quinta-feira, dezembro 28, 2006

Pobre Bock

A vida é isto mesmo, Fernando Oliveira.
Um golo mais, um gole a mais.
Fartura e esplendor, espuma e gás. Um ponta-de-lança com propensão para trocadilhos fáceis.
Fernando Oliveira nasceu no Porto, nos idos de 1975. Formou-se como jogador no clube local. Aí, presume-se, ganhou aptidões únicas. Uma relação orgásmica com o golo. Um epíteto que marca, de forma indelével, todo o futebol nortenho. Fernando é Bock, recebeu de braços e goelas abertas a sua notável alcunha. Bock é, sem complacências, um super goleador esquecido, poeta maldito do golo, homónimo de cerveja famosa, tudo num só corpo sedento de sentir as redes a balouçar.
Podia ser ficção. Talvez um Robin Hood das divisões inferiores. Quiçá um modesto Hercule Poirot a detectar as pistas do golo. Ou um rebelde incompreendido, o James Dean de Vizela. Mas não. Bock e a sua desdita são cruelmente reais, como mais um despiste no IP4.
A Bock só lhe faltou ser, realmente, super. Domingo após Domingo, Bock cirandou pelas hospitaleiras localidades entre Douro e Minho, no seu afã habitual por entre defesas incautos e guarda-redes desamparados. Labutou, porfiou, alcançou. Bock não parou. Bock facturou e facturou, encheu de alegria os adeptos locais. Glória. Esplendor. O terror dos adversários, sempre com um sorriso humilde a transbordar-lhe da boca.
Chuteiras afinadas e remates certeiros, a vida de Bock confunde-se com o golo, para ele vive, dele sobrevive. Bock libertou Freamunde dos jugos neo-imperialistas de Paços de Ferreira, vizinhos aburguesados da Primeira Liga, deu-lhes uma razão para acreditar que era possível ser maior e melhor.
Uma eterna promessa que aguardou pela concretização… A história de Bock é tão linda quanto trágica, porquanto Bock obteve um sucesso local esmagador que nunca extravasou os muros imaginários da II Divisão, a despeito de tanto golo, tanta alegria proporcionada, tanto abraço de companheiro e aficionado.
Bock podia ser mais uma atracção da tasca, mais um jogador de sueca ou dominó. Mas não; não se resignou e forneceu-nos, a todos nós, o verdadeiro sentido da vida: nunca desistir, sonhar até morrer. Em Freamunde ou em Castelo de Vide, resiste e esquece-te que te chamas Hilário Silva, a vida brilhará àquele que estende a esperança e a alegria aos que lhe seguem, figuras sombrias do fado que é esta vida de anonimato.
Este predador perdido no obscurantismo, vampiro da grande área, marcou que se fartou. Sempre mais ou menos ignorado pelos menos informados, mais interessados em produtos instantâneos ao olhar, nos grandes e caros artigos de montra, tipo Postigas, Nunos Gomes e Pauletas. Bock lá estava, atrás, furando marcações, atento à linha do fora-de-jogo, remetido para as prateleiras mais recônditas. Um modesto culto da personalidade, bem à sua imagem, desenvolveu-se à sua volta, reclamando-lhe o estatuto.
Passou por Maia, Amarante e Lixa, dali abalou como folha caduca voando ao vento, já com o olhar em Freamunde, onde explodiria, versejando ao ritmo do último toque em direcção às malhas. Pensavam os adeptos, este tem mesmo que sair, é muito bom, com demasiado gás para conseguirmos retê-lo por aqui, nos confins do semi-profissionalismo futebolês lusitano. Um Bock topo de gama. Saiu para o que muitos consideravam uma escalada progressiva rumo ao topo do mundo. O que se seguiu foi Trofense, Marco, Ermesinde, Marco e Leixões. A arrancada tardava. Bock lá ia amansando a bola, indicando-lhe com meiguice “o golo é já aqui”. Mas o sucesso, o reconhecimento, onde ficam?
A massa associativa de Freamunde resgatou de novo o seu filho adoptivo pródigo. Relançou de novo todo o seu instinto goleador. Hoje, a contabilidade dos golos já ultrapassa os cem, foi duas vezes melhor goleador dos campeonatos nacionais, médias inclusivamente superiores a um golo por jogo. E, já a perspectivar o ocaso desta incompreensivelmente desconhecida carreira, regressou ao segundo escalão português. Podia ser desta. Tinha voltado a subir o degrau, as ambições eram legítimas. Debalde. As nuvens não tardaram.
