sábado, março 31, 2007

Não Me Enganam Mais

Chega de pasmaceira. Basta de tanta ostentação gratuita. Não vai haver ninguém que me consiga parar. Vou beber o sangue dos heróis e ornamentar-me com as vísceras das vítimas. As minhas medalhas serão as vossas lágrimas petrificadas. Eis a guilhotina da vossa glória. Cheguei eu, a revolução.
Um cheiro a novo levanta-se da fogueira das vossas vaidades. Atiço o lume com os ideais pós-modernos com que me cozinharam, embebidos em álcool e ácido. A puericultura está na rua, a autoridade no esgoto. Não vai haver piedade para com desculpas esfarrapadas. A nova ordem provirá de mim, serei o senhor que vocês espezinharam ontem, mas que serão forçados a servir amanhã. Não tentem agarrar-me quando as luzes da revolta se acenderem e as bombas explodirem com os vossos incautos tímpanos.
Não vai correr mal, eu sei. Pois eu não tenho nada a perder, nem sequer o orgulho. E eles têm o mundo, a vida, o dinheiro, as ideias estúpidas que tentam vender-me embrulhadas em papel reciclado. Só posso estar confiante nos meus projectos despidos e nos meus equipamentos tecnológicos super sofisticados que não servem para nada. Só que eles nem sabem disso. Nem sabem com quem convivem. Vão saber. Vão sofrer. Vão desejar não terem expurgado este pedaço biológico dentro deles. Para a próxima estarão avisados. Se houver próxima vez.

