quarta-feira, agosto 29, 2007

A Terceira Geração

Cecília fotografa com o seu telemóvel como quem come um tremoço. Álvaro, à sua frente, faz-se à pose. Lá ao fundo, uma paisagem qualquer. Depois do clique, Álvaro está imortalizado em mega-pixels de alta definição. A importância subjectiva da fotografia digital é irrelevante.
Tudo é importante. Portanto, não há discussão sobre hierarquias estéticas ou temáticas. Estamos na 3ª geração. Fotografa-se tudo. Digitaliza-se ainda mais qualquer coisa. Transmite-se. Envia-se. Sublimam-se pormenores pela rede infinita. Toma lá, dá cá. Trocas e baldrocas em altas engenhocas.
Isto tudo só pode ser obra da graça de Deus.
Falamos. Ouvimos. Vemos. E não faltará muito para saborearmos ou cheirarmos. Já sentimos como ninguém. E toda uma panóplia de situações se nos revela, despida na sua essência: banhos orgásmicos proporcionados por sacrifícios sangrentos em orgias horrorosas de jet-set; bizarros golos improvavelmente auto-marcados no último minuto; estrelas moranguíticas a snifar cocaína na retrete duma churrascaria; barrigas de aluguer a pedir boleia numa estrada nacional onde embateu uma viatura ligeira com cinco passageiros, hoje fantasmas, frontal e cabalmente contra um sólido eucalipto que resseque o solo; políticos imensamente corruptos que dizem obrigado de forma quase litúrgica pela cruzinha que o velhote desamparado lhes presenteou nas urnas; enfim... Dói só de imaginar as possibilidades.
- Temos tudo – rejubila Cecília. Para ela, é imenso o gozo de poder captar desde a caganita do pássaro ao assassínio do presidente em directo. Cecília sente-se como que com poderes divinos. Ela pode estar e ser e registar e reviver e contar, tudo ao mesmo tempo. Partilhar sem reservas de espaço ou tempo as mais variadas peripécias, emoções, eventos, tudo aqui mesmo na sua mão, num pedaço de plástico envolvente de componentes semi-metálicos de tamanhos reduzidos. É este o poder, a vitória do progresso: cabe na sua mão a perspectiva de todo o mundo. Mesmo não sendo espiritual por aí além, Cecília reconhece que isto só pode ser a perfeição. Isto é Deus em nós.
- Ainda nos falta algo...– rosna Álvaro, sempre irascível e inquieto, desconfiado e descontente. Álvaro não se satisfaz com pequenos desideratos exibicionistas de trazer por casa. Mas admite, com ténue cobiça a humedecer-lhe os olhos, que já faltam poucos passos para a suprema perfeição. A tecnologia é poderosa, sim senhor, mas só isto não basta. A tecnologia faz-nos pequenos deuses em potência, é verdade, mas havia que dar o salto definitivo para nos assumirmos como todo-poderosos.
- Vamos Cecília… Temos de escolher: matar ou morrer! – impõe, duma assentada, Álvaro. Álvaro estava consciente do seu ultimato. A partir daqui, a inovação tecnológica era já um comboio sem retorno, acelerando freneticamente. Havia que escolher: ou íamos com ele ou nos perdíamos pelo caminho. Ficar para trás era impensável, era morrer. Ir em frente significava ir ter com Deus e aqui só podíamos matar, como Ele. Havia que ser poderoso como Ele, na opinião de Álvaro, embora Álvaro não quisesse ir sozinho. Álvaro advogava que Deus só destruía o que o Homem e a sua tecnologia construíam. Deus apenas concebeu e concedeu ao Homem a Natureza como teatro de operações. E a partir daí o Homem desenrascou-se apesar de Deus. Não o contrário. Houve sempre mais do Destruidor que do Criador. E não havia alternativas.
