segunda-feira, outubro 29, 2007

Um Grande, Grande Homem


Donato Gervásio Timoschuk Varejinha (1942 – 2007), mais conhecido por Tó Quim, foi um renomeado estadista, jurista, filólogo generalista, carpinteiro, farmacêutico, ensaísta, cientista, animador de festas infantis e igualmente o mais temido líder de uma série de quadrilhas sanguinárias – papel no qual utilizou o seu pseudónimo Zé das Bombas. Consta que em 1965 também chegou a ser um gás raro posteriormente sublimado, de forma definitiva, num ser sólido, embora tal tenha sido desmentido pelo próprio nas suas memórias.

Origens – Tó Quim talvez tenha nascido a 15 de Fevereiro de 1942, em Carrazeda de Ansiães, filho de um amolador incógnito e da padeira local, Maria das Dores Timoschuk, mas pode ter simplesmente aparecido do ar por volta do mesmo ano e caído nos braços de Maria Timoschuk. Da mãe herdou o gosto pela confeitaria e pela cozinha, do pai tudo o resto, incluindo o apelido “Varejinha” e um pénis extraordinariamente curvado para a direita quando erecto. Criança precoce, em 1946 escreve o seu primeiro “Tratado Sobre a Arte de Bem Levedar o Pão”, que recebe menções honrosas no III Certame Internacional do Papo-Seco de Bruxelas e é imediatamente inscrito na lista das grandes obras de gastronomia enciclopédica, segundo classificação da École du Pain et de la Belle Baguette de Perpignan. A redacção original do Tratado viria a ser utilizada pela sua mãe para forrar os tabuleiros do pão e ocasionalmente como combustível do forno a lenha. Tó Quim não esmoreceu e, logo em 1948, volta a arrasar a crítica familiar com um ensaio para crianças sobre o efeito do isolamento na psique humana, com profundas análises neurologicamente comprovadas, incluindo descrições impressionantes da regressão da massa cerebral nos homens e mulheres com mais de 50 anos das zonas beirãs com fraca incidência da luz solar. Após este ensaio, Tó Quim deixa a sua Carrazeda de Ansiães natal, francamente desiludido com a pouca receptividade intelectual do meio, e ruma até Alter do Chão, onde espera cativar a comunidade científica. Por volta desta altura, Quim Zé começa a pintar o cabelo de roxo, algo que seria a sua imagem de marca até inícios dos anos 70. É em Alter do Chão que Tó Quim desenvolve o gosto pela política, desde Marx a Oakeshott, e também o gosto por lingerie usada de mulheres obesas e quarentonas.

Juventude – Tó Quim foi um jovem amargurado pelas vicissitudes da vida, que cedo o desterraram para paragens remotas. Em Alter do Chão, com vista a debelar a saudade e as primeiras reacções hormonais, concebe um plano militar para conquistar toda a África subsariana. Embora louvado pelos grandes generais do seu tempo, o plano é guardado na gaveta. Em 1953, e já com o seu primeiro livro dedicado à botânica alentejana publicado nas províncias ultramarinas, Tó Quim dá o seu primeiro beijo, curiosamente à sua prima. A ternura e a inocência típicas da adolescência marcaram-no definitivamente: “Não resisti ao apelo”, confessou nas suas memórias. “A tipa era gorda e isso dava-me uma tesão do caraças. Para mais, sendo levemente incestuosa, só a possibilidade de haver uma relação timidamente sexual encheu-me de ganas”. Em 1954, Tó Quim parte uma perna ao saltar de uma azinheira, em condições misteriosas. Tó Quim afirmou durante muitos anos que teria sido o seu grande inimigo, Manuel Churchill das Neves, a empurrar-lhe da árvore e a causar-lhe esta maleita que o fez coxear durante décadas, após aliciar-lhe com um pouco de vinho; porém, após das Neves ter doado cerca de 500 mil euros (em moeda actual) no célebre comício de Rio de Mouro em Abril de 1984, em nome da “boa amizade”, Tó Quim admitiu ter estado apenas “bêbado como um cacho”. Em 1958, já um pouco farto da monotonia de Alter do Chão, Tó Quim matricula-se finalmente na escola para aprender a ler e a escrever, embora tivesse já um plano de domínio do mundo, cinco tratados internacionais e uma dúzia de publicações sob a sua égide. Cansado de picotar e de fazer bonecos de plasticina, Tó Quim abandona a escola ao fim de 4 dias, publica o célebre manifesto sobre crianças desdentadas, inventa o primeiro mata-borrão pacifista do mundo e descobre a cura para o então inexistente SIDA, de uma forma tão inacreditável que ninguém acreditou mesmo, tendo a fórmula sido atirada para o lixo por alguém que hoje estará muito arrependido. Com o título de campeão do berlinde regional no bolso, Tó Quim percebe que é finalmente tempo de dizer adeus a Alter do Chão em 1960. Mas devido a dificuldades perceptivas e cognitivas, Quim Zé demora muito tempo entre o acto de dizer adeus e a partida efectiva, que só acontece em Março de 1962. Entretanto, escreveu a sua primeira música, uma balada sugestivamente intitulada “Catatónico É O Meu Amor” e assassinou a sua primeira pessoa, socorrendo-se dum saco de plástico e duma ripa de madeira – a vítima foi um crítico mordaz da sua obra-prima seminal, o óleo de inspiração litúrgica, “Madalena Arrependida a Levar Nas Trombas do José Traído”.