terça-feira, março 20, 2007

Contra a Desmamificação Global

Bons atributos valem muito. Eu refiro-me à mulher de verde do genérico de abertura do “Diz Que É Uma Espécie de Magazine” quando penso em atributos valiosos.
Eu sei que já houve gente que reparou nela, já vi comentários na blogosfera sobre ela. Bom, e quem é ela, nome, idade, profissão? Não faço a mínima ideia; quem sabe de quem estou a falar também não, provavelmente. Apenas posso confirmar que não lhe foi dado o devido destaque nesse genérico – ela fica lá por trás, escondida atrás de outras beldades sixties, descaída para o lado direito do ecrã, abandonada à sua sorte. E digamos que, entre todas as indumentárias que havia por escolher, a ela calhou o trapo mais encolhido que podia. Só pode ter sido má sorte… ou talvez nem tanto.
Pois bem, e sem meias palavras: a menina tem um peito de tal modo saliente que ofusca tudo em redor. Como dois faróis máximos, encandeia o mais incauto voyeur sem piedade. O problema nem deve ser do vestido, vistas bem as coisas: dentro do modelo, até devia ser o maior vestido disponível. Mas ela é maior. Dois volumosos nacos naturalmente inchados (eu acredito que sim) balançam livremente sem soutien ao som do genérico, titubeantes mas nunca derrotados, preenchendo o imaginário masculino sedento de seios valentes e pujantes e testando perigosamente os limites de resistência do tecido verde do vestido dela. As outras bailarinas, sim senhor, bons movimentos, muita desinibição… mas meros refugos quando comparadas com a sinceridade oscilante das mamas (sim, mamas!; calemos os eufemismos!!) da menina de verde vestida, ostracizada no genérico, não fossem os mais puristas arranjar motivos de censura por esta exposição softcore e as restantes bailarinas a roerem-se de inveja, deixadas à indiferença geral.
O verde parece ser um lugar comum nessa menina, loura e prendada, mas da qual não consegui reter muitos mais traços: é fraqueza de espírito, eu sei; mas quem repara na cara ou no sorriso dela, ou mesmo no seu traseiro, quando aquilo que se nos depara são duas formações pneumático-humanas altamente provocadoras e, porque não assumir, demoniacamente tentadoras? Sim, o verde. Ou muito me engano, ou esta menina participa no anúncio que passa hoje em dia na TV relativo a um seguro automóvel por telefone, cuja anterior garota-propaganda era a sobejamente conhecida e insonsa Marta? É ela ou não? Bikini verde? Eu tenho quase a certeza que sim.
Porque os sentimentos foram os mesmos: não consegui ver a cara dela, não vi mais nada à volta, desta vez nem sequer ouvi o que ela tinha para dizer – e certamente que disse algo de extrema relevância, algo de utilidade máxima para quem pense em mudar de seguradora, mas, francamente… quem se importa com isso? Só entrevi o peito dela. O peito da “menina verde”, designação com que eu baptizo este fenómeno meio anónimo e natural da evolução mamária. Também constato que ela arranjou mais um emprego – e não deve ter sido por causa dos dotes de bailarina nem de actriz.
Serve esta menina para lançar uma discussão que tem apoquentado toda a comunidade científica mundial: o que é feito das grandes mamas? Sim, aquela robustez taxativa do peito feminino, sempre a postos para saltar para além dos confins dos decotes mais envergonhados, no Inverno, ou mais explícitos, no Verão? Aqueles inebriantes sacos de leite de base arredondada utilizados com sapiência para iludir machos sonhadores e povoar-lhes os sonhos mais ou menos húmidos, objectos de culto massivo e de adoração dedicada? Aqueles fartos pedaços carnudos que convidam as nossas mãos a revelar-lhes a beleza da sua nudez, a nossa língua a rodear os mamilos protuberantes e apetecivelmente eriçados na nossa direcção, a nossa cabeça a afundar-se como uma bigorna indefesa no fundo dos mares de prazer que ocultam entre eles? Que é feito disso? E, atenção, eu falo de peitos naturais; falar-se de silicone é falar em jogo sujo, trapaça, tramóia, complexo de inferioridade, aberração biológica, choque visual, fast food sexual, etc.. Não há nada pior do que uma mulher artificialmente inflada. Quer dizer, até há coisas piores (tipo guerras e doenças e coisas do género), mas nada satisfaz mais do que um belo e sadio par de mamas ao natural.
Pensem em como podem ajudar a recuperar este conceito de grandiosidade fálica feminina, mas não com muita força, especialmente se estiverem no emprego. Mas pensem. Qual é o conceito de beleza hoje em dia? Magreza. Elegância. Não se pode exceder determinado limite de espessura. E os peitos sofrem com isso. As mulheres procuram contrair e, regra geral, os peitos vão atrás. É ver top-models a prestar mais atenção às calorias, ao cabelo, à roupa e às tatuagens do que ao peito. É ver apresentadoras de televisão a fazer implantes por dá-cá-aquela-palha. É ver nutricionistas a defender produtos que tornam as mulheres palitos sem massa carnuda e a convidar ao desporto intensivo. Já alguém conheceu alguma atleta olímpica fisicamente atraente? É com estes maus exemplos que cerceiam as oportunidades de desenvolvimento dos seios! Urge tomar consciência deste problema e estudar formas de combate à desmamificação global!
Parece só haver três alternativas contemporâneas para o crescimento mamário, nenhuma delas claramente satisfatória: 1 – silicone (já abordado); 2 – engordar (até certo limite, tudo bem, mas receio que muitas vezes os lípidos estagnem por outras partes corporais, ficando os resultados muito aquém do esperado); 3 – engravidar (efeitos de curto prazo ou tendência para engordar no médio prazo). Eu advogo o regresso às raízes: alimentação gordurosamente saudável e natural, muito leite e cálcio e uma crença em não-sei-bem-o-quê-porque-na-realidade-não-sei-mesmo. Para ser tudo em grande, como antigamente. Para um mundo com grandes mamas dos 18 aos 40. Para que as mulheres, adolescentes ou pré-menopáusicas, não tenham vergonha das suas grande mamas. Para que eu consiga ver meninas verdes por todo o lado, dançando com o peito ao léu e sem reservas morais, qualquer música que seja.

