que, passe a chalaça fácil, não têm visão nenhuma para o negócio. E três-meia-volta lá estão a pisar alguém e a dar com os cornos no varão central. Se eles fossem mesmo cegos, claro. Mas promoção, promoção, é no Corte Inglês. Sim, a cadeia espanhola que reduziu o preço dum par de luvas de veludo de 2.399 € para, SOMENTE, 1.598 €. É aproveitar, senhoras, é aproveitar, não se deve voltar a repetir a palavra “promoções” assim tão cedo no Corte Inglês e, para mais, correctamente escrito em português. Porque já se sabe, os espanhóis, por mais que tentem, nunca vão conseguir falar português fluentemente. Así como nosotros hablamos castellano. La lengua no se llama “español”, eses coños no tienen ninguna identidad, são uma manta de retalhos regional, qual deles a mais parva, não sei, você sabe? Escreva no cupão que pode encontrar dentro da revista “Mature Fondling”, se não a conseguir encontrar nos bons quiosques, procure nos maus ou fale com o seu filho mais novo, ele certamente que saberá onde encontrá-la, preencha com o seu nome, morada, NIB e tipo de sangue e envie para o Sindicato da Hotelaria do Sul e Ilhas, indicando o motivo porque os espanhóis são assim tão parvos. Custo do envio: selo de 75 cêntimos e marcação obrigatória de um fim-de-semana de luxo em Vila Nova de Milfontes. Sim, porque o Algarve está cheio. De espanhóis também. É uma vergonha, o turismo algarvio está sempre pior em cada ano que passa, a base de referência, o índice = 100, deve ter sido, na melhor das hipóteses, em 1876, mas nessa altura nem devia haver Algarve… ou será que já havia? Não interessa, porque hoje estamos aqui para falar de Dália Dengosa, uma jovem hemofílica que, acaso dos acasos, deu em fadista. E é incontinente. “Incontinente” significa duas coisas: escassa capacidade da bexiga reter os líquidos e anti-Continente. Anti-Sonae. Anti-Belmiro de Azevedo. É bem feita. Anda a chular os pobres trabalhadores, isto ouvimos nós da boca dum sindicalista, enquanto preparávamos a reportagem. Como é possível existirem sindicalistas no século XXI? Como é possível passarmos 30% do nosso tempo útil de vida num hipermercado a contemplar prateleiras de mixórdias que nunca iremos comprar? É possível, sim senhor, é mesmo possível, é tão possível como terem escolhido as mulheres mais borbulhentas e enfezadas para estarem na caixa a receber o nosso cartão de débito e a desejarem-nos “Boas Festas” com uma cara de frete imenso. É exploração? É má-educação? O que será? O que sei é que não pago essa exorbitância para comprar fraldas que irão ser cagadas, de uma forma ou doutra, por putos muito mais feios e muito menos sorridentes que os putos que figuram na embalagem. Ah, pois é, agora vai mudar a fralda nojenta e semi-milionária do puto, que eu tenho um jogo de futebol para ver. Sim, soa a cliché, mas o que não é cliché hoje em dia? Não respondam, pensem apenas. Pensar = aquilo que costumávamos fazer antes de ligar a PlayStation. Foi há muito tempo, eu sei. Não levante esse cu gorduroso da cadeira e acabe lá o ProEvolution Soccer. Acomode-se bem e fique para ver esta reportagem. Sobre Dália Dengosa. A fadista que o é por mera coincidência. Não perca.

segunda-feira, julho 23, 2007

O Almoço

Eh pá, mais um almoço. Outra porcaria de almoço.
Não arranjas para aí uma outra forma de confraternização? Do género: darmos uma simples volta pelo jardim, ou pelo canteiro enfezado a que convencionámos designar por “jardim”, pois espaço verde com mais de 2 acácias ou pinheiros-mansos é já um “parque natural” nos dias que correm; ou passear pelas ruas da tua vila, que é tão pitoresca e onde a grande notícia é o suicídio de mais um toxicodependente asqueroso ou o falecimento de mais um idoso acamado e abandonado; ou visitarmos a casa um do outro, assim sempre podíamos estabelecer comparações e assegurar que a minha casa é sempre melhor que a tua, quer vista sob um prisma qualidade-preço, quer sob outro prisma qualquer; ou pura e simplesmente marcarmos um encontro na estação de comboios mais perto e comunicarmos unicamente durante o tempo de espera e enquanto nos apertamos como sardinhas na lata locomotora, se houver oportunidade para tal.
Agora, um almoço? Porque é que as grandes decisões se tomam sempre à mesa? Existirá outro veículo comunicacional que não o ajuntamento à mesa?
Estás-me a ver com cara de quem paga a conta? Tenho cara de quem financia almoços grátis?
Para começar, detesto as azeitonas. E, para finalizar, não gosto que cirandem à minha volta com apelos para comer a sobremesa, há fruta e doces muito bons, é uma pena não experimentar, mas tenho pena, não como. Pelo meio, o prato principal é que me cativa. Noto e desprezo as intenções comercialóides dos empregados de mesa, que colocam pão do dia anterior e couvettes hiper-inflacionadas para nos irmos “remediando” enquanto o prato do dia demora fastidiosos minutos a surgir esquentado à nossa frente. Mas com isto até convivo bem. O pior é quando o atraso na refeição é visto com regalo.
“Assim colocamos a conversa em dia”. É tudo o que se pretende, no final de contas. Por isso, o restaurante mais requisitado é aquele com o serviço mais lento. É o restaurante do convívio, verdadeiras casas-do-povo urbanas dos tempos modernos.
Mas quem disse que eu quero conversar? Para mim, almoço é para comer. Coro de vergonha por me exigirem uma resposta pronta ao negócio que me está a ser proposto e eu ali, de boca cheia, tentando mastigar a carne de vaca seca que se atulha na minha boca. Tenho de falar de boca cheia, seria extremamente indelicado pedir para aguardar uns breves segundos, os necessários a mastigar definitivamente, engolir e beber uma aguinha para desentupir o goto. Ninguém está virado para a minha dificuldade em deglutir, ou melhor, estão todos virados para mim à espera de uma reacção, eu de boca cheia, esforçando-me por articular som. E eu lá digo qualquer coisa, cuspindo um bocado de comida na direcção dum interlocutor. É a minha vingança. Para a próxima come e não fales. Não questiones. Não contes piadas. Não peças opiniões. Limita-te a comer.
Convenço-me que é impossível marcarem-me um almoço em que eu consiga apenas comer. O que a gente quer é falar. É coscuvilhar. É socializar à bruta. O meu conceito de almoço é demasiado tradicional. Deveras simplório. Para mim, almoço é para sentar e comer. Vá lá, admito que se veja televisão ou que se leiam jornais. Não me faz espécie que falem ao meu lado sobre a crise política ou sobre o golo em fora-de-jogo. Só peço que me deixem comer. Como se vivesse convosco durante anos a fio e o almoço fosse apenas mais um rotina insignificante, onde a obrigação da conversa fosse inexistente. Mas não – “vamos lá abrir o livro”, é o que se espera de mim, que só estou aqui pelos carapaus grelhados com molho à espanhola.
Pior que o almoço só o jantar. O jantar envolve convívio pela noite dentro. Especialmente em casas fumarentas e barulhentas, onde falar se torna impossível. Concluo que o interessante é estarmos juntos. Apenas. Só. Corpos físicos em proximidade. Primeiro, tiram-me o prazer da comida com conversa; depois, quando podia conversar, tiram-me a conversa com barulho e poluição. Percorre-me aquela estranha sensação de ter o relógio social acertado por outro fuso horário bem distinto do fuso local. O jantar para que me convidaram foi afinal um logro. Pensava eu que ia comer; não, ia jurar fidelidade a um grupo com uns bifes do lombo como pano de fundo. Pensava eu que ia dedicar-me a especialidades gastronómicas doutras latitudes; não, ia beber um sub-produto bastante alcoólico e assim preparar-me para a grande festa pós-jantar, retirando espaço gástrico às tais especialidades gastronómicas. Pois é, se não se come em condições, bebe-se à farta. E se há menos conversa, entorne-se ainda mais bebida nos copos, a conversa acabará por surgir, inevitavelmente.
Só me falta marcarem pequenos-almoços e ceias para me dizerem que se vão casar, ou que vão ter mais um filho, ou que mudaram de emprego, ou que têm uma rifa da escola da filha para venderem, ou, mais estranho que tudo isso, para quererem comer um croissant de fiambre ou uma sopinha de alho francês só porque sim, porque gostam de comer comigo à frente. Por favor.