Os últimos ecos deram conta de um desaguisado entre o treinador dessa equipa, o Vizela, por sinal carente de golos, e Bock. Bock, pura e simplesmente… não jogava! Não tinha oportunidade de explanar todo o seu manancial de remates e cabeceamentos fatais, não podia fazer o que mais gostava. Mais uma vez, todas as portas ilustres se fecharam, desprezando o seu currículo construído com suor e golos. Não teve alternativa: empacotou a trouxa e regressou, outra vez, aonde lhe conseguiam dar crédito: Freamunde. A propósito da despedida, o amargurado Bock confidenciou:
“No dia da rescisão o técnico fugiu de mim, evitou falar comigo e não esteve na reunião que tive com a direcção. Tive de pedir ao presidente para me permitir ir ao balneário despedir dos colegas.”
Em Freamunde agradeceram. Com muita comiseração, assistem ao seu actual símbolo de volta aos únicos balneários onde sempre se sentiu acarinhado, mesmo sabendo que tal só é possível por manifesta desatenção dos grandes senhores do futebol. Ninguém quer saber de Bock. Ninguém quer olhar para os golos que Bock marca. Ninguém quer um avançado português competente nas suas fileiras. Ninguém quer mais um nome esquisito para ombrear com Sokotas, Kikins ou Buenos.
Bock resignou-se, enfim. 31 anos já não dão azo a grandes utopias. Está destinado a ser o profeta dos mais fracos, um anti-herói forçado pelas circunstâncias mais ou menos funestas que se atravessam no percurso da gente esforçada, mas sem o favorecimento dos astros. Uma história que acabou estranhamente como tantas outras, depois de tanto fulgor evidenciado.
Bock desabafou: “Encontro-me no auge das minhas capacidades como jogador e goleador e só lamento não conseguir concretizar o sonho de jogar na SuperLiga. Cada um nasce para o que nasce, e se calhar, por muito que dê nas vistas, não sairei deste escalão. Mas se tiver que ser assim, que seja sempre ao serviço do Freamunde”.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Dedos Pegajosos

Quando chegava ao fim de mais um dia, Eurico limpava os ouvidos. Não utilizava cotonete, servia-se do próprio mindinho. Esticava o dedinho e lá partia ele às entranhas auriculares, removendo todo o tipo de aglomerações resinosas que se acumulavam na orelhinha.
Pensava ele, filosófico, para com o tecto que fitava enquanto exercitava o seu mindinho incrustado de cera amarelada – tudo isto tem explicação, todo este nojo resinoso que extraio dos meus ouvidos aparece em quantidade proporcional às conversas que ouvi hoje. Eurico retirava cera dos ouvidos todos os dias, há largos meses. Qual prisioneiro, marcava todos os dias. Os dias particularmente porcos eram aqueles quando se estava numa aula, numa palestra, numa reunião, fosse ela de condóminos ou não. E depois os dias limpinhos, especialmente aos fins-de-semana.
- Ó Eurico, o que fizeste aos dedos? Estão pegajosos!
Eurico desculpava-se por este hábito questionável do ponto de vista higiénico. Leu numa revista que podia furar os tímpanos com aquela brincadeira. Ponderava. Valeria a pena sacrificar este medidor de interesse factual de conversas humano que é o ajuntamento de cera nos meus ouvidos? Em prol da saúde? Bem, mas se eu conseguir identificar correctamente quais as conversas que devo evitar, após análise da larga amostragem que já disponho, a minha saúde será óptima! Ouço aquilo que quero e estou certo que irei viver até aos 100!
- Está bem, Eurico, eu acredito. Para a próxima diz-me que eu guardo os teus rebuçados. Não precisas de andar sempre com eles nos bolsos, depois derretem.
Eurico acreditava em si. No seu método infalível. Em vender livros, ser guru de uma nova legião. Na ponta do dedo ao fim do mundo iria, dissecando o conteúdo semântico de cada conversa pelo meio. Do café ao cinema, do grupo de amigos ao emprego, Eurico planeou criar uma base de dados de lugares e gente, sublinhando pontos de interesse e de infâmia.
- Eurico, o chefe queixou-se de si. Diz que está sujo. Por causa de si, imagine.