segunda-feira, março 19, 2007

Siglas

- Já estão todos?
- Falta apenas o BA, que está a acabar o RFS para o CEO. Ele disse para começarmos sem ele.
- Ah, está bem… e o Valentim Gaspacho?
- O Valentim Gaspacho é o BA…
- Então mas ele não era o AMG da TTT?
- Não, o AMG da TTT fundiu as suas actividades com o CC da DFC de modo a dar o BA… o Valentim ficou com isso tudo.
- Então e o Bráulio Serrinha que estava no DPRH e que estabeleceu o JO para as notas de apoio ao RFS?
- Não sei. Deve estar no TPC.
- Coitado do Bráulio, sempre tão atarefado com as UDs… Bom, vamos ao que interessa… Caros amigos, convoquei-os para esta reunião para vos informar de alguns detalhes finais sobre este projecto importantíssimo para a vida da nossa empresa, o PGAT-7.
- Ena, o PGAT-7! Bem, o que eu já ouvi falar do PGAT-7! Já ouvi dizer que supera, de longe, o outro projecto, o GRD-POC! O GRD-POC não era mau, mas os BSA’s da parte final destruíram todo o potencial de URN que prometia…
- Ó Faria, esse que estás a falar era o HB de 1998… o GRD-POC nem tinha BSAs, só PSO’s…
- Ah, pois, o HB… Peço desculpa, foram muitos dias seguidos a tratar das GPFs…
- Ainda estás com GPFs, Faria? Isto já não era altura para iniciar as NXs para delinear as OTTs de Julho?
- Para já não, Gonçalves. Isso é só quando o EML libertar as DIs para completar o REC… isso é só em Maio.
- Importam-se que continue a apresentação do PGAT-7 ou vocês preferem assinar uma OEF?
- Não, chefe, uma OEF não! Nós calamo-nos!
- Então, em linhas gerais, e como deverá ser do vosso conhecimento, o PGAT-7 pega nas DUs fundamentais do projecto CAP-10 e introduz, de forma resoluta, novas variáveis KC ao PLIM delineado por alturas do GROTC de 2004. De forma simples, este PGAT-7 vai estabelecer as DFEs que os nossos UCVs irão adoptar para que os OFCF da nossa empresa atinjam os níveis preconizados no PDS passado e romper definitivamente com o esforço falhado do PQUAB, conforme atestado pelo RBB da KWY. Ah, e existe um PFGE atribuído a todos os ODMGF da FPE, que estará disponível para consulta na INTN, a partir do momento de fecho de todos os MEPGAS pendentes, e que serão, segundo as minhas contas, ainda uns oito. Dúvidas?
- Qual é o lugar das LON no PGAT-7? Estão contempladas no AQTO?
- Não, Narciso, as LON desapareceram no âmbito do PISSP apresentado na RGPAOA de Dezembro…
- Expliquei-me mal, chefe… eu queria era questionar as LOD, das LON já estou inteirado…
- As LOD… mas o que é que as LOD são para aqui chamadas, Narciso?
- Ó chefe, o ponto que o Narciso levanta é importante… Então, como é que nós, na DIC, sabemos depois se as EMEs do CIB entraram ou não no cálculo do RLA aplicável ao UUEV do TNN? Só acedendo às LOD… não estou a ver outro modo…
- Pois é, Ferreira Pinto, eu referi essas relações na reunião do GTPAC, na qual você esteve presente na qualidade de CSPCQNI, e preferiu-se avançar para um modelo em que as LON seriam substituídas progressivamente por LONNM, ou por TAAN, se os CMEAF se mantiverem em vigor até ao início dos STLTs, sem que você contestasse os impactos na DIC…
- Mas, chefe, naquela altura, nem sabíamos quais os resultados do GAN/UE…
- Lamento, Ferreira Pinto, o PGAT-7 vai aprofundar as matérias que o SIN-90-XI já fazia eco, mas sem se deter com LONs nem BITFUs… e esta é para você, Trindade Lemos.
- Bolas, chefe… já não bastava meterem-me com os IOZs em cima, agora tenho-me de aguentar às DFEs e tudo o que seja ETPs…
- Mais alguma dúvida?
- …
- Pronto. Convoco então uma nova reunião para o início do mês seguinte, cuja ordem de trabalhos será avaliar a implementação do sistema TREWASBN_LLE junto das áreas FDE, BGT, OUC e CRAL. E é bom que esse relatório chegue a tempo da RRL do CAE, Faria. Senão, temos mais POOD em cima.
- Está bem, chefe. Eu desta vez utilizo o TAKS-4 em vez do CMU-202.
- Muito bem. Agora, todos para o PRTE, antes que venha aqui a ASPCII e nos veja a CG em cima da DEJE.