sexta-feira, julho 20, 2007

Os Coração Universal

Este grupo musical fez furor. Eles eram os Coração Universal (CU). Como o nome indica, o colectivo era bastante romântico e apaixonado. Letras de amor e sobre desesperos da paixão combinavam com baladas melodiosas, ora calmas e ternas, ora épicas e emocionadas. Existia um coro composto por três mulatas brasileiras, um guitarrista virtuoso que surgia nalgumas faixas do grupo (“Adorável Helena, Como Tenho Pena” e “Comigo o Amor Vai Sempre À Frente”, por exemplo) e muito arranjo musical cuidado. O público-alvo era essencialmente feminino, entre os 12 e os 65 anos. Os CU também eram conhecidos pelo seu grande aprumo visual, sempre impecavelmente penteados, barbeados e vestidos, com camisas brancas de colarinhos largos e fatos pretos, sapatos brilhantes e sorriso estampado na cara, verdadeiros modelos metrossexuais que espoletavam gritinhos de desenfreada emoção na audiência e declarações arrebatantes de amor nas várias missivas enviadas pelas fãs. Toda a gente queria uma fotografia autografada por algum dos membros dos CU, havia enormes filas de mulheres em delírio histérico que aguardavam por uma oportunidade de visitar os camarins dos CU, não poupando esforços para atingir esse desiderato, entre desmaios, comoções e longas horas de espera coladas às barreiras de segurança. Não havia como esconder, os CU já possuíam uma legião de seguidoras maior que a do Tony Carreira, à qual sonegaram alguns elementos descontentes pelo sotaque afrancesado deste. Havia mesmo quem tivesse substituído o quadro da última ceia de Cristo da sua sala por um quadro dos CU em pose sorridente ao pôr-do-sol.

E quem eram os CU? Três jovens extremamente bem-parecidos: o Saul, o Feliciano e o Américo. Quisemos saber da boca deles como eles próprios se definiam.
Saul (S) – Olá, eu sou o Saul, tenho 24 anos e sou um eterno romântico. Sou muito tímido e melancólico. Não tenho namorada, espero ainda por alguém que preencha o grande espaço vazio do meu coração e com quem possa partilhar todo o carinho e afectividade que tenho para dar. Estes meus sonhos de amor inspiram-me a escrever na solidão do meu quarto virado para a praia. Sou eu quem escreve as letras do grupo, de que é exemplo o nosso recente êxito “Amor Às Postas”: “Amor, vem para junto de mim/ Amor, eu sei como tu gostas/ Não aguento tanto amor assim/ Eu quero o teu amor às postas”. Gosto de ler romances de amor e de oferecer rosas às mulheres, que são as minhas divas e pelas quais nutro um enorme afecto. Adoro-as a todas. Um beijinho para elas. Chuuuuac!
Feliciano (F) – Olá, eu sou o Feliciano, tenho 23 anos e sou de S. Mamede de Infesta. Para mim, os CU são tudo, é um grupo fabuloso de amigos que têm em comum o gosto pela música romântica e o facto de sermos eternos apaixonados. Fui eu que tive a ideia para o nome do grupo, pois julgo que o coração tem um poder do tamanho do mundo. O coração deveria comandar todas as nossas acções, deveríamos aceitar e saber viver livremente as nossas emoções. Sou um rapaz bem-disposto, sem namorada por enquanto, que gosta de conviver com os amigos e que preza muito os valores da amizade e da ternura. Adoro animais, especialmente os cães. No fundo, por serem muito amigos dos humanos, são fantásticos. A todas as nossas fãs, um GRAAAAAAAAANDE xi-coração. E lembrem-se: o amor muda o mundo.
Américo (A) – Eu sou o Américo, tenho 26 anos, sou o mais velho do grupo e moro no Bombarral, onde conheci o nosso manager, o Torcato, que me apresentou estes meus dois amigos. Era tudo o que procurava, estes rapazes são impecáveis e sentem o mesmo que eu: temos uma mensagem de paz e amor muito importante para transmitir. Nós assumimos os nossos sentimentos em palco, emocionamo-nos bastante com a recepção do público, julgo que ele sabe que o que nós cantamos é sincero, puro e muito bonito. Uma vida sem paixão não faz sentido, nós homenageamos as coisas boas que nos dá o coração e assim pretendemos continuar. Um grande beijinho para quem nos apoia e continuem sempre a sonhar e a amar.

O que os CU não sabiam era que a entrevista que eles pensavam estar em off estava na realidade em on. Registámos o diálogo subsequente.
S – Bem, o que vamos fazer agora?
A – Pá, vamos mas é mamar umas cervejolas, que ainda faltam umas 6 horas para o concerto.
F – Onde é que vai ser o concerto, afinal?
A – Hoje vai ser em Famalicão… ou em Barcelos… sei lá, é lá para o Norte. E depois ainda vamos autografar a me*** dos discos e dar umas flores às gajas, a me*** do costume…
F – Eh, pá, f***-se, essas gajas do Norte gritam como o car****… histéricas do car****… Vou mas é fazer um risco, que é para ver se aturo essa me***… São servidos?
A – Aaah! Tinhas aí branca e não dizias nada, ó pane****o? Faz aí um risco para mim também!
S – Este gajo anda a dar na branca sem nós sabermos! Se fosses para o car****!... Quando estás a ressacar, nós ajudamos-te; quando estás na boa, cagas na gente, não é?
F – Ó Saul, vai-te f***r!! Escreve mas é mais uma dessas letras de me*** que sabes fazer e não stresses!
S – Ai o car***o, ó Feliciano! Tens alguma coisa contra? Se não fossem as minhas letras, este grupo não ia a lado nenhum! Tu estás feito um agarrado do car***o e o Américo, se não estivesse nos CU, estava a treinar cães de luta lá na parvónia!
A – Parvónia o quê, ó car***o? Tens muita mania, ó morcão… vê lá se queres que largue o meu pittbull para te f***r esse cu de mouro… Tu fazes as letras mas és feio como a me***, nem com esse gel todo e com as duas plásticas que fizeste após a nossa dupla platina disfarças o teu aspecto de gnu… Sabes bem que nós é que somos gajos todos bons e que as gajas querem-nos é a nós… És bom sim, mas é a bater punhetas!
F – Ahahah!, está boa essa, está, ó Américo! Esse coninhas treme só de ver uma mamalhuda ao perto! Sniiiiiiiiiiiiiiiif!... F***-se, que esta branca é mêm’ do best… Ena, c’um car***o… F***-se!... Sniiiiiiiiiiiiiiiif!
S – Estás enganado, ó drogado! Já f**i mais gajas nos camarins do que tu! Mas buéréré mais!
F – Quem, tu? F***-se, é só pitas! Tu só papas gajas gordas com menos de 16 anos!
A – Ahahah! E daquelas lá de Trás-os-Montes, com aparelho e tudo… Ainda me lembro, em Viseu estava eu com uma loiraça toda boa, a escavacar aquele grelo forte e feio, ela a dizer “Amas-me, Américo?”, e eu “Amo-te pois, minha querida… o meu coração é todo teu”…
F – Eheheh, és fo***o, ó Américo… sempre com essas me***s!...
A – Sabes como é, tenho uma lábia do car****… bem, mas nessa altura estava mesmo cheio de tesão, a gaja era boa como tudo, uma gaja dessas só aparece de tempos a tempos, como naquele concerto lá em França… enfim, estava eu já quase a comer o cuzinho da gaja, a dizer que lhe amava como nunca tinha amado ninguém e que ela era o sol que iluminava a minha existência…
F – Essa do sol não falha… Já comi umas quantas gajonas assim com esses paleios de me***!... Sniiiiiiif!
A – …e estava o Saul a tentar engatar uma gorda com os dentes podres de 15 anos que estava lá com o poster para ele assinar! Eheheh! Não tens vergonha, ó Saul?
S – Vão todos mas é para o car***o! Eu vou falar com o Torcato e dizer-lhe que não vos aguento mais, vocês só têm me*** na cabeça! F***-se, odeio-vos!
A – Vai-te mas é f***r, tu precisas de nós! Nós é que temos o estilo todo. Embora aqui o Feliciano só convença as cotas raquíticas…
F – Ai o car****, ó Américo! O que é que estás para aí a dizer? Aquilo não são cotas, são mulheres com experiência… E estou a namorar agora com a Maria de Lourdes, que é uma velha toda boa…É um campeonato mais difícil, requer mais concentração… tu só comes put** fáceis!
A – Ahahah!, deixa-me rir! Só f***s é cotas cinquentonas e usadas! F***-se meu, enxerga-te lá bem ao espelho… Tens um trombil que mete medo, o que te vale é teres tido aulas de musculação…
S – Musculação… Esse gajo é só esteróides e anabolizantes… Drogado de me***…
F – Vão para o car***o, vocês os dois! F***-se, que são chatos como a me***! Também só espero que o Torcato me arranje outros gajos… e outra banda, que já enjoei destas me***s melosas de “amor”, “carinho”, “ternura”… F***-se, é só m***a, se eu cantasse o que me vai na alma era mais morte a essa canalha que anda para aí a roubar e que se f***m os políticos, isso é que é brutal! Aposto que continuava a f***r à grande e à francesa de qualquer das formas, bom como eu sou…
A – Olha, eu digo o mesmo. Eu é mais rap e hip-hop, ‘tão a ver a cena? Lutas na street, graffittis, a minha crew toda a apoiar… Iá, isso é que é… Agora estas me***s… Eu cago nesta me*** toda, quero é curtir a minha onda, ‘tão a ver. Vocês metem nojo. E eu nunca gostei de nenhuma gaja a sério… para mim é fo**-las o máximo que possa. Ehehehehe!
S – Vão todos para o car****! Montes de me*** que me saíram!
F – Tens algum problema, ó Saulzinho? Vê lá se queres que solte um dos meus cães para cima de ti… ficavas logo feito num monte de ossos…
A – Ouve lá, ó bacano, também não fales assim com ele, se há alguém aqui que lhe deve ir à tromba sou eu… Vê lá se te enfio uma biqueira larga 42 pelo teu cu acima e mando um balázio no focinho dos teus cães…