Quiseram tramar os instintos de Eurico. Não reconheceram potencial comercial na tese de despiste de conversas desinteressantes pela limpeza de cariz otorrinológico de Eurico. Insistiu. Persistiu demasiado na sua tese, até a um ponto em que chegou ao pé do chefe e disse que a última reunião tinha-lhe deixado com a pele gasta de tanto esfregar os ouvidos. A gota de água que se seguiu não apanhou Eurico a nadar desprevenido no copo. Estava feliz por ter conseguido manter uma posição firme, apesar de ter perdido. Animou-se. Moral, moral, eu não ligo à moral puritana e vou continuar a tirar cera dos meus coratinhos, se tal for necessário para o meu bem-estar.
- Eurico… podes descolar o teu dedo do meu cabelo?
Eurico sentia a pressão da sociedade sobre si, cada vez mais gente a criar-lhe cada vez mais cera, caíram-lhe bolas de cera dos ouvidos enquanto andava na rua, tinha-se tornado um ser ultrajante de tanta abjecção.
- Estás bem, filho? Eurico… Fala comigo.
Perdera o controlo, todo o corpo era um bloco de cera viscosa em erupção, com epicentro nos seus ouvidos. Uma lava de cera brotou em Eurico, explodiu com toda a cera dentro de si. Ironicamente, quando Eurico pensava ter a solução, tinha afinal apenas garantido as razões para a sua morte. Quando descobriu a doença já não foi a tempo de ir buscar o remédio. Não tinha sido capaz de fugir às conversas desinteressantes. Estabelecera patamares pessoais de interesse que não conseguia acompanhar. Em todo o lado eram conversas parvas e chatas. Não existiria alguém que falasse consistentemente aquilo que Eurico queria ouvir? Isto Eurico não conseguiu prever.
Eurico foi devolvido à terra e com ele toda a cera de que se iriam alimentar os bichinhos. Deixou muitas sementes connosco, contudo. Quem não conhece alguém, pelo menos uma pessoa, que não passe o dedinho pelo ouvidito? Já alguém pensou verdadeiramente no significado que essas pessoas dão ao acto? Sabem que podem estar a pisar terrenos proibidos se pensarem mesmo a sério como o Eurico? A cera levar-nos-á à rendição. Queremos ter orgulho na nossa fé, compreensão perfeita das falas humanas nos nossos ouvidos.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Escusas de Tocar Outra Vez, Sam

Deleitem-se os subúrbios. Olá Brandoa, como vais Charneca?, Miratejo, tudo fixe?, props para o Bairro de Angola. O abraço mais sentido vai para Chelas, berço de personalidades ímpares na cena nacional. Creio que o próximo primeiro-ministro será de Chelas; a zona do abecedário em concreto, J, K ou L, de que ele ou ela provirá é que ainda está por decidir.
Porque se devem deleitar os subúrbios, e mais concretamente o betão colorido com graffittis de Chelas? Não, não é por causa do futuro primeiro-ministro, mas por causa de Samuel Mira e do seu novo álbum, apropriadamente acompanhado por um videoclip ultra sugestivo.
Sam, como é conhecido, estreou-se no mundo do hip-hop/ rap/ vontade incontrolável de rimar com gestos desengonçados (riscar o que não interessa; daqui em diante, designarei esta corrente artística como “YO” – para simplificar) muito cedo, daí o seu apodo “The Kid”. Tal e qual como o cowboy que lhe deve ter servido de inspiração, Sam foi intrépido e marcante logo no debute, com isso granjeando ouvidos e ouvidos que lhe deram um status privilegiado no mundo do “YO”.
Entre skates, graffittis e mais um leitor MP3 roubado numa paragem de autocarro, Sam debita versos a uma velocidade superior à da quebra dos vidros das janelas de um prédio de habitação social. É mais incisivo que uma ponta-e-mola, mais intimidador por si próprio do que quando acompanhado pela sua pandilha de aspirantes a delinquentes e mais observador que o agente policial que teima em aborrecê-lo. Ele é tão profícuo a nível lexical que os seus álbuns têm nomes que não cabem numa só palavra, tendo de as decompor em duas: “Entre(tanto)”, “Sobre(tudo)” e “Pratica(mente)”. Fabuloso. Genialidade criativa superlativa. Aposto que o próximo álbum será “Guarda(chuva)”, para aí.