quarta-feira, março 14, 2007

Chico Morno

Recordo-me do momento em que Chico deu mais nas vistas. Não naquela semana ou naquele ano, mas em toda a sua vida. Preparávamo-nos para uma entrevista de emprego. Naqueles minutos ansiosos que precedem a entrada na sala para uma reunião de grupo, aquele preceito americanizado decalcado de uma vulgar terapia (não de alcoólicos anónimos, mas de futuros quadros empresariais anónimos), houve alguém que perguntou, como forma nervosa para quebrar o gelo:
- Qual é a vossa opinião para o jogo de logo à noite?
- Vai dar empate! – atalhou um engravatado cheio de gel.
- Não, não! Nós vamos ganhar! 2-0, sem espinhas! – contrastou um robusto e distinto homem, já em jeito de preparação para a entrevista.
- Ai, que os homens só pensam em futebol… Que importância é que isso tem? – desmoralizou a senhora do decote, que bem podia destroçar facilmente as ambições de emprego de qualquer outro, fosse o entrevistador um homem adepto de pornografia barata. Mas Chico calou todos:
- Mas… nós temos opiniões?
Chico não mais abriu a boca, nem fora nem dentro da sala. Não ficou com o emprego.


Como Chico chegara àquele preâmbulo já era um mistério por si só. Chico, vim a saber, era o cúmulo da vulgaridade. Quando abriu a boca daquela vez, tinha sido, provavelmente, a altura em que mais de 3 pessoas se concentraram nele.
Chico nascera por acaso, após uma festa casual cujos pais nem deviam ter ido. O pai fugira quando soube a mãe grávida, regressou passados poucos meses, arrependido. A mãe lá lhe pariu, sem muita dor, mas também sem muita alegria. É capaz de ter provado do mamilo dela na sua infância, só que mais comuns foram as vezes em que bebera leite em pó dum biberon rasco já utilizado com a irmã mais velha. Não que a família fosse muito pobre; não era – mas não se podia dizer que fosse abastada. Cresceu numa terra que está no mapa, sim senhor, mas à qual ninguém presta muita atenção. Não era uma vila pequena, mas também não era assim tão grande para que fosse uma cidade. Não estava bem ao norte nem bem ao sul e era demasiado descentralizada para que se considerasse no centro. O clube de futebol equipava-se de cinzento, nunca tinha estado no topo e raramente tinha descido às distritais. Também nunca jogara com um grande. Chico inscreveu-se para jogar nos infantis. Não tinha mau toque de bola, mas estava longe de ser um craque. Desenvolveu uma fugaz carreira entre lateral-direito e trinco, actuando esporadicamente como guarda-redes. Sempre como suplente. Aquecia durante um jogo por 45 minutos até o treinador se esquecer dele e a equipa recolher aos balneários. Chico ia atrás. Quando Chico deixou de comparecer aos treinos, ninguém deu por isso – apenas deram pelo acréscimo de mais um colete de treino, que foi utilizado por quem lhe seguiu.
Na escola, Chico obtinha notas médias. Não era genial. Não era completamente parvo. Movimentava-se com facilidade entre os 40 e os 60%. Chumbava a uma ou outra disciplina, excedia-se numa ou noutra, mas sempre sem louvores nem reprimendas especiais. Repetiu um ou dois anos. Levava cacetada no recreio de vez em quando, mas não era o alvo preferencial. Parecia apanhar calduços por acréscimo. Não fez grandes amigos. Também não gerou grandes inimizades. Não teve namoradas, mas as raparigas também não gozavam muito com ele. Nas fotografias de turma não se incluía em nenhum grupo: colocava-se a jeito para a foto, nem muito atrás, porque não era assim tão espadaúdo; nem muito à frente, porque não era anão. No meio ficavam as raparigas, ele lá arranjava um espaço. Não participava em trabalhos extra-curriculares, não se sentia com vontade nem direito de participar, muito menos lhe pediam qualquer coisa que fosse. Não lhe conferiam responsabilidades nem ele assumia nenhuma.
Chico nem sequer tinha um nome diferente. Chicos há muitos. Não tinha um aspecto visual vistoso, possuía olhos e cabelos castanhos, uma cara e uma estrutura medianamente mediterrânica. Chico comungava de uma timidez plácida, não muito exacerbada, mas sem nunca raiar os limites da pequena irreverência. Passava amiúde despercebido. Gostava de futebol, mas não era fanático; não apreciava política, sem ser indiferente nem contestatário. Só por uma vez participou numa manifestação, que foi violentamente reprimida – mas não apanhou com os cacetetes nem com os jactos de água, nem sequer fugiu a sete pés: os polícias correram por ele e ele assistiu a tudo. Gostava de programas de matiné ao fim-de-semana. Por vezes, frequentava a assistência, mas as câmaras nunca lhe captaram a cara, preferiam focar as velhotas esganiçadas e os deficientes motores da primeira linha. E só por uma vez esteve próximo da tragédia, quando decidiu apanhar um avião para o Brasil. O avião que esteve para apanhar despenhou-se, mas Chico ficara em terra, devido a atraso seu. A televisão preferiu mostrar o cão esquecido por um dos desaparecidos no desastre numa jaula perdida no aeroporto. Chico desistiu do Brasil, voltou para casa num transporte público e não arranjou lugar sentado.
Chico é aquela pessoa que está atrás de nós na fila de supermercado, à nossa frente num engarrafamento de trânsito, ao nosso lado num concerto. Simpatizei com Chico naquela entrevista, com aquela resposta atabalhoada própria de quem desconhecia os prazeres duma personalidade vincada. Ele faz do anonimato uma profissão de fé, embora talvez não o assuma. Ele é o anonimato. Nada mais, nada menos. Uma comida nem salgada nem doce, nem quente nem fria. Para mim, ele é o Chico Morno.
Porque falo dele? Não por ter morrido, não por ter feito nada especial. Apenas faltou-me um jornal enquanto estava na casa-de-banho. É pena, Chico, lembrar-me de ti só nestas ocasiões. Fica sabendo, porém, que tens o meu respeito, se souberes o que isso é. Devo ter sido o único a prestar-te esta homenagem.