- Bolas, Álvaro… sempre tão drástico… de certeza que só temos essas saídas? – Cecília não parecia convencida. Ela, na figuração de Álvaro, estava alienada e iria sair abruptamente do comboio, entorpecida na sua felicidade. E nunca mais iria voltar ao admirável mundo novo. Iria ficar na penumbra dos subdesenvolvidos tecnológicos para sempre. Mas ela queria apenas desfrutar do hoje, ir à boleia, sem consciência dos perigos que Álvaro advertia. E escolhas nunca foram o seu forte.
- Livra, Álvaro… É tudo tão fácil hoje em dia… porque complicas?
- Eu não complico… Eu tento agir e não reagir.
- É-me tão difícil escolher… - encolhe-se Cecília, abismada com a possibilidade de Álvaro lhe retirar todo o conforto tecnológico.
- Vamos! – impacienta-se Álvaro – Temos o futuro para reconstruir e a tecnologia cabe nas nossas mãos! Temos de partir para um novo nível! - ou seja, Álvaro acreditava que todo este progresso tecnológico era inevitável e invencível, a arma do Homem para chegar a Deus e suplantá-lo. Não queria a tecnologia para mera diversão, mas para usufruí-la de forma cirúrgica. A tecnologia não era para divertir os simples nem era obra de Deus, era o inimigo de Deus, era um Satanás inteligente, pronta para usurpar o trono. Com a tecnologia redefiniria-se todo o mundo. Os detentores das rédeas tecnológicas seriam os novos deuses nesse novo mundo. A ordem actual deixaria de existir, Deus deixaria de estar no controlo das operações. E era Álvaro quem estava na vanguarda, ao leme. Ele sentia que o momento da reviravolta estava prestes a acontecer: estava tudo testado em binários e supra-binários, tinha tudo ligado em rede e todos os links possíveis e imaginários efectuados, todas as chaves e códigos e ligações a postos, tudo em standby, bastava um simples toque de telemóvel e teríamos o Novo Apocalipse Universal.
Cecília roi as unhas e pondera entre ser a nova rainha do mundo e passar os dias a falar no MSN. Necessita de uma opinião avalizada.
- Posso fazer uma chamada?
- Eu já sabia… Nunca decides nada sem Ele… Chama lá o tipo.
Ignomínia das ignomínias. A derradeira traição abateu-se sobre Cecília e Álvaro.
- Estamos sem bateria! – constata Cecília em pânico – E agora?!?
- Raios!!! – brada um zangado Álvaro – Temos de deixar tudo para depois! – e, desconsolado, Álvaro contempla o mudo aparelho que largou o seu último “bip” de falecimento na palma da sua mão. Encostou-o ao bolso, onde agora, em vez de poderoso exemplo tecnológico, era apenas um peso morto sem utilidade. Álvaro sentiu-se a minguar, parecia um pequeno meteorito apagado no chão, todos os seus projectos voaram. Mas Cecília reconfortou-o:
- Deixa lá. Estamos em casa e daqui a meia hora já temos o telemóvel com a bateria carregada outra vez.
Meia hora: uma vida inteira. O imediatismo tão característico da modernidade não se compadece com estas esperas. A Álvaro custa-lhe esta perfeição tecnológica intermitente, estas baterias que se gastam como palavras ao vento, toldando-lhe os grandes planos. Daqui a meia hora já tudo podia estar esquecido. Os cartões de memória enchem-se. As oportunidades evaporam-se. Deus ainda não deve ter entrado, definitivamente, na 3ª geração. E por isso vai sabotando todo o nosso potencial tecnológico, não concedendo a veleidade de jogarmos de igual para igual. Mas, quem sabe, um dia...