F – Olha-me este cromo, todo armado em bom… Espera lá que já te f***!...
Torcato – Meus, meus! Qual é a vossa?!? Esta m***a está a dar em directo na rádio! Vocês estão malucos?!? Estão a arruinar a minha e a vossa carreira! Atrasados mentais! Desliguem o microfone, car****!!!
S – Onde está essa me***?
F – Está atrás de ti, car****! Desliga já essa me***!
A – F***-se, se calhar ninguém ouv...

Mas houve muita gente que ouviu. Torcato, atormentado, lá admitiu publicamente que os CU não seriam assim tão genuinamente românticos quanto isso, o que delapidou por inteiro a sua base de fãs. As seguidoras sentiram-se ofendidas, traídas e humilhadas por terem visto os seus sentimentos manipulados. Quase nenhuma fã sobrou, a queda nos topes foi abrupta e brutal. Torcato tentou reinventar os CU, agora denominados Canibais Urbanos, com estilo entre o punk, o disco e o hip-hop, mas debalde. Os novos CU não granjearam grandes apoios fora dalguns bairros periféricos de Lisboa e do Porto e desmantelaram-se definitivamente após um concerto mal sucedido na Campanhã, que terminou com uma rusga policial, apreensão de droga, armas ilegais e vários documentos de identificação falsificados, dois mortos e catorze feridos, entre os quais Feliciano, mordido no tórax por um cão da sua própria matilha.
Hoje em dia, Torcato, refeito deste desastre, mantém-se como manager musical, promovendo novos êxitos como as Tau-Tau e Tó Ny. Saul é procurado pela polícia por assédio sexual a animais em vias de extinção e escreve para uma fanzine de extrema-direita. Feliciano luta diariamente para fugir à overdose enquanto entrega pizzas e organiza lutas de cães. Américo juntou-se a uma luta armada de resistência algures na América Latina, onde é cabecilha dum grupo rebelde constituído por crianças raptadas a orfanatos e que é responsável por massacres em plantações de cocaína. Nenhum deles voltou a ganhar um mísero disco de prata.

quarta-feira, julho 18, 2007

Momento Cláudio Ramos

PRÓLOGO
Uma vez, enquanto passeava num centro comercial, o Cláudio Ramos passou e olhou para mim.
De alto a baixo.
Eu não reparei na altura.
Disseram-me depois.
Quando tomei conhecimento, assumi que a ocorrência tinha sido mais que uma simples curiosidade.
Foi algo perturbante.
Uma estranha sensação de repulsa percorreu-me o corpo algum tempo após o incidente.
Uma espécie de náusea com jet lag assolou-me.
Não desejo isto a ninguém.
Pronto, podia ter sido pior.
Tipo… Não quero imaginar.

MOMENTO CLÁUDIO RAMOS
No treino do Benfica, Justino, treinador de guarda-redes, procurava comunicar com o recém-chegado Hans-Jörg Butt, guardião alemão acabadinho de chegar ao nosso país e, consequentemente, com domínio praticamente nulo da língua de Luís Vaz. A comunicação fez-se com o auxílio de linguagem gestual. O maestro Rui Costa, ao longe, gracejou: “Ó Justo, escusas de falar com ele que ele não percebe a língua de Chelas”. Justino replicou: “Percebe, percebe, eu sou um poliglota”.
Num assomo de dever público, a RTP emitiu esta peça num Telejornal. Mais palavra, menos palavra, a situação está toda aqui. Embora aparentemente simples, várias ilações se podem extrair deste trecho:
- Butt, em inglês, é sinónimo de “rabo” (a parte corporal). Creio que ele encontrou o clube certo para prosseguir a sua carreira. Toda a gente sabe que “rabo” e “merda” combinam na perfeição.
- Hans-Jörg Butt é homónimo de Nicky Butt, um médio inglês do Newcastle e amigo longínquo de David Beckham. Provavelmente, o Benfica enganou-se no “rabo”, pois com o Hans-Jörg fica com 3 guarda-redes no plantel (até ver), sendo sabido que só um é que joga, ao invés de ficar com um médio com poderia suprir a saída do portentoso Beto e do orelhudo Karagounis. Eles lá sabem. O “rabo” já está cá e já se equipa de cor-de-rosa. Não há coincidências?
- Rui Costa teve uma atitude altamente racista e xenófoba. Então em Chelas não se fala português? O que é que o maestro quis insinuar? Teria alguma coisa a ver com as minorias étnicas que por lá habitam? Será que o Rui Costa sabe quem é Sam The Kid, o paladino da língua portuguesa originário de Chelas? Saberá o Rui Costa os perigos a que se expôs? O Justino tem culpa de ser de Chelas (por acaso, até julgo que ele é do vizinho Bairro do Relógio)? Esperava outra atitude por parte do maestro, visto que ele é um exemplo para a juventude.
- Justino tem a alcunha de “Justo”. Até aqui tudo bem, é o que se espera dum treinador. O chocante foi ele assumir que em Chelas fala-se realmente outra língua, considerando-se a si mesmo um poliglota que domina tanto o português como o cheliano. Mais uma vez, os preconceitos retrógradas vieram à tona.
- Não fossem os Gato Fedorento benfiquistas primários, bem como uns humoristas selectivos que só brincam com o que querem e com o que não lhes afecta directamente (e estão no seu direito), e já imaginava um cartaz a zombar com o Rui Costa e o Justino à porta da Caixa Futebol Campus, que poderia ser “Vamos de férias para o estrangeiro, vamos a Chelas, boa viagem”, ou qualquer coisa assim. Deixo a sugestão.
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Ainda revolvendo em torno do tema Benfica e do seu jersey rosa: o Outra Louça captou a subtileza de Nuno Gomes há cerca de um ano,
neste post. De tudo isto se infere que a decisão do equipamento alternativo ser rosa foi tomada após alguma reflexão. Há alguém no Benfica que percebeu as preferências de Nuno Gomes e que reconheceu a crítica atenta do Outra Louça. Não deve ter sido Luís Filipe Vieira. Os blogues não devem fazer parte do seu cardápio cultural. Se tiver cardápio cultural, claro.
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Comandante Sousa Monteiro, na SIC, a comentar o desastre no aeroporto de S. Paulo: “O avião é belíssimo”. Isto a ver uma imagem do avião totalmente destruído e em chamas.
Esperava que o Comandante soubesse utilizar melhor a língua portuguesa. Devia ter utilizado o pretérito perfeito do indicativo e não o absurdo presente do indicativo. Mais Diogo Infante fazia-lhe bem.