Este Sam já não é a next big thing do “YO” português; ele já é a big thing. Vejam o videoclip dele. Não sei o título da música (?), nem do que ele fala (percebem-se algumas palavras soltas no meio do comboio de sons vocais que sai da boquinha afiada dele), mas suspeito que está a falar mal dos artistas portugueses que cantam em inglês e a defender os que cantam em português. Para tal, rodeou-se da sua trupe de vizinhos de Chelas, da qual nunca um bom “YO” se separa e sem a qual parece perder a faculdade de respirar, e foi assaltar uma emissora de rádio, expulsando tudo e todos do ar e transmitindo a sua mensagem de uma forma, no mínimo, um pouco agressiva. Não se coibiu de passar pelo estacionamento onde 4 personagens faziam o mesmo que eu aqui, dizer mal do mestre Sam, aparentemente à espera que o mesmo Sam fosse ter com eles e os educasse num tom ríspido – momento hilariante que recomendo. Também obteve a solidariedade, paga ou não, devidamente contextualizada ou não (quero acreditar que não, mas nunca fiando…), de Pacman, Rui Veloso, Zé Pedro e do jornalista Pedro Mourinho para a elaboração do videoclip e, eventualmente, para a tomada da estação emissora. Ecos distantes do Verão Quente, quiçá, com Pacman a dizer, num registo claramente responsável e didacta, que esse é o caminho a seguir, invadir um espaço público para impor os gostos pessoais de Sam, The Master (Formerly Known As The Kid).
Agora, permitam-me caluniar um pouco mais o Sam, já que actuo sob pseudónimo e ele já confessou não ler muito, o que me faz sentir deveras seguro deste furacão das palavras que é Sam.
O “YO” português é capaz de ser tão bom ou melhor que o “YO” americano ou francês, que nos chega ao conhecimento através desse excelente, mas levemente repetitivo, canal da grelha da TV Cabo que é o MCM. A principal diferença será que os “YO's” portugueses não conseguem arranjar carros suficientemente espalhafatosos nem mulheres deslumbrantes com grandes mamas e pequenas saias para se fazerem acompanhar. Cá não há Cadillacs abertos em Hollywood, com um clone ainda mais azeitado que a própria Jennifer Lopez dum lado e o pittbull do outro; há Citröens Saxo “tuning-ficados" a passar no Martim Moniz e as irmãs gordas do vizinho a mascar pastilha enquanto brincam com o seu novo piercing no lábio – e se conseguirem arranjar uma “dama” suficientemente provocadora, então ela tornar-se-á o objecto central do videoclip. O pittbull lá se consegue arranjar, pelo menos. Mas apesar do “YO” português estar ao nível dos demais, isso não quer dizer que o “YO” seja bom. Também não será necessariamente mau (embora para o meu gosto seja, e o meu gosto vale o que vale); é o espelho da cultura que temos hoje em dia.
E a cultura que temos hoje em dia está pelas horas da morte. Nem me refiro ao conceito “cultura” como uma forma de expressão humana; falo mesmo do estado das mentalidades contemporâneas. Particularmente num país onde reina a indiferença, o laxismo e o compadrio. Claro que Sam, e os seus amigos “YO”, se julgam virtuosos no mundo onde estão. Só que Sam e os “YO” estão apenas a aproveitar-se da degradação vigente, onde uma estação televisiva que tem como nome “Music Television” só passa, a níveis limitados, o que tem potencial comercial, por entre “reality shows” verdadeiramente execráveis importados da terra das coisas boas, os EUA, e onde o excesso de mau gosto quebra recordes emissão após emissão.
No que concerne à música em particular, é perfeitamente hipócrita a mensagem de Sam. É claro que ele defende-se com argumentos válidos, do género “não percebes nada”, ameaçando de permeio com uma carga de porrada (sempre com os seus compinchas a apoiar), Como bem notado pelas 4 personagens no estacionamento, se Sam fosse coerente, chamar-se-ia “Sam, o Cachopo”. Mas não, foi atrás dos dogmas “YO” americanos. Se Sam fosse contra a corrente, expressar-se-ia numa forma não necessariamente na moda como é o “YO” (embora Sam, que gosta de se vitimizar, considere que o “YO” ainda é “alternativo” – será que a televisão e a rádio já chegaram a Chelas, afinal?). Se Sam fosse mesmo bom, escusava de acusar outros companheiros de vida (admitindo que ele é mesmo músico). Se Sam não fosse invejoso, não se preocuparia com o sucesso dos Moonspell.