terça-feira, agosto 14, 2007

O Hiper-Pepino

Um pepino gigante deu à costa (passe a expressão). Tamanho registado por cientistas avalizados: aproximadamente 60 centímetros de comprimento. Muito centímetro de fruto (sim, o pepino é um fruto… mas se lhe chamarem vegetal, ele não se importa). É claro que tal fenómeno só foi possível… exacto, escusava de referir: Torres Novas.
Estava a brincar… é perto daí, na nossa Roswell.
Para além da enorme publicidade, o agricultor pode pensar: “Ena pá, temos aqui matéria que chegue para fazer uma boa caldeirada de pickles”! Mas não nos podemos deter somente dentro da esfera agro-alimentar.
Vejamos as reacções das mulheres e dos homens.

Uma ovação sentida no XIX Convénio das Feministas de Ribeira de Pena. Uma ovação de pé que durou minutos e sublinhou o encerramento dos trabalhos, subordinados ao tema “Cartão de Crédito – Mais Que Um Acessório de Plástico, o Nosso Pacemaker Social”. Nota-se um sorriso maroto nalgumas delas. Alguma expectativa e ansiedade. Uma ligeira acumulação de baba. Os pensamentos que invadem estas cabeças são inenarráveis, embora facilmente percepcionáveis. Os olhos arregalados dizem tudo. Existe uma forte convicção de que este hiper-pepino pode ser produzido em massa, para gáudio das mulheres. E porque é que este pepino é uma bênção? Porque é o mais desejado dos clássicos 2 em 1: o hiper-pepino é, simultaneamente, um enorme “dildo” natural e uma fonte de vitaminas, magnésio e potássio sempre bem-vinda em qualquer dieta. Disse “dildo”? Esqueçam. Queria dizer “fenómeno”. É que as feministas, bem vistas as coisas, não têm prazer – só ódio e inteligência em estado puro, a única capaz de entender a profundidade deste achado. Se notarem bem, lá ao fundo parece estar a Margarida Rebelo Pinto. Ou a Pinto Correia. Uma delas. Ou as duas. Estão encobertas. Com pena nossa.

Nas hostes masculinas, este foi o sentimento generalizado. É fácil de compreender a sensação de abandono. Tudo para que os homens sempre serviram o mundo feminino está posto em causa: a produção em massa destes hiper-pepinos tornará inútil o homem. O português caiu em desgraça, em primeira-mão. Mas a crise alastrar-se-á aos outros homens doutras paragens. Restam-lhes os bancos de esperma e esporádicas visitas às lojas de roupa dos centros comerciais, na qual farão o papel de observador e carregador de sacos. Serão as únicas formas viáveis de satisfazer as mulheres daqui em diante.

domingo, agosto 12, 2007

Quero Morder-te As Mãos

Já tenho os planos para a nossa vida a dois.
Uma moradia a quinze minutos do centro da cidade.
Precisa apenas de pequenas remodelações.
Nada que não consigamos suportar.
Um jardim aberrantemente verde para os miúdos.
Um cão.
Pastor alemão.
E um gato.
Preto e com muito pêlo.
Harmoniosos.
Uma cama de dossel.
Sumo de laranja pela manhã.
Espaço para o churrasco dominical.
Mobílias de mogno.
Cortinados acetinados.
Beijos de volúpia.
Carícias pela tardinha.
Sorvetes no Verão.
Chá quente pelo Inverno.
Cinema a dois.
Uma música ambiente no hall.
Flores garridas nos degraus.
Um sonho colorido.
Mas há uma coisa que deves saber.
Tudo na vida exige contrapartidas.
Eu sou um ser que aprecia irrevogabilidades.
E neste meu desejo não admitirei desvios.
Pretendo ver satisfeitas as minhas ousadias.
Quero que saibas concordar.
Não dramatizes.
A carne humana não é um exclusivo teu.
Obrigo-te apenas a certos sacrifícios.
A algumas cicatrizes.
A um leviano desprendimento moral.
A felicidade toma caminhos ínvios e diversos.
Esconde-se atrás das fachadas mais impensáveis.
Visita o inferno e o céu com a velocidade dum cometa.
Por vezes há que dar passos atrás para nos chegarmos à frente.
E por vezes o horror sabe-nos mesmo bem.
Vem por bem.
Vem-te a bem.