Reconhecimento e Atentados Bombistas – após Alter do Chão, seguiram-se Berlim, Sever do Vouga e Boston, sempre em busca do ideal de perfeição, com uma miríade de obras, prefácios e posfácios de elevado calibre académico pelo meio, até que Tó Quim assentou arraiais em Alpiarça. A versatilidade de Tó Quim era já por demais conhecida e o seu cabelo roxo começava a ser uma figura omnipresente na comunicação social. É aqui, e depois de ter projectado a nova Basílica da Estrela (de seu nome Basílica da Serafina) e de ter dado à luz trigémeos falsos (um ser humano, um ser aparentemente humano mas deveras esquisito e um guaxinim), que Tó Quim reconhece o recrudescer em si do seu alter-ego, o Zé das Bombas. Tó Quim admite esta realidade nas suas memórias: “Estávamos no meio da década de 60: Beatles, Vietname, Ultramar, cabelos compridos, ácidos, enfim, estava tudo na mesma pasmaceira de sempre e eu pensei cá para comigo: bem, o povo é demasiadamente estúpido para compreender e aceitar a grandeza das minhas teorias sobre a neo-relatividade, portanto tenho que dar ao povo o que ele quer”. E o que é que o povo quer? “Bem, o povo quer paz, pão, habitação, saúde e educação, mas acima de tudo sangue”. Estava dado o mote. Com alguns ensaios de permeio, Zé das Bombas consegue o seu discreto, mas eficaz, sucesso inicial: em 1968, detona uma das pernas da cadeira de Salazar. Quase ninguém credita Zé das Bombas por este êxito. “O povo é ingrato”, refere. “Mas não fico ressentido. Eu, aliás, o Zé das Bombas, era um anarquista puro e duro e isso não era bem aceite. Nem a anarquia nem os chupas com sabor a limão”. Os chupas com sabor a limão foram considerados como um dos maiores flops de Tó Quim, ultrapassando mesmo a sua fracassada tentativa de demonstrar que Isaac Newton descobriu uma maçã podre e não a relatividade, de quem diz ser “pai adoptivo e afectivo ao nível do Sargento Luís Gomes”. Em meados da década de 60, já todos conheciam, de uma forma ou de outra, a caixinha de surpresas que era Tó Quim e o seu grande contributo para a Humanidade, sendo impossível ignorar este homem – especialmente, quando este anunciou ter inventado uma tinta invisível de aplicação dérmica e ter surgido completamente nu e perfeitamente visível no programa “Zip-Zip” de Maio de 1969 (aparentemente, a tinta demorava algum tempo a fazer efeito; a emissão integral nunca foi para o ar).

Apogeu – as décadas de 70 e 80 ficaram marcadas pela intensa actividade de Tó Quim ou, mais concretamente, de Zé das Bombas. Cansado de ser uma figura esbelta e disposto a assumir a sua ruptura com o mundo medíocre que o rodeava, Tó Quim adquire o aspecto descomprometido que o iria caracterizar postumamente em 1972 (tal como se pode ver na foto, descansando ao natural após uma sessão de tremoços e imperiais na Tasca do Raposo, em Alpiarça). À medida que as teses, compilações científicas, descobertas e arte diversa de Tó Quim germinam como coelhos à solta na pradaria, Zé das Bombas começa a assumir uma preponderância fulcral na vida de Tó Quim. Foi Zé das Bombas quem planeou o 25 de Abril de 1974, embora esse mérito lhe tenha sido sonegado por uns quantos capitães e uns políticos esquerdistas – algo que fez crescer a fúria anarquista que habitava dentro de si. Todo o ano de 1975 foi vivido sob o signo de Zé das Bombas, que, passados uns anos, foi o principal mentor e instigador das FP-25 de Abril. Entretanto, Tó Quim foi cada vez mais relegado para segundo plano, enquanto Zé das Bombas ia acumulando grandes feitos: mutilou uma vasta gama de crianças em África, esfomeou a Ásia Meridional, treinou o gang Baader-Meinhof, esteve na génese do movimento talibã e secou notavelmente todo o Médio Oriente, para além de ter reivindicado a extinção do lince ibérico e de ter rebentado, por várias ocasiões, os lavabos das casas de banho da antiga Feira Popular – para a posteridade ficam as imagens de pânico da população aterrorizada na Grande Banhada de Setembro de 1983. Enquanto os líderes do mundo gizavam formas de aquecer a Guerra Fria, Zé das Bombas, lesto, desencadeou o seu ataque final: com um remate bem colocado à meia-volta, abriu as válvulas e deu-se Chernobyl. Foi o último grande assomo de Zé das Bombas que, enfastiado, retirou-se e deu lugar ao velho conhecido Tó Quim, agora já um grande senhor da cultura mundial, com discos de platina em quase toda a Europa, Nobel da aquacultura e presidente da Liga dos Homossexuais Que Não Gostam da Cor Púrpura. Em 1988, Tó Quim renunciou à sua homossexualidade e tornou-se homófobo e racista. Mas em 1989, Tó Quim, na apresentação da sua peça infantil “Os Dedos Nos Meus Orifícios”, negou as suas preferências e assumiu-se como “trissexual” e “apoiante de todas as minorias étnicas, excepto dos pretos que roubam na minha zona”. A 6 de Novembro de 1994, um dia depois de ter descoberto a origem do Universo e de ter pintado a sua casa de amarelo, Tó Quim é preso por acidente, ao pisar o pé calejado do Intendente Geral da Polícia Metropolitana durante o jogo Farense – Salgueiros. Tinha chegado ao fim a brilhante carreira deste perigoso iluminista.