Sam diz que as grandes influências para ele são Carlos do Carmo e Ary dos Santos. Nota-se. Até diz que ouve Marco Paulo. Isto é, só portugueses. Talvez mesmo Paco Bandeira, o Demis Roussos alentejano! Este rapaz é mesmo sectário, nem os brasileiros, que também se expressam em português, lhe interessam: apenas e só produto luso. Certamente que mesmo Linda de Suza deve ter sido samplada numa ou noutra ocasião. A questão é que o “YO”, musicalmente, é mesmo isso: apropriação do trabalho dos outros. Se noutras áreas musicais ainda podemos falar em influências, em produtos demasiadamente parecidos com outros já feitos, no “YO” só falamos em influências – pois o “YO” nunca cria nada de novo, limita-se a parasitar-se em algo já feito e adicionar umas palavras que rimam e que parecem ser muito urbanamente poéticas e sagazes. Chamem-lhe o que quiserem, mas até o Emanuel é mais criativo a nível musical que o “YO” e qualquer escritor, tipo Margarida Rebelo Pinto, deve ter mais conteúdo nos seus trabalhos que este “poeta da nova geração” que é Sam, que se limita a rimar sem restrições auxiliado por um dicionário. A própria glorificação da malta “YO” como o derradeiro bastião de divulgação da língua portuguesa é algo que me incomoda e que me dá o quadro real do estado da arte da língua portuguesa: pavoroso. É a arte entregue aos bichos, literalmente.
Cá para mim, Sam só se exprime em português porque não consegue fazê-lo em inglês. Não consegue construir frases ou versos noutra língua que não a sua, e mesmo na sua língua, que é a minha, não o consigo entender. Falta-lhe conhecimento. Falta-lhe… cultura. Ele bem que queria expressar-se em inglês como o David Fonseca, os Blind Zero ou os Moonspell, ou mesmo como os Mind Da Gap já fizeram… mas não consegue e enerva-se. José Cid queixava-se que os portugueses não passam na rádio. Agora até passam, mas isto não quer dizer que cantem em português – cantam naquilo que lhes apetece e naquilo que lhes soa melhor. Sam, qual novo Cid, reclama igual atenção. Orgulhos patrióticos à parte, até a demanda de Sam parece desajustada nesta altura. Não gostas de ouvir portugueses a cantar inglês? Muda de estação – eu já nem ouço rádio, por exemplo. Muda de país – há rádios para emigrantes portugueses que só passam o que Sam gosta. Faz-me esse favor.
Deviam os visados reagir perante a ameaça de Sam? Não, senão desceriam ao nível deste rapaz conflituoso. Deveriam eles parar tudo e ignorar o que fizeram só para ouvir Sam e perceber que no português é que está o caminho? Isso seria tão absurdo como ver os Moonspell a cantar fado. E, já agora ó Sam, porque não cantas fado, esse sim, produto genuinamente português? Porque é que fazes de macaquinho de imitação dos “YO” da terra do Tio Sam? Só virtudes, este(s) Sam(s).
O rock morreu? É capaz. Levem-me ao seu funeral e deixem-me ficar por lá. Permitam aos subúrbios rejubilar com o mediatismo do “YO” do seu Sam e protejam os vossos haveres. É um conselho pacífico que Sam parece não estar disposto a dar.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

O Café e o "Café"

De entre todos os fenómenos com implicações sociológicas contemporâneas, o café será o mais enraizado. É um pretexto para inúmeros encontros, sejam eles de cariz profissional ou pessoal. É praticamente impossível discutir algo hoje em dia sem ser à mesa dum “café”, ou melhor, tasca, bar ou restaurante que foi apropriadamente renomeado como homónimo do seu produto com mais saída (e dos que mais margem comercial retribui aos donos dos estabelecimentos), como se o produto mais importante açambarcasse todo o espaço para si, desprezando outros pares como a cerveja, o tabaco, as moelas ou os pipis, só para citar alguns itens da parafernália que usualmente se encontra disponível.
- Eh pá, não estou certo que a contenção de custos passe pela reestruturação da área comercial. Não queres tomar um café para falarmos disso? – diz o director-adjunto para outro director-adjunto.
- Há quanto tempo não nos víamos! Vamos tomar um café para colocar a conversa em dia? – diz o ex-emigrante para o seu conterrâneo, ao encontrá-lo a passear junto ao adro da igreja.
Ou então no bilhetinho:
“Ronalda: gostava de te conhecer melhor. Queres ir tomar um café aqui ao café da esquina? PS: não fui eu que te apalpei no intervalo, foi o Chico Ranhoso”.