sábado, agosto 11, 2007

Ursos

Tantos fazem muito pouco. Mas, vê bem, é a tua figura. Refresquei o meu amor numa nupcial paisagem insular. Agendei noites fantásticas nas bermas dos nossos belos e mortais asfaltos, inalando benzina e outros derivados petrolíferos. É bom. É prolífico. É profiláctico. Bem te vi a olhar-me de lado quando me ultrapassavas no túnel. Olhas para a direita, piscas o olho à indiferença quando metes a quarta. Venha ela, caiam as cotações, vai ser golo à mesma. Tens o seguro de vida e uma mola ejectora nas tuas solas que nem sabes se funciona. Nunca foi preciso, mas vale ouro. Tudo corre mal aos outros. Tu e tu e os teus amigos e alguns amigos deles não podem estar errados. Eis o predador urbano. Eis a periferia do restrito círculo da moda. Instalas-te confortavelmente sob a guilhotina e acenas olás à sociedade. Boca cheia, boca mole, eis o meu novo furo. Espuma mental em ebulição. Não faz mal. Pensei com muito querer e creio ter querido demais, querida. Diz que se chama Beatriz. Bernardo. Leonor. Rafael. Leve com mais esta gravidez. Publicite o incesto e a procriação consanguinamente assistida. Tentações sexuais em dígitos etéreos pulsam na redoma do meu quarto. Uma dupla terça-feira afinal sabe a quinta-feira. É surrealismo grátis. Viva amanhã. Descobri nada. Quero ser como ele. Quero uma ortodontia ortodoxa para me expurgar em reuniões de antigos alunos. Assim como assim. Dá cá aquela palha. Põe-te na fila e deixa a tua avó a marcar o teu parqueamento. Na TVI vende-se parvoíce ao pixel quadrado. Bem barato. Crédito fácil. Já está. Crianças e adultos, juntos cavamos covas para os outros mortos poderem ter uma casa moderna. Gosto de focas e de pás e de abraços de sangue. Peluches e cantos de sereia substitutos da realidade. Isso já era. Isso talvez nunca tenha sido. Não quero ouvir. Não quero falar. Partamos à caça do caçador nos nossos sonhos mais secos.