Declínio e Morte – com a sua prisão, todo o legado histórico de Tó Quim e de Zé das Bombas foi ignorado e varrido da memória colectiva de toda a Humanidade, por intermédio duma espectacular reacção química universal, sugerida pelo próprio Tó Quim – o que explica o facto de ainda hoje se acreditar em Deus e na reencarnação, bem como o facto de nunca se ter ouvido falar em Tó Quim ou em Zé das Bombas. Apesar de tudo, Tó Quim foi absolvido, sem escapar ao apedrejamento público levado a cabo pelos magistrados e juízes do processo na mata de Monsanto (“O Martírio do Monsanto”, 27 de Março de 1996). Tó Quim ficaria ainda privado de exercer qualquer actividade produtiva para além de artefactos em madeira, o que constituiu um golpe profundo no seu ego. Ainda assim, criou um modelo de mesa-de-cabeceira em mogno que ganhou o 2º prémio no Festival do Móvel de Freamunde, graças aos seus motivos gótico-rococós aplicados à marcenaria para uso doméstico. Regressou à sua amada Carrazeda de Ansiães para se reencontrar com as suas raízes, mas tudo o que achou foi uma nota de hipoteca na sua antiga casa e a campa da sua mãe vandalizada no cemitério local. Constatando que nada havia que o prendesse a Carrazeda de Ansiães, vogou aleatoriamente até aterrar em Alfândega da Fé e por aí ficou até à semana passada, onde ditou as suas memórias a uma ex-prostituta para futura publicação, falecendo em 17 de Outubro de 2007, com sinais evidentes de caspa e algumas lêndeas no baço. No futuro, não se prevêem homenagens nem condecorações ao grande e execrável Tó Quim. As contribuições de Tó Quim tenderão a permanecer incógnitas para as gerações vindouras e estas não sentirão pena nenhuma.

quinta-feira, outubro 25, 2007

O Maravilhoso Mundo Empresarial

- Estou a dizer-vos… esta porcaria vai explodir!
- Ahahahahah! O puto tem graça!
- É… esta nova geração é só humoristas… muito bons!
- Mas, bolas! Vocês não estão a ver? Barras de dinamite, um temporizador em contagem decrescente… esta porcaria vai explodir! Isto não é nenhuma brincadeira!
- Muda lá a graçola, ó rapaz! A gente quer mais e melhor!
- E escusas de inventar desculpas.
- É. Nós estamos fartos de “isto vai explodir”, “a casa vai cair”, “agora está a chover”, “o moçambicano de cem quilos violou-me”, “o Benfica vai perder”…
- Ahahahahah! Essa está boa! Desde quando é que o Benfica perde? O maior clube do mundo? Alguma vez?
- Só mesmo o puto para se sair com uma dessas… a dizer uma barbaridade destas…
- Se o Eusébio o ouvisse, levava logo com uma pratada de tremoços em cima! Bem feita!
- Tirem-me desta redoma! Esta coisa vai mesmo explodir! Eu não quero morrer!
- Chega de choradinho, miúdo.
- Sim, entretém-nos mais um pouco.
- Seus #$%$#&&#!!! #?>$&/%?!!!! Cambada de sádicos!
- Ahahahah! O miúdo está mesmo desesperado, olha lá!...
- Não tenhas medo, rapaz. Não te vai acontecer nada. Isso é apenas uma réplica.
- É uma réplica o car****!!! Vou pelos ares dentro de 2 minutos! E depois, quem vos vai divertir?
- Rapaz, desempregados é que não faltam.
- Nós exploramos alguém mais, sem remorsos. Portanto, trabalha como quisermos em qualquer circunstância.
- Sim, senão vais para o olho da rua e depois arranja-te como quiseres.
- E, além do mais, o teu pânico é simplesmente maravilhoso de assistir… ihihihihih!
- Com medo duma coisa de plástico…
- Como se isso mordesse…
- Gostamos desse teu número de desespero, mas está na altura de evoluir.
- Vá lá, não temos o dia todo.
- Temos ainda mais uns quantos jovens estagiários para observar.
- Sacanas! Eu sei que esta porcaria é uma bomba de verdade! E que os vidros por onde me espreitam e toda esta estrutura são à prova de explosões! Mas eu vou morrer aqui fechado! Tirem-me daqui, car****!!
- Ahahahah! E o gajo pensa mesmo que a bomba é verdadeira!
- Ó rapazito, preocupa-te com o que é mesmo importante e deixa de te armar em vítima…
- Buáááá! Vou morrer aqui!! E eu só queria a porcaria dum emprego!
- Este miúdo está a desiludir-me...
- Pois é, não está a dar o litro.
- Ó rapaz, trata lá de fazer umas coisas jeitosas…
- Sim, pá, tem lá alguma criatividade! Dá uns saltos, faz malabarismos, encena um teatro…
- Podes servir-te de qualquer um dos cadáveres ao canto…
- Sim, e podes brincar com as facas que tens aí à disposição…
- Tens tudo para brilhar, miúdo!
- TIREM-ME DAQ…

- Eh, pá… afinal aquela coisa explodiu mesmo…
- O puto tinha razão…
- Quem é que colocou lá a bomba verdadeira?
- Não sei… Talvez tenha sido a Solange da lavandaria.
- Despedimo-la?
- Não, deixa estar, quem é que nunca se esqueceu duma bomba em locais desapropriados?
- É verdade, deixa lá estar a Solange.
- E agora?
- Agora é limpar o sangue e preparar a redoma para o próximo inquilino.
- Quem será?
- Um tal de Hernâni, recém-licenciado numa universidade de ciências sociais…
- Boa, boa, esses gajos dão o cu por cinco tostões… e agora, o que nos falta ver antes das seis da tarde?
- Uma tal de Ilda, colocámos-lhe numa jaula com cinco beduínos esfomeados.
- Vamos a isso! Estou expectante; sempre gostei de animais!
- Aposto que ela não se aguenta nem dois minutos…
- Apostado!