quarta-feira, março 07, 2007

Exposição de Gráficos

O mundo da cultura ficou embasbacado. Compreende-se. Foi uma iniciativa sem paralelo – a combinação do programa Microsoft ™ Excel ™ (daqui para frente designado como “ME”, só para evitar ter que recorrer constantemente ao símbolo ™, pois é uma chatice) com a arte é deveras inovador e demonstra, de forma cabal, que existem profundas preocupações estético-estilísticas sempre presentes em qualquer analista de dados de qualquer boa companhia de seguros ou corretora bolsista da nossa praça.
A iniciativa de que se fala foi a I Gala Internacional de Exibições de Gráficos do ME, levada a cabo, numa 1ª fase, no Grande Auditório da CGD (1ª semana de Fevereiro), depois transferida para o CCB (2ª semana de Fevereiro e fins-de-semana subsequentes), posteriormente deslocada para a Fundação de Serralves (2ª semana e meia até à 4ª semana de Fevereiro), tendo tido o seu final previsto no caixote do lixo do bar da estação ferroviária Coimbra B (último dia de Fevereiro e dias seguintes, se a recolha de lixo entretanto se atrasou). Contando com o apoio da própria Microsoft ™ (não consegui evitar mais este ™), de proeminentes críticos de arte internacionais e de diversos analistas, esta Gala reuniu várias obras (em rigor, foram quatro ou cinco, se for incluído o índice alfabético dos participantes colocado na porta de acesso à exposição) provenientes de autores, na sua maioria, desconhecidos pelo grande público e mesmo pelos respectivos chefes das empresas onde trabalham, que suspeitavam, mas não acreditavam, que os seus funcionários não ficavam até altas horas da noite no seu posto apenas para trabalhar em prol da empresa.