terça-feira, agosto 07, 2007

Assassinos Natos

PÁS!
Geraldo – O que foi isto?
Heliodora – Matei um mosquito.
G – Bolas, Heliodora! São 8 da manhã, ainda estava a dormir e já andas a matar!...
H – Querido, sabes bem que eu não descanso. Quero é matar, matar, matar!
G – E já sabes quem vamos matar hoje?
H – Quem é que matámos ontem, que já não me lembro?
G – Eh pá, assim de repente não estou a ver… sei que almocei umas febras grelhadas que estavam um espectáculo!
H – Bem boa foi a pescada cozida que jantámos!
G – É verdade, ganda pescada!... Já não comia peixe assim desde o dia 7 de Outubro de 1995, quando fomos a Setúbal, lembras-te?
H – Então não? Foi naquele restaurante com vista para a Arrábida, fazia um solzinho bem quentinho para a época e até te esqueceste dos morteiros no banco de trás do carro… Mas há algum peixinho assim que se esqueça?
G – Ainda parece que sinto esse sabor… Hmm-hmm…
H – Mas quem é que matámos ontem, pá? Não estou a ver…
G – Não foi o Herman José?
H – Estás parvo, pá! O gajo ainda está vivo!
G – É capaz de estar, é… Então não foi aquele professor que defendeu a regionalização no fórum da TSF?
H – Não, Geraldo, isso já foi há mais tempo… Foi para aí na semana passada…
G – Ah, já sei! Foi o vereador de urbanismo da Câmara!
H – Foi?
G – Então não foi? Mandámos-lhe com 3 balázios à queima-roupa na porta da Câmara e depois pendurámos-lhe num andaime da construção daquele mamarracho junto ao rio, que era para toda a gente ver!...
H – Ah, pois foi! Que cabeça a minha!...
G – Então e hoje, quem é que vamos matar?
H – Sei lá… Queres o quê? Matar mais alguém com pretextos políticos?
G – Eh pá, estou a ficar um bocado farto de matar pessoal com pretextos políticos… Já executámos para aí umas dúzias de presidentes de Câmara, ministros, assessores, grandes empresários, polícias e juízes… Já me incomoda a ideia de ser um ícone para aquela cambada da extrema esquerda e direita, que nos toma como uns “libertadores”, “heróis da luta contra a opressão”, “revolucionários” e cenas do género…
H – Podes crer. Não há nada mais chato de que gostarem de nós…
G – Nada pode ser mais enjoativo de que o amor das massas, querida…
H – Então e se matássemos uns inocentes quaisquer? Sem qualquer justificação? Nem para extorquir um resgate nem nada, matar por matar?
G – Pode ser. Para variar. O que sugeres?
H – Tipo… Não sei… Uns turistas no metro… Ou umas crianças desfavorecidas…
G – Olha, vamos aniquilar uns velhos no jardim, só para distrair. Até vai ser bom para eles, com as reformas que ganham mais vale estarem mortos…
H – Pode ser! Vamos ali ao jardim, interrompemos o jogo de sueca quando alguém fizer renúncia e desatamos aos tiros!
G – Eh pá, aos tiros não. Temos poucas munições para a metralhadora… vamos explodir com o jardim todo com umas granadas!
H – E se os raptássemos e os decepássemos com um machado num bairro degradado, à moda antiga? Depois enviávamos as cabeças num saco de plástico para as famílias, com um bilhete a reivindicar a nossa autoria…
G – Isso dá muito trabalho, querida! Já viste, termos de saber aquelas moradas todas… Vamos é deixar os cadáveres logo ali e depois as famílias que se desenrasquem…
H – És tão perverso, querido…
G – Faço o meu melhor, querida… Espera lá… Que barulho é este? Parece que estão a raspar na nossa porta!
H – Queres ver que é a bófia?
G – Não pode ser! Almocei com o inspector há pouco tempo e ele disse-me para estarmos à vontade, ninguém nos ia chatear… passa-me aí a catana oferecida pelo general guineense que já lhe trato do sebo!
H – Tem cuidado, amor…
G – Olha… é um cãozinho numa alcova cor-de-rosa! Alguém o abandonou aqui!
H – Tão giro!
G – Como é que é? Mato-o já aqui?
H – Não sejas bruto, Geraldo! Como és capaz de maltratar este animal tão fofo? Olha lá para ele, está a ganir e tudo… tão giro, tão giro, tão giro! Não gostas dele?
G – Bem… reconheço que o cachorro é engraçado… Olha lá! Está a lamber-me e tudo!
H – Ahhh! Que amoroso! Ele gosta de ti!
G – Eheh! É esperto, o sacana!... Vamos adoptá-lo!
H – Sim! Adoptemo-lo! Como é que o vamos chamar?
G – Eu gosto do nome Piloto. Ou Piruças.
H – Ah, eu preferia algo mais simbólico e condizente com o seu aspecto… que tal Belzebu ou Mafarrico?
G – Ivan, o Terrível, não gostas?
H – Ivan! Óptimo! Ai, ele é tão querido!
Ivan – Auf! Auf!
G e H – E já fala!!!! Oooooooh!!!...
G – Quem é que seria tão maldoso ao ponto de abandonar esta criatura indefesa?
H – Há gente muito má neste mundo, não achas, querido?
G – Gente sem juízo nenhum, querida.
H – Bem, mas temos uns velhos para matar, não temos?
G – Sim, o trabalho espera-nos. Traz lá umas cordas e uns machados e vamos lá despachar estes assassinatos, que é para estarmos em casa cedo e tratarmos do Ivan.
H – … mas temos de passar primeiro no supermercado, para trazemos comida para ele…
G – … e, já agora, compramos-lhe uma casota à maneira.
H – Podíamos aproveitar e matávamos o pessoal do supermercado com um gás venenoso, assim escusávamos de gastar dinheiro!
G – Grande ideia! És pérfida, Heliodora. Estou orgulhoso de ser o teu companheiro no crime.
H – Dás-me um beijinho antes de pegarmos ao serviço?
G – Todos os que tu quiseres, querida. Eu amo-te, querida.
H – Eu também te amo, querido.
CHUAC!