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Se um ano civil tem 365 ou 366 dias e o ano comercial 360, o ano português de trabalho possui menos de 300 dias úteis. Muito menos. Em Julho e Agosto não se tomam decisões, protelam-se as mesmas até Setembro. É um dado adquirido: nada se faz no Verão. A própria gestão corrente fica em piloto automático. As pessoas que decidem têm apenas 25 dias de férias, mas já se sabe que, inevitavelmente, alguém mais indispensável às decisões estará de férias exactamente nos dias em que essas pessoas não estão. E isto quando não se armam em espertos e metem férias em Junho ou Setembro. E depois vem o Natal. E o Ano Novo. E a Páscoa. Viva a produtividade.
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Quero saber qual é a cunha do Fernando Alvim na SIC. Porque é que este gajo se mantém no ar? Já todos percebemos que ele é mau. Então porquê? Tanta gente sem emprego, tanto emprego sem gente capaz. Alvim rima com Penim, todavia, e isto pode ajudar a explicar muito. Ou muito me engano, ou temos aqui um novo Luís Pereira de Sousa em projecção. Sem bigode mas ainda mais parvo.
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EPÍLOGO
Brian Eno (sim, tal como o antiácido substituto do Alka-Seltzer), famoso músico e produtor que já colaborou com David Bowie, U2 e Talking Heads, entre outros, é o prestigiado autor da música de abertura do Microsoft Windows 95. Não era qualquer um que compunha aquilo. Ficamos com a ideia que todos temos as nossas vicissitudes comerciais e os génios não são excepção. Fica aqui o registo, é um pedaço de cultura geral que pode servir para meter conversa em elevadores encravados.

terça-feira, julho 17, 2007

O Gordo e o Magro

- Estou cheio de fome.
- Come pão.
- Não posso. Tenho uma doença celíaca.
- O que é isso?
- Alergia ao glúten.
- E é muito grave?
- Significa que se eu comer pão fico de diarreia, é quase certo.
- Podes morrer?
- Num caso extremo…
- Então não comas pão.
- Não ia comer pão. Também não ia beber leite, pois sou intolerante à lactose.
- E podes morrer se beberes leite?
- Eventualmente…
- Então não bebas leite. Come fruta.
- Fruta não mata a fome.
- Então não? Come uma dúzia de laranjas.
- E depois apanho uma sobredose de vitamina C… e lá vêm os problemas intestinais.
- Come um bolinho de chocolate.
- Isso faz mal aos dentes. E, além do mais, tenho tendência para diabetes.
- Podes comer carne e peixe?
- Posso… mas não quero. Não como outros animais.
- Nem um arroz de marisco?
- Tenho a infelicidade de ser alérgico ao arroz. E marisco está-me vedado.
- És vegetariano?
- Sou mais que isso. Sou vegan.
- Ah, está bem. O que podes comer, então?
- Soja.
- E mais alguma coisa?
- Todos os vegetais não transgénicos. Isto é, praticamente nada. E saladas não matam a fome.
- E a soja não é transgénica?
- A que eu como, não.
- E porque é que não comes soja agora, que te está a dar a fome?
- Estou farto de soja.
- Quão farto?
- Mesmo farto. Fartíssimo. Tu sabes o que é ter de viver apenas com rebentos de soja, tartes de soja, leite de soja, farinheiras de soja, cozido de soja, soja à Brás, soja demolhada e ultracongelada, tiras de soja, rodízio de soja, aguardente de soja, empadão de soja, gelado de soja, pudim de soja… Eu vejo a minha lista de supermercado e é só soja, soja, soja, soja, peúgas, água mineral, azeite e soja, soja, soja e soja. Vou sair com os meus amigos e é uma entremeada grelhada para um, um hambúrguer para outro, uma pizza 4 estações para aqueloutro, “E para si, senhor?”, “Ah, para mim era um filete de soja”, “Lamento, mas não temos”, e à falta de um menu adequado, lá estou eu a comer bróculos e cabeças de nabo cozidas à pressa. Estou completamente saturado! Tenho fome, pôrra!
- E porque é que insistes em ser vegan? Achas que vale a pena o sacrifício? Julgas que aguentas tantas privações? És um fracote que reage mal a tudo… e o que não te provoca reacções é reprimido por ti, porque faz mal e tal… Olha, é bem feito estares a desvanecer, se não fosses tão picuinhas estavas na maior…
- Eu tenho princípios. Eu acredito nas minhas convicções. Não posso mudar: era sinal que tinha abandonado a luta pelos meus ideais. Era o meu fim ideológico. Era a derrota final. Era a minha morte enquanto Homem com honra.
- Está bem, está… Olha lá para ti: pesas menos de 50 quilos…
- Eu sei…
- Se não matas a fome depressa, depressa a fome mata-te a ti…
- Eu sei…
- Queres que eu te dê uma grande alegria psicológica? Não alimenta o teu aspecto tísico, mas pelo menos conforta-te o espírito.
- Dá-me lá…
- Farto-me de comer ovos, pão, açúcar, carne gordurosa e marisco; peixe também, mas só quando não há carne por perto. Raramente bebo leite, a não ser quando junto ao café que ingiro 5 vezes por dia. Tenho um hálito nauseabundo, devido ao álcool e ao tabaco, peso mais de 120 quilos, sou gordo e tenho os dentes podres. Arroto alarvemente em função das minhas complicações gástricas. A única verdura que costumo comer é o grelo da minha mulher. Embora sedentário e carregado de colesterol, sou feliz. Tens aqui o meu retrato. Espero que te sintas melhor.
- Eh, pá, sim senhor. Isso renova-me vontade de lutar. Não quero ser como tu, está mais que visto.
- Podias ser mais delicado… estou a tentar ajudar-te… o que é que está assim tão mal em mim, ó magricela?
- Tudo, pá. Todas as porcarias que ingeres, todos os teus hábitos pouco saudáveis, todo o desrespeito pelo ecossistema que te rodeia… e o sexo com a tua mulher deve ser um espectáculo mórbido… vocês os dois já nem cabem num elevador…
- Por acaso é… A gaja está gorda como tudo… Tem o cu tão adiposo que já tem de cagar numa banheira…
- E tu também…
- Deixa estar. Pelo menos, não morro à fome.
- Morres de enfarte.
- Não morremos todos? Pelo menos morro a fazer o que me dá na gana.
- E eu morro a lutar.
- Morrer a lutar? Pff… Acho que és um lírico inocente.
- Morrer a comer? Pff… E tu és um hedonista inconsequente.
- Somos tão parecidos, afinal…
- Fala por ti. Tu não tens objectivos nem valores sãos. Eu sim. A minha luta é o reflexo dum estado superior da mente.
- Pois eu acho que tu és “demente”. Qual luta? O que pretendes provar?
- Tudo. Se mudar-me a mim, poderei mudar o mundo. E tu só queres aproveitar-te das coisas boas do mundo. Tudo isso não é dado, constrói-se e preserva-se. Com esforço e dedicação.
- Que se lixe. Se ninguém se colocar à sombra das coisas boas da vida, de que vale a pena lutar por elas? Quem vai desfrutar de tanto “esforço e dedicação”?
- Que egoísmo…
- Que ingenuidade…
- Não vale a pena gastar mais forças… vou resignar-me à soja, por muito que me custe.
- Queres uma fatia de presunto de Chaves, bem salgadinha e saborosa? Enquanto comemos, contavas-me como está a ser a tua saga heróica rumo ao nirvana…
- Vai gozar com outro, ó gordo!