“Foi uma surpresa, reconheço”, admitiu Gervásio Mangueira, um ingénuo director-geral de uma PME da zona de Leiria. “O Malaquias sempre foi uma pessoa reservada e pensei que ficasse em frente ao computador apenas para não ter que ouvir a mulher dele lá em casa a queixar-se da sua sinusite. Afinal, foi pela arte”, deduziu o Dr. Mangueira, em sinal de empatia para com o seu notável funcionário. É que Malaquias conduziu Portugal ao 3º lugar da exposição com este excelente gráfico sobre a cotação do Brent, o famoso índice petrolífero. Os críticos foram unânimes na definição dos pontos fortes deste gráfico: simplicidade, não-legendagem e a curva solitária vermelha numa progressão ascendente sobre fundo branco. Um trabalho semi-anarquista, uma ode ao grafismo alternativo e uma ruptura com o neo-classicismo vigente nas consultoras actuais. O holandês Jan Vanderhaeghe, excelso crítico de arte gráfica do ME da escola flamenga, foi mais longe e afirmou que Malaquias “devolveu o ME às massas” e que este gráfico constitui, pelo seu desprendimento visual, “um sinal claro que os gráficos em linha voltaram ao patamar cimeiro do ME de uma forma estrondosamente forte e clara, suplantando a filosofia estática dos pie charts”. Apesar de tudo, outros críticos não foram tão eloquentes para com a poupança de recursos demonstrada por Malaquias, preferindo realçar a forma “cruel, e, ao mesmo tempo, algo preguiçosa” como o índice de Brent foi representado por Malaquias. O dinamarquês Kurt Svengaard, duma empresa de bolachas de Aalborg, foi o mais acérrimo crítico do trabalho do português, contribuindo para que Malaquias não passasse do 3º lugar. “Esta originalidade conduz a poucos efeitos práticos. Por exemplo, não está claro quais os anos a que se refere o gráfico do índice de Brent. Nem tão pouco se o barril de petróleo está cotado em dólares, como é comum. Não é um gráfico perceptível a quem não esteja familiarizado com os mercados de matérias-primas.”
A medalha de prata ficou reservada para Maurice Lefèvre-Alves, casado com um neto de emigrante português radicado em Lausanne, Suíça, com um portentoso gráfico ME ainda no mesmo estilo do anterior, mas mais elaborado. O cuidado de incluir Portugal, desprezando a “sua” Suíça, não só demonstra o grau de sofisticação inerente ao próprio impacto visual da obra-gráfico, mas também à preparação que esteve por detrás da sua elaboração propositadamente para esta Gala.