segunda-feira, agosto 06, 2007

Ao Avançado Desconhecido

Penalty.
Protestos, assobios, confusão, aglomeração de jogadores em torno do juiz. Decisão irreversível, inapelável. Está marcado. Bola aos 9,15m. Guarda-redes na linha. Jogadores a postos na linha da grande área. Agitação indubitável. O cronómetro assinalava o último minuto da última jornada.
- Se fosse o Bartolomeu a marcar, nem valia a pena este ritual; era golo certo.
Mas Bartolomeu estava noutro campo, a quilómetros de distância. Sozinho. Marcando golos solitariamente perante as bancadas despidas, ao lusco-fusco. Redireccionando o esférico uma, duas, três, múltiplas vezes em direcção às redes desertas. Remarcando o golo da sua vida por mais uma ocasião. Festejando o momento inesquecível da sua glória num campo vazio, apenas com a companhia do vento.
Bartolomeu estava fora-de-jogo. Mas não havia bandeirinha nem árbitro que o sancionasse. Nem público que o assobiasse ou o ovacionasse, ninguém de todo. Mais que um simples fora-de-jogo, Bartolomeu estava fora do jogo, tanto em termos espaciais como temporais. Em movimentos melancólicos e nostálgicos, repetia o movimento da sua vida, repisava o trilho da sua efémera glória só para si.
As ovações já lá iam. Foram estrondosas naquela tarde de decisões. Bartolomeu construíra a imagem do goleador frio. Quando o peso dos nervos se acercou e quando o jogo tomou os caminhos de vida ou de morte, Bartolomeu impôs-se. Ele cresceu quando todos tremeram perante a pressão dos grandes momentos. E, naquela tarde, Bartolomeu correu sozinho em progressão pelo flanco direito desde a linha de meio-campo; torneou um médio, desviou-se doutro médio com um toque de classe em velocidade, sentou o lateral à entrada da área, fez instantaneamente um túnel ao central que foi ao seu encontro, deixando-o a arrastar-se pelo chão, e, cara a cara com o guarda-redes, quando a multidão roía as unhas ou se levantava em antevisão do golo iminente, em vez de o fuzilar, picou-lhe a bola por cima e o guarda-redes, embasbacado, ficou incapaz de reagir, ajoelhando-se no chão e contemplando a trajectória da redondinha, calma e docemente a anichar-se nas redes. Foi a glória. Último minuto, vitória certa.
- Que classe.
- Que calma.
- Que golo fantástico.
- Um iceberg humano.
Depois dos imediatos e incontáveis elogios, mil imagens e metáforas se construíram à volta do herói da bola. A do iceberg colou. Passada a euforia, Bartolomeu derreteu penosamente perante o brilho doutras jovens estrelas que entretanto foram chegando. A vitória proporcionada por Bartolomeu abriu as portas do seu grémio à fama e ao dinheiro. As coisas ficaram mais fáceis. Os velhos mitos foram forçados a sair dos seus pedestais. Bartolomeu reforçou as suas ligações com o banco de suplentes, numa primeira fase, depois conheceu o frio das bancadas, e, por fim, a porta de saída do estádio, por onde todos entravam para ver os seus novos ídolos refulgirem. O iceberg Bartolomeu ficou apenas na memória dos mais velhos. Derreteu-se definitivamente após consecutivas lesões, consecutivas oportunidades perdidas, consecutivas bolas que lhe fugiram pelas linhas laterais ou finais, apitos que nunca apitaram faltas por ele sofridas, guarda-redes espertos e ágeis que lhe sorriam jocosamente com a bola nas suas mãos.
E hoje, na ressaca do êxito, houve alguém que falou em Bartolomeu, na altura do penalty decisivo. Era uma hora de angústia. Era o momento da catarse final, depois de todos os excessos recentes. Ou se continuava a ser ou se deixava de ser. Podia ser o ocaso de uma era. Alguém se lembrou de Bartolomeu, como alguém se lembra de Santa Bárbara na hora da tempestade. Mas Bartolomeu ainda estava no campo antigo e abandonado, revivendo o grande momento de anos passados.
- Quem é o Bartolomeu?
Quando o avançado, tenso, partiu para a bola, Bartolomeu olhou para a baliza deserta da linha de meio-campo e voltou a correr, driblando adversários imaginários, revivendo a imagem que sempre ficara intacta na sua mente – um toque para aqui, outro para ali, a mudança de velocidade que deixara todos impressionados. Quando o avançado tocou o esférico naquele segundo decisivo sob os holofotes, Bartolomeu acariciou ternamente a velha bola de cautchu por baixo e fê-la subir, naquele plácido entardecer, até junto da barra ferrugenta, roçando as teias de aranha. No estádio repleto, a multidão não queria acreditar. O guarda-redes deitado no chão agradeceu à sua sorte. A bola, pontapeada com violência, sem grande jeito nem fé, zurziu por cima da barra. Foi parar ao desconhecido. Falhanço clamoroso. Mãos nas cabeças. Desolação. O recolher das bandeiras. O silêncio caótico. A incredulidade insuportável. O fim.
No campo deserto, a vetusta bola agradeceu, outra vez, o contacto com as redes rasgadas. Bartolomeu foi quem marcou aquele golo. O seu golo.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Jornal de Negócios