domingo, julho 15, 2007

Os Bravos do Pelotão

Bombas rebentam por todo o lado. Contexto: coração do teatro de guerra. Entrincheirado na lama, entre o clamor e os clarões, o Alferes Mealheiro conta as espingardas com o Cabo Ruivo.
- Cabo Ruivo, onde está o nosso pelotão?
- Está completamente disperso, Alferes Mealheiro. Receio termos sofrido grandes baixas.
- Sabes do Tinóni?
- Morreu.
- E o Coratos de Alumínio?
- Morreu.
- E o Azeites?
- Morreu com o Tinóni e o Coratos de Alumínio.
- Quê? Foi uma granada?
- Não. Foi a ração militar que comeram… já tinha passado do prazo de validade.
- Ena pá… e o Jonas Doninha?
- Não veio.
- Não veio?!?
- Não. Ficou na caserna a lavar a roupa.
- A lavar a roupa? Como é possível?!?
- Eu também acho mal. Ao menos que fosse para limpar as latrinas… aquilo está uma miséria, sempre que o Zé Badocha vai lá deixa aquilo num estado lastimoso.
- Por falar nele, o que é feito do Zé Badocha?
- Está com medo.
- Com medo? E onde ele está?
- Hãã… deve estar por aí, todo borrado. Como de costume.
Um morteiro rebenta bem perto da trincheira dos bravos Mealheiro e Ruivo. Com a explosão, destroços de vária ordem atingem os capacetes de ambos. Bem ao lado deles, aterra a cabeça do pobre Zé Badocha.
- Cá está ele, meu Alferes.
- Pobre Badocha… Bem, mas ainda deve sobrar o Saraiva…
- … está a estudar para o exame de flauta transversal no acampamento…
- Como assim? Mas esta era a nossa batalha decisiva!
- Não diga isso, meu Alferes! O meu Alferes não sabe as privações que o Saraiva passou na vida para chegar até este exame!
- Quais privações, Ruivo?
- Hãã… Muitas! Percebeu? Muitas! Tipo… por exemplo, não teve juventude. Perdeu toda a juventude.
- Por causa da flauta transversal?
- Por acaso, foi mais por causa da estupidez teimosa dele e da sua ligeira paralisia cerebral. Se calhar, um pouco também por causa da flauta transversal.
- Bolas, Ruivo! Exceptuando o Sargento Rosado…
- O Sargento Rosado passou para o lado do inimigo.
- Hã?!? Como assim?!?
- Pagavam o dobro do subsídio de almoço. E o Sargento achou que eles eram mais simpáticos.
- Simpáticos? O nosso inimigo?!? Tudo o que nós odiamos?!?
- Meu Alferes, temos de reconhecer… eles até pedem licença antes de dispararem à queima-roupa… executam prisioneiros de guerra apenas depois de lavar as mãos com sabonete… e têm sempre um sorriso quando nos capturam, nunca proferem palavrões…
- Rai’s parta!! Traidores!!! Resta-nos o nosso homem da pontaria, o valente Tobias.
- Qual Tobias?
- O Tobias, Ruivo! O homem que despachou dúzias e dúzias de inimigos na famosa operação que chamámos “Operação Conhecida por Ter Nome”… diria mesmo, dezenas de inimigos! O mais bravo do pelotão, Ruivo!!
- Ah, o Boca Mole?
- O Boca Mole?
- Sim, pusemos-lhe essa alcunha. Ele está indisposto.
- Indisposto?
- Sim, ele não pode ver muito sangue… Começa a tremer e fica sem forças…
- Mas como, Ruivo?!? O nosso mais destemido operacional?!?
- Pois é, meu Alferes. As pessoas mudam. Eu próprio gostava mais de ter as paredes da minha sala pintadas todas de branco, apenas com uma das paredes mais pequenas (que a minha sala é rectangular) pintada com outra cor, para destoar e para realçar os interiores… mas desde que descobri uma casa na Baixa que vende papel de parede feito com um plástico italiano especial, não quero outra coisa. Coloquei aquele papel de parede em toda a minha casa.
- A sério, Ruivo? É curioso, eu também já estive nessa casa e fiquei com a mesma impressão… Eh, pá, aquilo é que é design! Aquilo não tem nada a ver com o antigo papel de parede que todos conhecíamos…
- Nada mesmo, meu Alferes. É outra louça. E chegou a ver os cortinados?
- Ainda pensei em trazer um para pôr no meu quarto… estou farto dos cortinados que lá tenho, sabes? Os miúdos deram cabo deles quando eram putos, penduravam-se neles e tudo, acho que está na altura de trocá-los. Agora os miúdos já estão mais crescidos, já não os estragam. Mas ainda são caros, não são?
- Meu Alferes, é como em tudo: espetam-lhes com uma etiqueta de prestígio em cima e passam logo a valer mais. É dispendioso, sim senhor. Mas a qualidade está lá toda.
- Queres ir lá comigo, Ruivo? Íamos com a minha mulher, que ela tem de ter uma palavra a dizer, sabes como é, ela é a patroa. Mas garanto-te que vou comprar um cortinado pelo menos, diga o que ela disser.
- Vou pois, Meu Alferes. Será um prazer. Aproveito para levar a minha mulher comigo. Ela vai adorar, aposto. Aliás, foi ela que me indicou a loja e que me trouxe o catálogo.
- Eh, pá, tens aí o catálogo? Isso é que era à maneira…
- Infelizmente não, meu Alferes. O inimigo tomou o catálogo durante a nossa incursão na frente oeste.
- Irra, Ruivo! Estamos mesmo por nós! Temos de nos aguentar! Avancemos, então! Deus está connosco!
- Está bem… vamos então, meu Alferes. Que Deus nos acompanhe… vamos ver os cortinados na 3ª feira?
- 3ª feira não, Ruivo. 3ª feira pensava ir cortar o cabelo, se entretanto sobreviver, tenho de aparar estas patilhas que já não se parecem com nada… Não queres ir logo na 2ª feira pela manhãzinha?
- 2ª feira a loja encerra para descanso do pessoal, meu Alferes…
- Então vamos lá agora, que tal? Abandonávamos isto, que também já não podemos fazer muita coisa sozinhos… e eu não sou nenhum herói por aí além… nem eu, nem tu…
- Boa ideia, meu Alferes! Eu próprio já não me sentia muito motivado para combater, já morreu muita gente e eu podia ser o próximo…
- Ó Ruivo, então vamos mas é ver uns cortinadozinhos jeitosos e deixar o inimigo gastar o arsenal deles em vão…
- Vamos lá, meu Alferes.