quarta-feira, outubro 24, 2007

Surrealizar Por Aí

Portugal inteiro aguardava com expectativa por João Loureiro. A demissão do cargo máximo do Boavista foi um mero pretexto para uma conversa com a fleumática Ana Lourenço na SIC Notícias. O que todos nós, até a férrea Lourenço, queríamos saber, em jeito de quem não quer a coisa, de desdenhar e querer comprar, era se João Loureiro iria reformar os Ban. E ele, remetendo, enfim, o xadrez da avenida para segundo plano na fase final das suas justificações para a sua não continuidade enquanto presidente da colectividade, lá admitiu que sim, que seria possível, ele que até tem mantido encontros recentes com ex-membros da banda. O clímax fora atingido, no seu íntimo Ana Lourenço deve ter suspirado de alívio.
Com isto, Lourenço salvou a entrevista, acalmou Loureiro e dissipou as dúvidas que pairavam sobre a permanência de Loureiro em estúdio, temido que foi, por momentos, o remake da badalada dispersão de Santana perante a mesma Lourenço dos lábios pintados em tons muito escuros. E, mais importante que tudo isto, relançou a carreira dos Ban, ao não negar a especulação da sua reunião. Portugal estremeceu.
É compreensível este frenesim de sensações que invadiu os lares dos portugueses com televisão por cabo. É que, afinal, os Ban foram uma grande banda pop dos anos 80. E com isto, acabei de perder a consideração dos pouquíssimos pobres diabos que teimavam em acompanhar este blogue.
Talvez o que se reteve na mente das pessoas tenha sido o aspecto tremendamente yuppie de Loureiro, o filho do major, menino-bem do Norte com o curso de Direito, a abanar as ancas tapadas por umas calças subidas até à parte superior do tórax, acomodando a poupa proeminente ao sabor do vento, agarrado ao microfone debitando palavras elaboradas com a sua voz Ban(al). Além do mais, toda a banda partilhava os mesmos gostos de moda, o que incluía um baixo subido até ao pescoço ou as horríveis guitarras sem cabeça. Tudo bem, é de facto uma imagem cenicamente forte e inapelavelmente kitsch, mas não se esqueçam que estávamos nos anos 80 – e se criticamos os Ban pela imagem, certamente que temos de criticar todo o visual da maioria das bandas dessa época.
E é neste contexto visual aparvalhado da altura que os Ban devem ser inseridos. Estilisticamente não tão ousados como as bandas hair-metal ou os inenarráveis Flock of Seagulls, por exemplo, mas musicalmente enquadrados na vanguarda do som pop da altura. OK, especialmente em Portugal. O primeiro álbum da banda, “Surrealizar”, surgiu em 1988. Nesse ano já se antevia uma inflexão do paradigma musical: do lado de lá do atlântico, os Sonic Youth editaram “Daydream Nation”, um ambicioso álbum de noise-rock, os Pixies reuniram-se com Steve Albini para “Surfer Rosa”, um ano depois de “Come On Pilgrim”, e os então seminais Nirvana gravaram a sua primeira demo-tape em Seattle; no Reino Unido, mais contido na revolução, Manchester começava a dar cartas, com os Stone Roses. E por cá, a pop ainda vivia o seu período de fulgor. Depois, os Ban lançariam “Música Concreta”, em 1989, e deram por findas as suas actividades com “Mundo de Aventuras”, em 1991 – e aqui começava a morrer o admirável pop português, começando a cedência às guitarras mais rasgadas e às batidas mais roqueiras que davam cartas pelo mundo. O pop português vindouro, em termos genéricos, jamais conseguiu aproximar-se da magistralidade dos grandes momentos dos Ban e sempre pareceu mais forçado do que inspirado, de forma a receber o precioso tempo de antena.
Os Ban podem ter demorado a aparecer (pois já existiam desde 1983, então ainda sob o nome Bananas (!), praticando algo muito mais escuro e semelhante aos Joy Division – diz quem os ouviu nessa fase), mas apareceram em força. Havia uma espécie de guerra-fria com os conterrâneos GNR para saber qual deles ocuparia o trono da pop portuguesa. E se é certo que os GNR atingiram o reconhecimento mais cedo e durariam muito mais tempo (até hoje), os Ban quase sempre se revelaram mais acessíveis, sem nunca terem enchido Alvalade e sem serem tão provocatórios. Músicas orelhudas para passar na rádio era com eles. Nunca agradaram a facções mais radicais, mas estou certo que cativaram muitos adolescentes, pré-adolescentes e gente de idade mais adulta fascinada pela pop inócua, pela bolsa de Nova Iorque e fã do pezinho de dança com o copo de ginger ale na mão – sim, música yuppie, era isso que queria dizer. Era um estilo respeitável na época.
É deles A música pop portuguesa dos anos 80. “Irreal Social” é grande, com a sua batida seca, uns pingos de saxofone, uma guitarra à la The Edge, o dueto formidável de João Loureiro e Ana Deus e a letra memorável. Ainda comparando com os GNR, se estes tiveram letras lapidares como “ser mãe é a aspiração natural de todo o homem moderno”, “faz-me impressão o trabalho, a inércia faz-me mal”, “era só para brincar ao cinema negro, os corpos no lago eram de gente no desemprego” ou toda a letra de “Ana Lee”, os Ban respondiam com frases curtas como “dá-me um ideal, um imaginário”, “não me dês moral” e o soberbo “surrealizar por aí” – simplesmente delicioso. “Irreal Social” foi o expoente máximo conhecido de rebeldia do menino João Loureiro e é uma música que deve perpassar gerações e ser imortalizada. Se há algo de positivo na pop dos anos oitenta, “Irreal Social” é o exemplo acabado. Sem reservas.