UBS revê em alta preço-alvo do ceguinho gordo do Metro para 0,8 € por esmola – afastada que parece a hipótese de fusão com o miúdo cego malcriado que improvisa raps com a sua bengala e gaita-de-beiços e dada a recente, e crescente, especulação de uma possível parceria estratégica entre o ceguinho gordo e a velhota com os olhos cosidos, a que não será alheia a reunião entre estes dois anteontem na estação de Arroios, a UBS alterou o sinal das acções do ceguinho gordo de “desviar” para “dar esmola”. Fredrik Upyours, representante da UBS, refere que “o mercado estava a penalizar a amizade entre o ceguinho gordo e o miúdo malcriado, como atestam as recentes descidas das esmolas para o primeiro” e “vê com bons olhos” aquilo que considera ser uma “estratégia sensata” do ceguinho gordo, aproximando-se assim daquele que considera ser verdadeiramente “o seu público-alvo”.
Paralelamente, a UBS mantém a recomendação de “ignorar” para o miúdo malcriado. Upyours explica este pessimismo: “Depois de uma primeira fase de grande euforia, o miúdo malcriado enveredou por uma estratégia de rima fácil e ritmos repetitivos, aliando a tudo isto uma nítida falta de visão estratégica, ao optar por insultar os transeuntes à saída do Metro. Esta má performance reflectiu-se no decepcionante EBITDA do miúdo malcriado no 1º semestre de 2007, cerca de 22% abaixo das expectativas do próprio, ou seja, cerca de 5,85 € médios de esmola por dia contra os 7,5 € inicialmente previstos no seu plano de negócios apresentado ao público nas escadas da estação do Martim Moniz em Novembro de 2006.”
O miúdo malcriado escusou-se a comentar estas notícias, revelando-se apenas “optimista quanto ao futuro”, mesmo sabendo que está a perder quota de mercado para jovens romenos acompanhados por um acordeão e por um cão rafeiro. “Sei que sou competitivo e devo encarar a entrada de novos players no mercado de esmolas não como uma ameaça, mas sim como uma oportunidade”, afiançou.