sexta-feira, julho 13, 2007

Preservativos Com Sabor a Sardinha

Úrsula pretende preservativos com sabor a sardinha. Seria algo que identificaria uma verdadeira brochista portuguesa, distinta das restantes brochistas mundiais. Com esta ideia, todo o renascimento do verdadeiro marketing português. Como cereja em cima do bolo, o sabor a sardinha subdividiria-se em dois géneros: o sabor “extra-pimento verde” e o sabor “extra-salgado”.
O sabor a morango é banal, o aroma a tutti-frutti é italiano, existem travos a maçã, laranja e chocolate verdadeiramente insatisfatórios, os restantes gostos descambam para o tropical, colando-se a uma iconografia muito abrasileirada. A puta portuguesa tem um nível superior, ufana-se Úrsula. O segredo é posicionar o putedo português no segmento de mercado de luxo. Putas finas, por outras palavras. Finas e altamente nacionalistas, estas putas de direita, putas do 28 de Maio, putas de tributo ao bom Ballet Rose. Putas com uma mensagem política subjacente.
Uns dirão que as putas são intrinsecamente políticas, sendo a política nada mais que o proxenetismo moral em estado puro. Mas isso agora não vem ao caso.
Pensando bem, Úrsula também apoia vibradores com a forma da alheira de Mirandela, strap-ons constituídos por pele de vaca alentejana curtida e Galos de Barcelos em cadeia que se assemelham a bolas chinesas para introdução vaginal e anal. Mas isso são projectos a longo-prazo. No imediato, há que concentrar no essencial e urgente. E todos sabemos o quão urgente e essencial é o broche para o sr. Doutor e para o sr. Engenheiro. É pelo broche que se começa.
“Chupa-me todo, querida”, soltava com boçalidade o sr.Doutor, no frémito da sua excitação, enquanto desapertava o nó da gravata que o estrangulava e que, embora pudesse ser um elemento potenciador do êxtase, para ele só atrapalhava. O sr. Doutor era muito despachado nisto do sexo, libertava-se de qualquer pudor, era atroz e cruel, nada de carícias nem de servilismo; a puta que engolisse tudo e mais alguma coisa, palmadas no rabo dela eram pão para a sua boca, ejaculava em cheio nos olhos dela e nas notas de 20 euros com que lhe pagava, deixando-as tombar, desleixado, no chão, para que ela as apanhasse como se tratassem de migalhas para os famintos; e lá estava a puta, submissa e humilhada, recolhendo as notas sujas de sémen e limpando-as ao seu corpo, que bem que sabia a ele a humilhação dela, subjugado que ele era durante a sua vida profissional por outros doutores, menos perversos mas muito mais práticos do que ele. Úrsula era um tubo de escape humano, um objecto tornado bode expiatório, uma forma de terapia. Desde que continuassem a pagar bem, ela podia ser ainda qualquer coisa mais. Úrsula adapta-se facilmente às circunstâncias e todos sabemos o quão reconhecido é esse atributo nos dias difíceis que hoje correm. Ela é uma puta da vanguarda.
Úrsula chupa de forma semi-automática, cá vai disto, mais pénis, menos pénis, é só um bocado de pele musculada tensa, bah!, há quem chupe rebuçados com sabores execráveis e pague por isso. Ela era bem paga, chupava isso e muito mais. Este sabor concreto da pele não é dos melhores, o doutor nem sequer se lavava com muita assiduidade dada a intensidade da agenda… ah!, a agenda… e sabores a fruta infantilizam demais aquilo que se quer um acto, digamos, com alguma maturidade – se é que podemos considerar a libertação de todas as tensões interiores sob a forma de sexo algo realmente maduro.
E então, veio-lhe esta ideia revolucionária, antes de ele se vir sobre ela.
Porquê sardinhas? Podia ser cozido à portuguesa, ou mesmo sabor a migas, talvez um preservativo com sabor a bacalhau. Mas da sardinha é que Úrsula gosta. A sardinha, no seu esplendor, traduz todo o zeitgeist português: pequenino e gordinho. É impossível resistir ao chamamento da sardinha, ou recusar um convite para um rodízio de sardinhas estival (“a sardinhada”), uma forma peculiar de convívio dos portugueses. Lá pelo Santo António, Úrsula devorava umas quantas sobre uma fatia de pão, bebia um vinhito a martelo e lá ia ela, brochar clientes durante toda a noite em Santos-o-Velho ou Campolide, tanto lhe fazia, já conhecia todas as marchas de trás para a frente. Ela abandonava o seu mercado aristocrático durante uma noite e entregava-se ao povo, dizendo “que se lixe, já que vim aqui para a sardinha, fico aqui para o broche – e ganho uns cobres chupando as pixas do proletariado”.
Esta ideia havia de pegar, acreditava Úrsula. Um preservativo com código de barras 560, sabor a sardinha. Um ícone nacional, rivalizando lado a lado com os Pastéis de Tentúgal e com as Tortas de Azeitão.
E Úrsula foi oferecer os seus serviços ao industrial que produz os preservativos, que por acaso até era gay, mas que aceitou que ela lhe penetrasse com um forte vibrador enquanto cantarolava músicas românticas do João Pedro Pais. Ela vendeu-lhe a ideia, o tempo e a sua qualidade artística, naquilo que foi uma noite bem passada e diferente das habituais. O industrial ficou de pensar, depois de acarinhar o seu rabiosque com pó e talco.
Pensou-se, num primeiro esboço de design para o pacote, fazer um pénis em forma de sardinha na embalagem, com um gorro vermelho e verde com um escudo armilar no meio a servir do preservativo que iria envolver a sardinha. Isto de modo a apelar ao patriotismo dos consumidores. Mas isto são cogitações. Para já, ficou equacionado o primeiro estudo de mercado. Algumas putas de jornal serão contactadas brevemente para testar o referido protótipo de látex português. Úrsula não é ursa – já garantiu 10% do total de receitas de eventuais vendas futuras.

quinta-feira, julho 12, 2007

Daúto Faquirá

Um-dó-li-tá.
Daúto Faquirá.
Quem está livre, livre está.
Daúto Faquirá.
Ena pá, come um Epá.
Daúto Faquirá.
Quem inventou o teu nome tinha uma imaginação má.
Daúto Faquirá.
Dó-ré-mi-fá.
Daúto Faquirá.
Batotice não há cá.
Daúto Faquirá.
Já estiveste na Maxmen, já.
Daúto Faquirá.
Podias ser um mensageiro de Alá.
Daúto Faquirá.
Obla-di-obla-dá
Daúto Faquirá.
E que tal um Bacalhau à Gomes de Sá?
Daúto Faquirá.
Gostas mais de dizer adeus e menos de dizer olá.
Daúto Faquirá.
Estavas tu a vir para cá e eu já estava a ir para lá.
Daúto Faquirá.
De-do-do-do-de-dá-dá-dá
Daúto Faquirá.
Queres fiambre da perna ou da pá?
Daúto Faquirá.
Não és da Fatah nem do Hezbollah
Daúto Faquirá.
Se quiseres um Danoninho, a mãe dá.
Daúto Faquirá.
Ainda podes ser um caso sério, oxalá.
Daúto Faquirá.
Pediste um café e deram-te um chá.
Daúto Faquirá.
Daúto Faquirá?
Daúto Faquirá.

quarta-feira, julho 11, 2007

Conselhos Samaritanos

Jovem esclarecido:

Paga impostos. Paga até os impostos que não são teus. Tem a decência de apresentar tudo logo a 2 de Janeiro, para não haver atrasos. Reúne o teu agregado familiar e queima todos os recibos de despesas numa pira familiar, de forma a não delapidar a base tributável. Se a Direcção-Geral de Contribuições e Impostos se atrasar, um dia que seja, dirige-te à repartição do teu domicílio e exige que recebam um cheque da tua parte. Faz questão de deixar gorjeta à inefável e injustiçada funcionária pública que te olhará com incredulidade. Adquire produtos de luxo, feitos com material reciclado, claro, antecipa as compras que só pensavas fazer daqui a dez anos e declara-as a todas neste exercício fiscal. Inclui na tua declaração todos os brinquedos que compraste para os sobrinhos e não te esqueças de colocar um barco a motor, um apartamento de luxo na Foz e rendimentos exorbitantes de especulação bolsista, mesmo que não tenhas nada do descrito – e não te sintas constrangido, serão mentiras que ninguém irá contestar e serão mentiras exclusivamente para o bem público. Se tiveres oportunidade de te lamentar, afirma que apoias o fim da escandalosa taxa reduzida do IVA. Refere que o IRS devia ser, no mínimo, uns 40% e que o IRC devia desaparecer de vez para aumentar a nossa competitividade. Aplaude a criação de novas taxas, especialmente municipais, e argumenta a favor da dupla tributação. Se tiveres impostos a recuperar, esconde-te com vergonha da tua miserável condição e devolve o dinheiro aos cofres do Estado, que é onde ele faz falta: para estradas, hospitais, carrinhos de alta cilindrada e férias dos nossos grandes líderes.
Espera nas filas. Sempre em pé, se possível. Dá lugar aos velhos e mulheres que esperam como tu, sê cavalheiro em toda e qualquer situação e orgulha-te de ninguém ter reconhecido a tua amabilidade e de continuarem a olhar para ti como se fosses um facínora vulgar. Pára em todos os STOPs de qualquer estrada secundária e cumpre o limite de velocidade. Quando te insultarem ao volante, dá a outra face para seres cuspido ou agredido, desde que não percas o controlo da viatura. Jamais trates alguém por “tu”, que podem levar a mal a coloquialidade das tuas maneiras. Relembra-te que o professor, o polícia, o chefe e os médicos têm sempre razão e que tu és uma pessoa confusa, embora bem intencionada. E se não estiveres em nenhuma fila, alista-te no exército, faz-te voluntário de qualquer coisa, doa qualquer bem imóvel a uma qualquer associação de defesa dos direitos de alguma coisa, desenrasca-te como puderes, mas doa. Voluntariamente.
Não penses em trair a tua mulher. Deixa que ela o faça em primeiro lugar. Nem sequer discutas com ela, não tentes perceber o porquê, ela tem razão, sempre teve, não foi desta que a perdeu e não vale a pena tentares fazer o mesmo, porque ninguém estará interessado em ti e isso já não seria bem uma traição, seria mais um atestado de razão à traição dela. Procura ilações positivas pelo facto dela te ter traído com um gajo qualquer, como, por exemplo, o facto de possuíres mais tempo para aprender a cozinhar, sozinho que estás. Não cedas à tentação da pornografia da Internet, lembra-te que é tudo montagens e que a infelicidade das personagens na vida real é algo de aflitivo. Nem sequer te masturbes, pensa é numa forma de agilizares a maneira de despachar os calhamaços de papel que repousam na tua secretária lá no teu local de trabalho. Arbeit macht frei, o sexo implica perda de produção, desamarra-te dessa actividade animal que só atrasa o país. Não te esqueças que cada parto é lesivo ao Estado, ao fazê-lo gastar 30€ mensais em abonos de família. Pronto, poderás ver o João Kléber de vez em quando, se isso te consola.
Não favoreças os teus amigos. Pensa bem se eles já fizeram alguma coisa por ti. É bem provável que não, a não ser uma ocasional cervejola que te pagaram num passado remoto. E devias ter preferido um Sumol. Portanto, faz o teu trabalho das 8 às 8, sem horas extraordinárias e incluindo fins-de-semana, deixa os teus pseudo-amigos à espera e confia cegamente nos teus superiores hierárquicos, que certamente saberão reconhecer o mérito aos amigos deles, esses sim, amigos a valer e que já fizeram favores a valer. Se alguma vez tiveres oportunidade de colocar o teu amigo num excelente cargo, avisa as autoridades competentes e deixa que o partido escolha a pessoa indicada. Se o teu amigo insistir e te oferecer alguma gratificação, denuncia-o e tenta que essa gratificação seja entregue às autoridades competentes. Informa-te bem quem são as tais “autoridades competentes”, que é para não fazeres má figura e falares com quem já não é bem a “autoridade competente” em questão, mas sim uns porcos oportunistas chulos do Estado. Denuncia esses gajos também, se por um estúpido acaso souberes distingui-los.
Se fizeres tudo isto, estarás a dar um contributo cívico ao teu país. O país agradece e honrar-te-á condignamente para a posteridade, prometendo que colocará uma bandeira de Portugal na tua urna aquando do teu enterro. Em caso de cremação, obviamente, não haverá esta homenagem – e aqui garantimos que cumpriremos a promessa.