Mas não se pense que os Ban foram “one-hit-wonders”. Não; aliás, uma audição do seu “best-of” (“Num Filme Sempre Pop”, 1994) revela mais gemas pop às quais o tempo não atribuiu a merecida relevância. Descontando “Mundo de Aventuras”, a canção homónima do álbum que foi o último assomo criativo da banda, tendo inclusivamente feito parte do alinhamento daquelas compilações “Nº1” que saíam no final de cada ano sob o patrocínio do Fido da Seven-Up e que talvez tenha tido algum destaque (no clip, Loureiro na fase George Michael pós-Faith exibe a barba por fazer, os óculos escuros e o troco nu), algumas outras geniais criações ficaram apenas na memória de poucos. Cito as mais imperdíveis: “Dias Atlânticos”, uma balada doce do fim de uma tarde de Verão (“revisitei mais desenhos animados”, outra frase forte); “Rosa, Flor”, que bem podia ter tido mais tempo de antena na rádio com o seu je-ne-sais-quois de Smiths; “Excesso, Aqui”, outra vez a vírgula no título duma faixa mais sombria e erótica (uau!), bem apimentada por teclados ambientais e ritmo afunkalhado; “Suave”, tal como o nome indica, com Loureiro sibilando as palavras com o apoio do “uuuuh-uuuh” de Ana Deus; “Pá-Rá-Rá”, título visionário para a canção “Hmmm-mmmm-mmmm” dos Crash Test Dummies, música igualmente saturada de pop por todo o lado, com harmónica e tudo; e “Num Filme Sempre POP”, o épico, se assim podemos dizer, dos Ban, que encerra o “best-of” e sintetiza o espírito da banda. Uma mão-cheia de grande música pop.
Sobre a eventual reforma dos Ban, tenho sentimentos contraditórios a exprimir: se, por um lado, é perfeitamente legítimo que João Loureiro queira regressar para tentar dar aos Ban a importância histórica que eles merecem realmente ter no plano da música pop portuguesa (e cantada em português), por outro lado o mundo em que os Ban cresceram é hoje uma imagem distante, uma fotografia amarelecida pelo tempo e que levanta risota aos descontextualizados. Seria, a meu ver, trágico que João Loureiro se lançasse na gravação de um novo álbum e estragasse o que de bom fez no passado – quer fazendo música dos anos 80 vinte anos depois, quer adaptando os Ban à cartilha do século XXI, sendo qualquer uma das hipóteses francamente sofríveis. Aliás, talvez até seja provável que Loureiro não consiga reunir toda a banda – e Ana Deus também seria insubstituível (nota: Ana Deus, que posteriormente integrou os Três Tristes Tigres com Alexandre Soares, ex-GNR do tempo de “Dunas”, ou como o panorama musical português se resume a meia dúzia de personalidades e bandas com formações muito promíscuas).
Para mim, o veredicto certo será Loureiro reunir a banda para uma digressão de celebração da sua música, deliciosa para os nostálgicos, e lançar um álbum ao vivo. E se ele quiser continuar na música com novos sons, que não toque nos Ban – lembro que ele também integrou os Zero e estes também tiveram um excelente single, “Tudo ou Nada” (nota: dos Zero fazia parte… Alexandre Soares).
Enquanto Jaime Pacheco vai aguentando aquela manta de retalhos que é a equipa do Boavista e João Loureiro, o filho do major, pergunta aos filhos se deverá escolher regressar à advocacia activa ou aos palcos (sendo que a recandidatura parece estar definitivamente afastada), surrealizemos por aí.

«(acabamos) por motivos diversos. Uns elementos tinham outras opções de vida e, talvez, algum cansaço. Depois de os "Ban" terem acabado, lancei o disco dos "Zero". Entretanto saiu uma colectânea dos "Ban" e fizemos ainda uma digressão final que serviu para colocar uma pedra final no agrupamento. Por outro lado, na música, como em tudo na vida, é necessário saber parar. Eu prefiro que os "Ban" sejam vistos, e o próprios "Zero", como marcos fundamentais na música moderna portuguesa e serem relembrado com saudade, do que se continuar a fazer coisas sem prazer, com resultados piores.» João Loureiro, http://anos80.no.sapo.pt/ban.htm

segunda-feira, outubro 22, 2007

Arte & Ofício

Estou tão cheio de tudo. Algumas coisas não enchem. Muitas esvaziam-se. Vogamos em semi-vácuos de consciência em direcção ao nádir absoluto.
Noto que este mundo é constituído pelo somatório de almas que ambicionam tudo… mas conseguem nada. E tudo o que falha a forma não tem conteúdo que lhe salve. Não há espaço para des-modas na estação da moda. Sentem-te como diferente e sugam-te a individualidade para um mega conjunto oco e uno – eis como te assimilam. De um passas para zero e daí nunca sairás.
Acheguem-me as lembranças de tempos em que nunca fui. Façam-me relatórios dos tempos que nunca serei. Assino por baixo. Reafirmo a inutilidade do hoje. Observo a exponenciação de apelos num mundo vão à cata da logaritmização do código universal.
É melhor que acredites em mim. Juntos bocejaremos melhor do que isolados. Citaremos autores desconhecidos como se fossem nossos pais. Faremos boa figura. Seremos um mais um igual a dois e esquecer-nos-emos dos grandes algarismos. Deixaremos de ser dígitos não reconhecidos. Refugiar-nos-emos no nosso próprio mundo. Na nossa arte incógnita. Nos nossos devaneios experimentais. Um universo alternativo do actual.
Que é um universo nulo. Infinitamente zero. Imensamente nada.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Eu Gosto do Sorriso do Meu Coveiro