“Remete muito para o impressionismo proto-resultadista”, comentou um membro do júri, o francês Cédric Laspalles, contabilista em Le Havre, francamente deliciado com o gráfico que ilustra o Índice Harmonizado de Preços no Consumidor em diversos locais, desde o Portugal anfitrião até à Europa dos 27, EUA e Japão, num quase arco-íris repleto de espontaneidade criativa e dolência burocrática. “De facto, é harmoniosa a lata de Maurice, ao engraxar desta forma veemente o país onde se desenrola esta Gala… Parece quase um gráfico português dos finais do século XX, que bebe as mesmas influências de irregularidade e continuidade do gráfico de Malaquias. Foi mesmo feito para agradar ao público da casa. Quase que ganhava só por isso. Ainda assim, um soberbo gráfico, muito completo. Admiro particularmente as barras que ilustram a diferença entre a Zona Euro e Portugal; dão outro colorido e acrescentam uma nova dimensão de análise ao gráfico; o contraste entre o positivo e o negativo torna-se evidente”. Já o australiano Bruce Schwaddabadenbeck, ou apenas “Becky”, revelou dúvidas: “O BCE já conheceu melhores momentos, não devia ser a principal fonte de informação para este gráfico… Mas pronto, o Eurostat compensa essa falta de rigor”. Apesar de tudo, “Becky” atribuiu uma boa classificação ao gráfico: “É um bom gráfico sobre um tema pertinente que sempre intrigou todos os bons open-spaces onde se tratam indicadores estatístico-financeiros”. O 1º lugar foi para o misterioso gráfico de Iñaki Urrutia, um basco que não quis prestar declarações. Introduzindo cor de fundo, linhas e barras coloridas, dois eixos das ordenadas, cada um com a sua escala, e um eixo das abcissas que possivelmente representa os meses do ano, o gráfico de Iñaki foi considerado o mais arrojado da Gala. Isso mesmo atesta o único português do júri, Higino Outeiro: “Não há dúvidas: foram utilizadas muitas técnicas do ME, o grafista basco perdeu mais de 15 minutos para completar este gráfico… é uma antítese à naturalidade romântica dos restantes gráficos em exposição, inserido dentro do panorama do expressionismo yuppie de Nova Iorque”. O mistério em torno do gráfico, sobre o que ele realmente representa, parece ter fascinado o público, bem como o próprio júri. O americano Todd Valiens não conseguiu explicar: “Pode ser a produção dual dentro duma linha de montagem combinada com as vendas ou o comércio entre dois países combinado com a pluviosidade mensal… o que torna excitante este gráfico é exactamente isto, o facto de ser deixada ao apreciador do gráfico a escolha do tema”. Esta falta de objectividade não podia ser penalizante para a classificação deste gráfico? Valiens acha que não: “Interessa-me, enquanto júri, o impacto que o gráfico pode gerar junto dos fãs de gráficos e não o seu significado intrínseco. E este gráfico gera emoções que não são reproduzíveis nos gráficos que usualmente são publicados no Financial Times, por exemplo.”Uma menção honrosa coube a este estranho gráfico que chegou às mãos da Comissão Administrativa da Gala. O catalão Josep Bordi explicou. “Foi uma rapariga chamada Paloma que nos enviou este gráfico, dizendo-nos que o pai gostaria de estar presente nesta Gala com uma obra sua, mas que, infelizmente, não sobreviveu o tempo suficiente. Nós aceitámos a sua participação por simpatia, embora este gráfico não tenha muita qualidade”. Higino Outeiro parecia mesmo incomodado com o gráfico em questão: “Isto não é nada, não tem ordenação nenhuma, não há números nem evoluções que se consigam discernir. Parecem gatafunhos pré-escolares!”. O mesmo Higino previu um futuro pouco brilhante para o autor: “Talvez tenha algum sucesso junto de certas tendências surrealistico-analíticas, mas terá de evoluir muito para ser reconhecido nos bons gabinetes”.
A Gala foi um sucesso e a Microsoft ™ (cá está o ™ outra vez…) mostrou-se agradada com a publicidade positiva que gerou com o evento: cerca de 23 pessoas compareceram, 2 delas enganadas. Um sucesso, portanto. Um responsável da organização referiu que planeia repetir o evento no próximo ano, contando que surjam “mais e maiores gráficos”. O sonho deste responsável é receber “um gráfico com conezinhos vermelhos a ilustrar o número de vacinas ministradas na região demarcada do Douro desde 1980”.