terça-feira, julho 10, 2007

Lições Aprendidas do Rocky I ao Rocky III

Le crème de mer é um creme de merda. Efectivamente. Como compreendo o teu desespero com a trivialidade. Tudo o que nos circunda é muito mediano. Quero ver-te na roulotte daqui a cinco minutos. Vais sentir como batem os outros conceitos de futilidade que te vou mostrar. Vais aprender a desfrutar da minha futilidade transcendental. As arritmias cardíacas fazem-me cócegas e eu não consigo parar de me rir. Nunca me soube tão bem morrer tão devagar. Sinto um ardor carnal que extravasa o meu peito. A minha gasolina é tudo o que me faça mal. O meu motor é movido pela força da destruição do meu próprio equilíbrio biológico.

Quilos de ar.

Litros de pedra.

Metros de álcool.

Palavras a granel.

Números anónimos.

Sim, és uma merda como o creme que espalhas na tua tromba. Mas podes crescer, ser ainda maior, divergir para cima e para a frente, ser uma merda exponencialmente e orgulhosamente rompante. Uma grande merda e uma merda da grande. Mas, ainda assim, com um encanto sublime, fantástico, heróico. Sim, o teu espelho está deformado pela quantidade de metilenodioximetanfetamina que tomaste. Ou marijuana. Ou haxixe. Ou cocaína. Ou heroína. Ou super cola 3. Ou tubos de escape debitando fumos de gasóleo queimado. Espetem-me tudo, vais ver como as tuas células não se vão importar de desaparecer pela grande causa que é a tua causa. Tudo posto cá para dentro ao mesmo tempo, como se dum self-service diabólico aqui à mão de semear se tratasse. A tempestade da cólica e da ressaca combate-se pela fuga em frente, rumo ao precipício da devassa. Este meu corpo delgado esvai-se pelos intestinos fétidos da insuportável realidade. Não era suposto isto ser uma festa?

Eu sou o joker e este é o meu baralho de seguidores. Estamos todos fartos de autoridades ocas e de procedimentos mecânicos, queremos rejeitar as lições do Tonecas e abraçar o caos delirante do inconsciente efervescente no nosso crânio. Tu não és mais que um conjunto de pele e ossos, então homenageemos essa divindade superficial que tão bem me cai no goto. Queres ser como eu mas não sabes como nem quando começar. Eu não te ensino nada. Tens é que perder todo esse conforto burguês e toda a noção das coisas tal como tu conheceste desde o berço. Vais perder tudo para ganhar apenas conforto moral. Estás pronta para hipotecares o teu futuro às mãos da juventude insensata?

É como levar um murro no estômago e ficar a sorrir, esperando pela lâmina que vai esfacelar o teu pescoço sem dares bem por isso. A tua cabeça é mais bonita que a da Maria Antonieta no cadafalso, ninguém te disse isso? Oferece-me a tua cabeça, eu pago-te mais esta volta no carrossel mágico a que pretendes aderir. Onde todos os bonecos são tão bonitos quanto ilusórios. Flutua e plana eternamente no etéreo irreal. Serei o mais simpático dos teus hipotéticos executores. Serei o teu anjo do infortúnio. Dentro de cinco minutos. Apenas ida, nenhum regresso possível ou desejável. Viva o espectáculo da decadência.

segunda-feira, julho 09, 2007

Então, Doutor?