Acho imensa graça ao maroto. O tipo é um bem-disposto, risonho, uma excelente companhia, pelo que me é dado a entender. Parece-se com um actor. Se calhar até é. Dizem-me que todos os tipos do crédito imediato são maus; com efeito, chegaram-me aos ouvidos relatos pouco recomendáveis dos feitos de tais personagens, gente que passou momentos de intensa aflição à conta deles, por neles ter confiado; gente que penhorou haveres e projectos futuros por não ter sabido controlar a sua ganância. O Sr. G., um chato de primeira, desencorajou-me fortemente a não cair na cantiga. Eu julgo que ele terá inveja de mim e que ele é um grande ingénuo. Mas eu não acredito ser assim. Cá para mim, só me dizem isso que é para eu não ficar tão bem como eles. Eu já os topei, sou mais esperto do que eles pensam.
Então o tipo diz-me: “quer pagar rápido ou devagar?”. Vejam bem a fineza. A elegância. A solicitude. Na maior parte dos bancos, eu pago e calo com as trombudas e rígidas prestações que não escolhem outro momento que não aquele que foi pré-definido, seja ele dia santo ou não. Aqui, não. Além do mais, posso escolher pedir até sabe-se lá quantos mil euros. De uma só vez. Espectacular. O tipo ainda se despede com um “do que é que está à espera para concretizar todos os sonhos da sua vida”?
É verdade que até tenho sonhos. Molhados e secos; leia-se, uma grande viagem com praia e sem praia. Mas isso fica para mais tarde. Nenhum dos meus sonhos é demasiado grande. Ao contrário de muita gente, eu sei controlar-me. Se tivesse de desenhar os meus sonhos num alvo de parede, nunca arriscaria colocá-los no centro, na confluência das grandes ambições, mas sim na periferia, na zona mais acessível e na qual se ganham uns pontinhos que, bem amealhados, fazem uma boa figura. Não tenho capacidade de ser crocodilo, sei disso; mas, se me alimentar criteriosamente, poderei ser uma lagartixa ainda maior.
Por isso, quero um telemóvel melhor que o do Sr. A.; um LCD maior que o da Sra. B.; um computador, mais impressora, ecrã, câmara, colunas e scanner para o miúdo não se queixar que não lhe dou nada e que o filho do Sr. C. é que tem tudo à maneira; preparar o casamento da miúda, pois ela sempre sonhou com isso, todas as suas amigas se casam e, embora o meu futuro genro seja um parvo, ela merece um casamento bombástico; umas roupas novas para a patroa não amuar e para ela possibilitar-me sexo casual com regularidade; umas jóias para a sogra não me aborrecer mais com as suas lengalengas; mobiliário de sala novinho em folha, que o Sr. D. já fez isso e a sala deles ficou um mimo, sendo que os meus móveis já têm todos mais que cinco anos; já agora, aproveito e pinto a casa toda de novo, pois o meu vizinho, o Sr. E., também já fez o mesmo e insiste para que façamos o mesmo. Isto e alguma coisa mais que por agora não me lembro.
São coisinhas pequenas, como se vê. Não peço carros, nem casas, nem mesmo viagens. Só estas pequenas mordomias chegam para me fazer feliz. Não há-de ser nada. Lá pela patroa receber o salário mínimo e eu pouco mais que isso, não significa que não possamos ser felizes como todos os outros. O Sr. F., meu grande amigo, diz que está tudo bem com ele – ele só precisou dum telefonema e teve logo dinheiro fresco para comprar uma máquina de café, daquelas todas modernas. Ou lá o que era. Gaba-se muito das suas aquisições e necessito de ter algo para lhe responder à altura. Já o Sr.G. diz-me para não me meter nessas cavalgadas, mas eu nunca gostei muito dele. O Sr. G. vive num prédio asqueroso e tem mau aspecto, raramente é simpático, por isso não nunca me fio por ele.
Depois, olho para as taxas: na ordem dos 20 e 30 por cento. Bastante razoáveis. Eu não percebo muito de números, era tão sofrível a matemática que escolhi ir para línguas e mesmo assim não aprendi a falar francês convenientemente. E não acabei o 11º ano. Mas, vamos lá ver, 70 ou 80 por cento é que é um número alto, não é? 20 e 30 por cento parece-me muito simpático. Então peço o máximo. Disseram-me “com certeza, Sr. Firmino!”, e eu tenho quase a certeza que era o Fernando Mendes a falar. O tipo d’ “O Preço Certo em Euros”. Euros é com ele. Ele até parece um mealheiro. Um tipo porreiro, nada pode correr mal.
Já tenho o dinheiro comigo. É muito dinheiro, mais do que eu e a patroa ganhamos em 3 ou 4 meses. O miúdo está deslumbrado. A miúda já escolhe vestidos de noiva por catálogo e quintas deslumbrantes para o copo-de-água. A patroa em estado de euforia. Até a sogra não reclamou. É dinheiro rápido, é dinheiro fácil, adoro esta sociedade de consumo. Vou poder ser como os outros colegas. Vou ser feliz. E vou poder exibir todo o meu estatuto diante desse Sr. G., que é para ele calar-se duma vez com essa história do “coveiro”.
Que ideia. O tipo do crédito é uma jóia de pessoa. E agora vou estourar o dinheirinho, esfregar as mãos em novas mercadorias. Quando tiver de pagar tudo de volta já serei uma pessoa mais feliz. Afinal, o que é que pode correr mal a este humilde endividado?