O fascínio pelo café é transversal a todas as idades, credos e estatutos sociais. Vício moralmente aceite, desperta mentes e espevita espíritos. Ganhou claramente a batalha do politicamente correcto a produtos de balcão como o tabaco e a cerveja, embora manche os dentes, contribua para hálitos imundos e esteja, consoante o gosto mais ou menos aventureiro, impregnado de cafeína. Mas o café é o café e a cafeína uma droga tida como menor. Nem sequer interessa que o seu preço generalizado tenha passado de 50 escudos para 50 cêntimos de euro em 4 anos, uma subida de 100% que nem o tabaco, que sofre de uma elevada carga tributária, conseguiu igualar – pagamos o que for preciso para sentir aquele líquido fervente a escorrer-nos pela garganta, por muito parcos que sejam aqueles breves mililitros de café. O café é um bem precioso, indispensável, é mais do que um simples prazer, não restem dúvidas.
- Então, ó Clotilde, não se trabalha? – indaga um chefe rezingão.
- Ó chefe, deixe-me tomar o cafezinho a seguir ao almoço, senão fico com tremeliques! – desculpa-se,
- Ah, então está bem. Eu aproveito para ir consigo.
A máquina de café. Altar sagrado de confraternização laboral. Por vezes, o único lugar onde se conhecem mesmo os colegas de trabalho é junto da máquina de café.
O bar que serve bicas e cimbalinos, italianas e pingados, “o café”, como é conhecido, é a maior atracção social do momento. Pululam como coelhos na planície os estabelecimentos do género. Cada subúrbio que se preze terá 10 ou 15 “cafés” na mesma rua e mesmo no interior escondido haverá um “café” central, quando não 2 ou 3. Por cada boutique de pronto-a-vestir que encerre, abrir-se-á uma loja de chineses. Ou um “café”. Toda a gente conhece, pelo menos, um gerente de “café”, mesmo que nem se beba café e só se fique pela imperial com tremoços e o cigarrinho enrolado da praxe. Já todos devemos conhecer o ritual da extracção de um café, os manípulos que há que manipular, as rodas que há que rodar, nem que seja só pela repetida observação. Todos nós nos encontramos, com menor ou maior frequência, num “café”. É lá que nos reunimos com familiares, para que não sujem a nossa casa. É lá que marcamos engate com uma mulher, convencidos do anonimato inerente a um simples casal numa mesa a beber café. É lá que nos encontramos com os amigos, porque o café que sacamos em casa não presta. Como tudo é falacioso: geralmente os estabelecimentos estão sujos, sabe-se que a gente que bebe café tem como ocupação principal espiar a mesa da frente ou do lado e o café sabe mal em todo o lado, por muito que nos tentem convencer do contrário e por muitos produtos que se adicionem.
- E suave, negro, espesso… sente-se aquela ligeira torrefacção característica dos cafés das zonas tropicais… - diz a menina do anúncio. É mentira. O café é água a ferver e suja por bagos moídos de uma planta remota e ainda por cima tem contornos aditivos. Porque não uma mania semelhante pelo chá, que também é água quente aromatizada por ervas exóticas?
- Ah, não, o chá é para meninas (Roberto, camionista).
- O chá não tem a intensidade que os grãos de cafés parcialmente moídos através de métodos tradicionais da África Central (Roberta, a menina do anúncio)
- O chá não me acorda (Rolanda, viciada na cafeína)
- O chá? Isso é para os ingleses! Café com cheirinho é que é! (Rodolfo, proprietário de um “café”).
Ah, isso é que é! Um belo bagaço, inflacionado no seu percentual etílico, despejado por cima de um líquido enegrecido e amargo, mesmo com o natural pacotinho de açúcar concentrado no fundo da xícara… uma bomba apenas ao alcance dos mais fortes. A escada natural para se alcançar um bafo respeitoso e inesquecível. Um teste de segurança ao coração.
Depois do suspiro de satisfação pelo último trago, o cigarrinho da ordem. Levanta-se um burburinho de desconforto, indignação, irritação, paternalismo e desconsolo, entre outros sentimentos residuais.
- Desculpe, não se pode fumar aqui.
- Vamos lá para fora acabar o café, que aqui a chaminé já começou a trabalhar!
- Hão-de morrer com cancro, desgraçados!
- Toda a gente sabe que faz mal, porque é que fumam?
- Estas pessoas fumam sem se preocuparem com mais ninguém! Já estou com os olhos a arder!
Se beberem um café, tudo isso passa…