Serafim aguardava no consultório pelo médico. Ao fim de longos minutos de espera imóvel e silenciosa na cadeira, o Dr. Xilofone finalmente aparece, mastigando um cachorro quente e chupando uma gasosa.
- Como está, Dr.?
- Eu vou bem, obrigado. O senhor é que não parece bem…
- Como é que sabe, Dr.?
- Em primeiro lugar, porque está num consultório médico. Em segundo lugar, porque está com um ar extremamente abatido…
- Pois… estou há muito tempo à espera, devo ter ficado aborrecido… a enfermeira disse-me para entrar, que o Dr. aparecia logo…
- Ah, bolas, ela poderia ter-lhe dito que tenho uma PlayStation mesmo aqui atrás da cortina, você poderia ter-se distraído… – e afastando a cortina, exibe-lhe a consola, devidamente acoplada a um televisor – Olhe, o último paciente ficou pior da úlcera, teve de ir rapidamente para as urgências do hospital e nem acabou o jogo. E ia para o penúltimo nível, veja lá que já tinha passado o mais difícil… Diga-me uma coisa: você é muito religioso?
- Hã… não, nem por isso…
- Você, como dizer… gosta de mulheres?
- Sim, sim… mas porquê?
- É que aqui atrás deste biombo… venha cá – o Dr. Xilofone conduz Serafim para observar o que estava atrás do referido biombo – Aqui atrás tenho uns filmes para maiores de 18… tenho aqui filmes para quase todos os gostos, menos para homossexuais, compreende… Tudo para o paciente não se entediar à minha espera… Eu próprio aprovei os filmes que aqui estão…
- Ah, está bem, Dr….,
- Olhe aqui: “Cuzinhos Independentes”, um filme português, vagamente baseado na licenciatura do Sócrates. Novidade exclusiva do meu consultório. O Sá Leão tem um “cameo” enquanto traficante de diamantes e entram a Xana e a Luísa, velhas conhecidas destas andanças. As pessoas que já viram gostaram, até houve um senhor na semana passada que recuperou logo a sensibilidade nervosa ao ver este filme, nem foi preciso submetê-lo a mais exames… Embora, devo alertar, o filme contenha cenas pesadas e possua um enredo demasiado confuso em comparação com a globalidade dos filmes do género…
- Estou a ver…
- E depois, temos os clássicos, que toda a gente gosta. Filmes nórdicos dos anos 80, como “Ali Babá e as 40 Lambonas”, um manual didáctico de sexo em grupo, ideais para pacientes com problemas psicológicos de relacionamento. Também muito visionado tem sido o “Noddy vai ao Bordel”, especialmente pelas camadas mais jovens. Houve um miúdo que até inventava problemas de acne e de herpes labial, só para vir aqui e acabar de ver o filme todo… devo dizer que a Macaca Marta não é mesmo uma macaca, é apenas uma actriz congolesa com a depilação por fazer. Amigo, você nem sabe o que perdeu… esta enfermeira é da velha escola, não percebe nada de como agradar ao paciente e por isso mandou-lhe ficar quieto à espera…
- Pois é, pois é…
- Você está com sede, depois desta espera toda?
- Bebia uma aguinha, sim…
- Ó homem, você tem problemas de fígado?
- Que eu saiba não, Dr…. mas o médico é o senhor…
- Abra a boca.
Serafim abre a boca, o médico espeta-lhe um pau de gelado na garganta e não vê nada. Xilofone tranquiliza Serafim.
- Não, não tem. Você esqueça a água; quer um licor?
- Como?
- Um licor. Aqui debaixo da secretária tenho um mini-bar… para ajudar a estabelecer uma sã relação de confiança médico-paciente – Xilofone abre as portas e exibe um manancial de bebidas alcoólicas – Que prefere? Licor Beirão? Tia Maria? Ou prefere um whisky escocês?
- Hãã… Pode ser Licor Beirão. Não sei se devo beber, estou a tomar antibióticos…
- Quem lhe disse isso? Certamente que não era um médico a sério como eu... Enfermeira – grita o Dr. Xilofone – Traga gelo, por favor. Olhe – diz Xilofone para Serafim – eu vou beber uma Aguardente Velha, a seguir ao pequeno-almoço calha mesmo bem, para enfrentarmos o dia com a genica necessária.
- Muito obrigado, Dr..
- Não tem que agradecer, você está a pagar tudo isto com as suas taxas moderadoras. Se calhar, uns amendoins salgadinhos vinham a calhar, não?
- Não sei, Dr., tenho problemas com a tensão arterial, não sei se esses aperitivos serão bons para mim…
- Ah, não se preocupe. Quantos vê? – Xilofone estica o dedo indicador e médio da sua mão direita a Serafim.
- Dois dedos.
- Você está óptimo! Para se confortar, coma uma laranja todos os dias antes de ir para a cama, logo a seguir a um leitinho morno: vai ver que não terá mais problemas com a tensão arterial. Vamos aos aperitivos?
- Sim, pronto, está bem.
A enfermeira, solícita, cumpre o pedido com brevidade. Serafim prova, a medo, o seu licor.
- Importa-se que eu acenda o meu charuto? – requisita Xilofone.
- Bem… eu tenho complicações asmáticas, costumo evitar ambientes com fumo…
- Não percebeu. O consultório é MEU, a minha pergunta era apenas retórica – dito isto, Xilofone acende o charuto. Depois de mandar uns quantos amendoins pela goela abaixo e de sorver um pouco de aguardente, Xilofone desabafa:
- O que eu gosto mesmo é de viajar, sabe? Você já foi ao leste europeu?
- Não. Eu tenho aviofobia e aeronausofobia, não viajo muito… Estive em Vigo no Verão passado…
- A sério? Bolas, que chatice, você nem sabe o que perde. São países que estão agora a experimentar o capitalismo, depois de anos de clausura. Lá cheira-se a liberdade. O nível de vida é muito aceitável. E as mulheres são lindas. Mesmo muito boas… apetece-me comer uns camarões fritos com um molhinho picante por cima… não lhe apetece?
- Adorava, Dr., mas o meu colesterol não permite…
- Qual quê! – Xilofone levanta-se e encosta o estetoscópio ao peito de Serafim – Respire fundo… isso… diga 33…
- 33.
- Está óptimo! Enfermeira, prepare aí uns camarões fritos. Enquanto isso, quer tomar um Valium, ou outro ansiolítico?
- Obrigado, Dr., mas prefiro esperar pelos camarões.
- Nem sabe o que perde. Mas faz bem, este frasco está a acabar e assim sobra mais para mim. Isto do stress no consultório dá cabo de mim, não passo sem estes comprimidos… – Xilofone toma o comprimido e dissolve-o no estômago com mais uma pitada de aguardente – Tenho de falsificar mais receitas para mim próprio, senão nem vale a pena voltar cá esta semana. Da última vez que estive aqui a atender pacientes sem Valium, morreram para aí uns quatro ou cinco. Um deles ficou mesmo irreconhecível – o gajo não parava quieto na marquesa e os gritos dele enervavam-me: parecia que os zurros dele me entravam na cabeça como um berbequim… Removi-lhe a boca com o bisturi, entre outras maldades… fiquei uns quantos meses sem poder exercer medicina, mas aquilo serviu-me de lição: nunca mais dou consultas sem uma dose de Valium. E também fiquei impedido de pegar em bisturis.
- Dr., não devíamos estar a falar daquilo que me trouxe aqui?...
- Hmmm… devíamos, mas hoje não me apetece trabalhar. Quer dizer, "hoje" é um eufemismo; na realidade, nunca me apetece atender doentes raquíticos e asquerosos como você. Ainda se fossem só gajas boas… Devia ter-me especializado em ginecologia feminina…. Hoje estava a pensar em passar a tarde a fazer downloads de filmes que ainda não estrearam pela Internet … se você quiser, traga uma pen e eu passo-lhe os filmes… você não paga nada, a conta é paga pelo Ministério. Tudo pela proximidade entre médico e paciente.
- Por favor, Dr…. Passei três madrugadas em claro para marcar esta consulta, posso ter um problema grave e agora que tenho esta oportunidade queria resolver a minha vida, estes últimos dias têm sido uma inquietação…
- Deixe lá estar isso, homem. Não se preocupe. Aproveite aquilo que lhe ofereço… A vida são dois dias e um já passou! Aproveite! BUUUURP!!!! – arrota Xilofone, sonoramente. Serafim parece entristecido e resignado. A enfermeira chega com os camarões, para entusiasmo de Xilofone, que regozija:
- Cá estão eles! Hmm, que cheirinho! Aqui para nós – diz Xilofone, baixinho, para Serafim – esta enfermeira dá-se melhor com os temperos do que com os paliativos… Descobri-a na Tasca do Alexandre, ali junto ao Cais Sodré… não me tem desiludido!
- Dr. Xilofone – intervém a enfermeira – Estão cerca de meia dúzia de pacientes lá fora a desesperar pela consulta… um deles está a sangrar bastante dos olhos e outro reclama que quer desforrar-se do Dr. no jogo da PlayStation que iniciou na consulta passada…
- Eles que esperem! Diga-lhes que estou com o meu grande amigo… o meu grande amigo… – Xilofone vira-se para Serafim e pergunta – Qual é o seu nome, mesmo?
- Serafim.
- … diga-lhes que estou com o meu grande amigo Serafim e que só estou despachado aí por volta das 6 da tarde. No mínimo. E às 7 saio, impreterivelmente.
- Mas, Dr. – argumenta a enfermeira – Ainda só são 10 da manhã…Acho que devia ser mais célere no atendimento… alguns pacientes podem piorar…
- Está bem, está bem! – zanga-se Xilofone – Vamos lá despachar isto, então! Ando eu preocupado em aproximar-me dos pacientes e depois querem ser todos despachados sem atenção nenhuma! Diga-me lá então o que o traz aqui, ó Serafim…
- Dr., sinto-me mal ultimamente, afligem-me as tonturas quando ando, não ando a ver bem ao perto e ao longe, dão-me ataques de cólicas pela noite, doem-me os rins e tenho uns inchaços estranhos nas costas… Trago comigo os últimos exames que realizei, mais umas quantas radiografias…
- Hmmm… Tem cancro do cólon – revela Xilofone, de uma assentada, sem tocar em nenhum exame nem radiografia.
- Como?
- Cancro do cólon. O cólon é uma terminologia médica. Traduzindo por miúdos, você tem uma doença incurável no cimo do cu. Dou-lhe 3 meses de vida. Eu não lhe disse para aproveitar enquanto é tempo? Agora é tarde.
- Mas, Dr…. como é possível? Como? – desespera Serafim, agarrado à cabeça – Tem a certeza?
- Não.
- Então como é pode dar-me um diagnóstico tão pessimista?...
- Ouça lá, você é médico?
- Não…
- Então não conteste! O que é que você queria, que eu lhe salvasse? Você chegou a essa situação por desmazelo, só pode!
- Mas, Dr…. 3 meses de vida…
- Pronto. Fevereiro tem menos dias… 4 meses. Mas não mais do que isso. Não pense mais em projectos de longo prazo, não vale a pena. O máximo que lhe posso fazer é receitar-lhe um xarope para a tosse.
- Para quê, Dr.?
- É um xarope que sabe extraordinariamente bem. É dum laboratório dum grande amigo meu das noitadas e que me paga bem. Além do mais, ninguém quer morrer a tossir, pois não?
- De facto… E agora, Dr.? O que vai ser de mim?...
- Agora saia e dê lugar ao próximo paciente, como a enfermeira quer. Veja lá bem, não quer comer um camarãozinho antes de sair? O próximo paciente está a sangrar compulsivamente dos olhos e não deve comer nada, é uma pena que se estraguem e que se mandem para o lixo…
- Pronto… eu como o camarão…
- Sábia decisão, Serafim, sábia decisão. Assim faz-me perder mais tempo e eu atendo menos pacientes. É que eu estou mesmo, mesmo farto de trabalhar. E você não tem muito a fazer, de qualquer forma. Vou-lhe contar a minha viagem às Caraíbas. Quer que eu coloque uma musiquinha para animar o ambiente? Um ritmo latino, pode ser?