quarta-feira, outubro 03, 2007

Como Se Pintam as Unhas dos Pés

- Viste o vestido dela?
Vânia contempla a sua ternurenta patinha tamanho 36 após uma demão do novel verniz dum conceituado laboratório francês.
- Horroroso.
Gracinda saboreia a acidez do adjectivo. Deixa que a qualificação negativa percorra lentamente todos os extremos nervosos do seu cérebro, sem escapar nenhum. Assim sabe melhor. Qual escanção do escárnio, há que saber apreciar a forma de diminuir terceiras ausentes. E este “horroroso” é das melhores castas. Como é delicioso conspirar.
- Deplorável.
- Ela tem um gosto terrível. Sempre teve.
- Só mesmo ela para comprar aquele traste!...
- Parecia uma matrona da feira.
Ainda mal refeita da anterior injecção onanística de maldizer, Gracinda explode numa gargalhada tão forçada quanto breve e sonora.
- AHAHAHAH!!! E que matrona!!! Será que não tem espelhos em casa, a tipa?
Assim mesmo, que é para todos saberem o quão Gracinda desgosta da outra. É sensacional arranjar aliadas que partilhem as mesmas mini-guerrilhas pessoais. O cheiro do verniz abafava-se por sopros na direcção das unhas, agora num tom carmim forte. Vânia tinha outros alvos, contudo.
- Mas olha que o cabelo da prima dela…
- Ui! Sabes que ela anda zangada com o Marcelo?
As unhas ficaram arredadas de atenção. Vânia arrebitou as sobrancelhas. A intriga que se avizinhava bem que exigia toda a sua concentração. Para que se querem as amigas? Para dizer mal das outras. As outras dirão mal dela. E ela, no centro desta teia de bisbilhotice, ocupa o lugar central, fazendo sempre o melhor do melhor. É tudo um jogo recíproco de troca de galhardetes. Se é segredo, há que divulgar. O que é evidente simplesmente não interessa. Considerem-se num mercado de informações pessoais onde a frontalidade não é, de forma alguma, valorizada. Onde a fachada é muito iluminada mas o interior está cheio de cuspo e vísceras prontas a rebentar. O breu da alma vai emergindo por sobre o matiz do verniz.
- Não me digas…
- A sério. O Marcelo já não pode com ela. Noutro dia, passei por eles no Shopping…
- O Shopping W, não?
- Claro, só vou a esse. Os outros são detestáveis.
- Simplesmente pavorosos, filha. De fugir. Eu faço como tu.
Não que Vânia não soubesse que Marcelo já andava chateado há muito com a prima da outra. Nada disso. Mas podia acontecer que Gracinda soubesse qualquer coisa mais. Não que Vânia não soubesse que todas as suas amigas iam ao Shopping W. Não. Havia que dar uma colher de chá à amiga de circunstância, uma pequena achega de proximidade para que ela se sentisse plenamente confiante para contar mesmo tudo.
- Mas ia eu a dizer, noutro dia passei por eles no Shopping… e o Marcelo estava cá com umas trombas… Ela estava muito nervosa quase a gritar com ele… a sério, só mesmo aquele panhonha do Marcelo para aguentá-la com todo aquele mau feitio…
- Bem, ela tem um feitiozinho… vai lá vai… tanto ela como a irmã, a gorda das camisolas largas… que par de amostras…
- Ouvi dizer que o Marcelo já deu umas facadinhas por fora…
Gracinda sabia mais do que apenas “ter ouvido dizer”. Sabia que Vânia tinha estado com Marcelo, tinha sido a própria cunhada do Marcelo, a irmã gorda da prima da outra, a revelar-lhe – jurou que viu Marcelo a sair do prédio dela. E as gordas não mentem. Vânia tinha sido muito permissiva numa casualidade quotidiana – deixara que Marcelo carregasse as suas compras até casa, após deixar cair o saco das conservas mesmo aos pés dele. Deixou que ele entrasse. Depois fechou a porta. Alguma coisa se passara, o ar de Marcelo transformou-se a partir daquele momento. Gracinda sabia que Vânia iria acusar o remoque. Já com o pé esquerdo pintado e quase seco, Gracinda fecha o frasco do verniz e lança um olhar penetrante para Vânia, que se debate com o 3º dedo do pé direito.
- Bem capaz disso é ele!
Gracinda sorri de forma amarela. Vânia não se descoseu. Mas a forma como ela não levantou os olhos do seu pé e como percorreu o pincel do verniz recorrentemente sobre a mesma unha, aplicando-lhe sobrecamadas desnecessárias, esclareceu implicitamente Gracinda. O tom ríspido da resposta, o desinteresse fictício e teatral de Vânia também ajudou. E a Gracinda bastavam-lhe estas pequenas sensações, ligeiras pistas, discretos detalhes, para confirmar as suas suspeitas. Todos os detectives deviam ser mulheres. Gracinda insistiu, num sádico prazer que afligia Vânia, desesperada por não ter mais que cinco dedos por pé aos quais se dedicar:
- Ele está muito bem conservado para a idade, trata-se bem… e dizem que tem muito dinheiro…
- Dizem que sim… Passas-me os algodões?