quinta-feira, março 01, 2007

Os Anos 80 Já Acabaram

Maria de Lourdes apontou na sua lista de supermercado, a seguir ao feijão frade e antes do pão ralado: “1 lata de laca”. As suas filhas protestaram. Não por se ter incluído um produto químico entre dois produtos alimentares, quebrando o seguimento lógico do rol. Nada disso.
- Mãe, já ninguém usa laca…
Pois é, Maria de Lourdes. Os anos 80 já acabaram.
Nostalgia das nostalgias. Saudade das saudades. “Será mesmo possível?”, interrogou-se Maria de Lourdes para si própria. Sim, Maria de Lourdes, é possível uma vida sem laca no século XXI. É corriqueiro esquecermo-nos que esse complemento capilar existiu hoje em dia. Um abalo súbito percorreu toda a volumosa cabeleira de Maria de Lourdes, já estafada de tanta permanente e mise.
O que era estranho para Maria de Lourdes era o facto de ela não conseguir discernir o mundo em evolução à sua volta – para ela, a moda atingiu o zénite lá por 1986 e a partir daí desapareceu. A moda soçobrara com um clique, uma vez atingido o cume do bom-gosto. Esfumara-se. Desintegrara-se. O conceito morrera. Era como o “fim da história” de Marx, com concretização real e indolor. Apenas Maria de Lourdes parecia ter estado atenta.
Assim se tinha deixado cristalizar: latas e latas de laca despejadas furiosamente por cima do seu cabelo a atirar para o louro; unhas das mãos e dos pés pintadas com um verniz encarnado-vivo, orgulhosamente exibidas a par dos lábios matizados no mesmo tom; olhos cercados por um tom verde seco que às vezes podia ser azul-marinho; e, acima de tudo, uma forma de vestir macabramente kitsch, combinando cores inusuais com padrões indizíveis e feitios semi-circenses.
A única suspeita de Maria de Lourdes tinha sido em relação à roupa: já tinha de certa forma acomodado a escassez de camisas verdes com motivos que recordavam as savanas de África e os vestidos folheados de inspirações colegiais em cor-de-rosa com florzinhas lilazes a salpicar, entre outras peças do mesmo género – vivaças, extrovertidas, a roçar o apalhaçado. Uma vez por outra, lá dava de caras com saias azuis celeste com botões castanhos impregnadas com um cheiro a mofo numa caixa abandonada nos confins de uma megastore. Sentia-se particularmente bem com o preço de saldo das peças, mas ao mesmo tempo uma sensação de desconforto por ver aquele vestuário tão alegre e bem-disposto arredado das montras, dos expositores e mesmo daquele espaço onde se amontoavam peças com ligeiros defeitos a 1€. Noutros tempos, era relativamente fácil.
O cabelo era como uma imagem de marca: volumoso, comprido, encaracolado, ondulado, ruivo ou louro… tinha de ser vistoso e indefectível perante o vento. Que belas cabeleiras se viam para aí. Mesmo a Margaret Thatcher, do alto da sua imponência de ferro, se aprumava caprichosamente defronte do espelho todos os dias, religiosamente, para que nem um fio se soltasse. Sim, porque o estilo era vital para a satisfação de uma pessoa. E a laca o produto miraculoso para chegar à redenção. O gel é somente um substituto distante e ineficaz.
Mesmo os homens tinham outro charme: fatos-de-treino de marcas sombrias preenchiam o imaginário popular, fartos bigodes para estilos rústicos, mullets no cabelo para os mais modernos e ainda os caracóis para os ousados da nossa praça. Depois, fatos formais de todas as cores comportáveis numa paleta, reforçados com volumosos chumaços para confortar os ombros. Havia alegria e um sentimento de liberdade total na moda; não existia qualquer restrição nas combinações, nas invenções, nas provocações; e entre o vídeo “Wake Me Up Before You Go-Go” dos Wham! e a apresentação do Clube Amigos Disney pelo Júlio Isidro era muito difícil escolher – Maria de Lourdes ia, contudo, pelos Wham!, porque todo o seu imaginário adolescente ainda se revolvia em torno do George Michael.
- Mãe, o George Michael é gay. Ele está a borrifar-se para mulheres.
Como? Ainda iriam dizer a Maria de Lourdes que o Michael Jackson é branco, não? Bolas. Deve ter surgido outra corrente na moda, entretanto. Como fora possível deitar abaixo toda uma conquista cultural de uma geração? Como fora possível rejeitar os conceitos de despreocupação e extravagância que polvilharam aquela parcela importante da sua vida, desde o “Playback” de Carlos Paião ao “Conquistador” dos Da Vinci? O que é feito dos Da Vinci, por falar neles, que tão bem imitavam os Eurythmics? E os Renaults 5 vermelhos com autocolantes do “Correio da Manhã” estampados atrás avisando “BEBÉ A BORDO”? E o “1,2,3” com o Carlos Cruz? Um grande apresentador com óculos bem à sua medida…
- Mãe, o Carlos Cruz? O mesmo da Casa Pia?
Maria de Lourdes interrompeu a conversa. Não vale a pena. Se existe choque de gerações, que seja um choque cheio de força, vamos assumir o desnível. Maria de Lourdes sentia-se bem consigo, iria lutar pelas suas convicções. Os outros que se deleitassem nesse mau gosto de cabelos curtinhos, barbas aparadas, roupas Dior e fatos Boss. Um dia, julgava, arrepender-se-iam de terem profanado a cultura do passado e de a terem subvertido em nome da simples ruptura com a geração antecedente. Iriam pagar caro pela ousadia e Marco Paulo e David Hasselhoff voltariam em beleza, pujantes e icónicos, um com o microfone e o outro com um carro inteligente e falador a debitar palavras mecânicas sobre uma banda-sonora composta por sintetizadores.
Mas a verdade nua e crua é que é mesmo difícil obter laca para o cabelo. Talvez numa loja chinesa, de qualidade duvidosa… Maria de Lourdes solucionou:
- A laca deixem-na comigo; tragam um Denim para o vosso pai em substituição.