Vânia não estava a gostar do rumo das coisas. Pressentia que Gracinda sabia algo e que a iria espremer para revelar coisas proibidas. Quem lhe mandou falar na prima da outra? Era dessa personagem que Vânia queria saber coisas, de forma a acicatar Marcelo numa eventualidade futura. Do Marcelo sabia ela bem. Erro primário número um: nunca se refere directamente aquilo que se quer, deixamos que as outras suponham. Mas Gracinda não queria afastar-se de Vânia, podia ser-lhe útil no futuro. Vânia não seria uma amiga a 100%, mas como inimiga é que não. Havia que inflectir a direcção da conversa e deixar os seus prazeres inquisitórios para outra ocasião.
- Toma lá… os algodões estão caros, não achas?
- Caros é a favor! Estão caríssimos!
- Tens mais alguns que me possas emprestar?
- Estás com sorte porque apanhei umas dúzias em promoção.
- Fantástico!
- Está tudo tão caro hoje em dia…
- Se está… com 100 euros já não consigo ir ao cabeleireiro e depilação e depois passar pelo Shopping W e comprar uma mala decente… custa tudo os olhos da cara!
- Eu comprei estes sapatos abertos anteontem. Combinam mesmo bem com a cor do verniz.
- Ai, que sapatos lindos! São tão giiiiiiiiiiiiros!!!
- Obrigada!
Estava tudo bem. Os sapatos são muito feios e não valem nem metade do seu exorbitante valor. Não há crise, apesar dos preços altos dos mecanismos cosméticos a que usualmente recorrem, porque os cartões de crédito continuam com plafonds aceitáveis. Para que servem os homens, afinal? Esses parvos podem achar que são imprescindíveis e insubstituíveis, mas no fundo são um mero troféu social da mulher. Da verdadeira Mulher Moderna. Com M’s maiúsculos.
E nada melhor que uma discussão sobre preços e moda para desviar as atenções.
Depois disto, um desconfortável silêncio. Os pés estavam finalmente pintados. As unhas dos pés pintam-se por vaidade, numa primeira fase; e por necessidade, numa segunda fase, onde não ter as unhas pintadas significa estar fora de moda. Pintam-se com cores fortes, que as cores fracas são da moda passada. Pintam-se com o instinto, em pinceladas mais ou menos rápidas, enquanto pela cabeça percorrem pensamentos e críticas várias a outras mulheres. Para fora, contudo, transparece uma imagem de harmonia e normalidade. Tudo é demasiadamente bom, nada é definitivamente mau. Porém, a realidade é quase sempre contrária. Segundo Gracinda e Vânia:
- Estão adoráveis!
- Adoro a tua cor.
- A tua também é espectacular.
Mas faltavam mais palavras. Gracinda aguardava ainda por uma cedência de Vânia. Vânia palpitava com um mistério que ansiava revelar, mesmo sabendo que não devia. A tentação provou-se irresistível.
- Admito, dormi com o Marcelo.
- Ahh! Não acredito!
Não havia surpresa. Antes uma satisfação camuflada, um palpite intimamente confirmado. Gracinda rejubilou com a sua vitória. Ansiava pela descrição que Vânia não podia recusar oferecer.
- Foi muito fácil. Ele estava a desejar outra mulher. Notava-se isso de longe. Foi só encostar-lhe a mão ao peito.
- E foi mesmo…
- Até ao fim.
- Até ao fim?
- Fizemos tudo.
- Tudo? Tudo mesmo?
- Não… Apenas tudo daquilo que é normal, evidentemente.
- E onde…
- No sofá da sala. Logo ali.
- E como…
- Fomos rápidos e disfarcei bem. O Marcelo adorou. O meu marido não deu por nada.
- Ahhh…
- Prometes que não contas isto a ninguém?
- É claro que sim. Nem precisavas de dizer… Sortuda!
Vânia sabia que o seu segredo estaria a salvo por pouco tempo, talvez o tempo suficiente para arranjar um contra-segredo de Gracinda ou para arranjar um álibi esclarecedor. Mas tinha recrudescido a sua fama de “femme fatale”, alargado a sua aura de “men eater” a níveis nunca dantes vistos – o ganho de prestígio instantâneo e de inveja dissimulada das outras mulheres amparava a aparente fraqueza de ter revelado algo de sigiloso da sua vida. Gracinda, por seu turno, tinha obtido um trunfo que poderia ser-lhe vital de futuro, pese embora a sua raiva interior por ter sido Vânia a felizarda e não ela mesmo, que emagrecera 2 quilos nos últimos meses e julgava-se mais apetecível do que nunca. Para além disso, muito importante, tinha agora um tema de conversa que iria despertar atenções nos cochichos surdos dos salões de beleza.
Novamente, um silêncio incómodo povoou o espaço destas pedicuras amadoras. Tinha sido proveitosa a sessão. Um segredo contado, um segredo sabido, eis como todas as partes ganham no eterno dilema do prisioneiro feminino. Além do mais, os pés pareciam óptimos, como que rejuvenescidos.
- E que me dizes da viagem da Verónica às Seychelles?
- Uma pindérica, essa mulher. Pediu crédito rápido para pagar a viagem. Não tem onde cair morta.
- E o marido dela?
- Um falido. Perdeu tudo num negócio de restauração.
- E o que eles percebem disso?
- Nada. Toda a gente faz de conta que percebe… e depois há alguns que se lixam.
- Detesto gente que se faz passar por aquilo que não é.
- Eu também. Hipocrisia não rima com a minha personalidade.
- Nem com a minha.