Pedro Barbosa inaugura confeitaria de éclairs – “É com orgulho que lanço a primeira pedra deste investimento que irá criar cerca de 5 postos de trabalho directos e um número indeterminado de postos de trabalho indirectos, entre dentistas, esteticistas e clínicas de peso, entre outros”. Foi assim que Barbosa se dirigiu aos convidados naquele que foi o lançamento simbólico da sua primeira confeitaria de éclairs em Riba d’ Ave, Vila Nova de Famalicão. Depois do sucesso tremendo que foi a sua primeira experiência empresarial – a fábrica de croissants Langão, em Salvaterra de Magos – este passo surge “naturalmente”, segundo Barbosa: “Sentia-me um pouco enjoado de tantos croissants, mesmo após ter experimentado várias massas folhadas e recheios diversos. Rodeei-me por vários e ilustres gulosos e concluí que teria de avançar para outras áreas de negócio na doçaria, sob pena de me sentir asfixiado. O alargamento para novos mercados foi inevitável”. A opinião de Quinito figurou entre as vozes ouvidas por Barbosa? “Certamente”, confidenciou. “Quinito é uma autoridade na matéria, um valor seguro na prova de doces, e fiquei extremamente satisfeito por poder contar de novo com o seu aconselhamento, depois do sucesso do seu primeiro conselho”.
Inicialmente, a fábrica, que estará concluída, à imagem da velocidade que Barbosa propagou nos relvados, lá para 2020, na melhor das hipóteses, irá produzir éclairs recheados com doce de ovos ou chantilly e com cobertura de açúcar branca ou achocolatada, “sem corantes, mas com algum aspartamo de última geração, aproveitando a boleia dos recentes desenvolvimentos tecnológicos”, não estando posta de parte a confecção de rins ou até mil-folhas. Porém, e para já, Barbosa não admite precipitações: “Um passo de cada vez, um éclair por cada sobremesa”. Os éclairs irão abastecer sobretudo a zona norte, mas um acordo de distribuição assinado com Luís Vidigal, seu ex-companheiro do Sporting, poderá, com sorte, levar os deliciosos éclairs Barbosa até abaixo do Mondego.

Crise no mercado dos corta-unhas está para durar – Anselmo Sabugo, líder da Associação dos Corta-Unhas, Pinças e Rebarbadores (ACUPRE), urge o governo para tomar “medidas de emergência” para salvar o sector, outrora o principal dínamo económico da Rua Projectada ao Ângulo Esquerdo, em Sever do Vouga. “A principal causa é o stress: as pessoas roem-se todas e não necessitam de adquirir os nossos produtos”. Nem os avultados investimentos na modernização, de que são exemplo a novidade do corta-unhas com fragrância a alfazema ou de promoções como “leve um corta-unhas e veja o Benfica ao vivo (na tasca da sua zona)”, parece ter animado o sector: “Uma miséria”, lamenta-se Sabugo. “Quer dizer, os nossos clientes são, regra geral, miseráveis, mas esta miséria é mesmo do car***o”, admite. E que medidas propõe que o Governo tome? “Uma de duas: ou um enorme subsídio a fundo perdido, com dinheiros que vão arranjar sabe-se lá onde, não me interessa; ou a atribuição de um emprego para mim numa repartição pública. Assim, como isto está, é que eu não aguento. Tenho as minhas viagens para fazer e os meus carros de alta cilindrada para abastecer”. E se o Governo não fizer nada? “Estou a estudar a hipótese de me suicidar em directo no programa das 10”. A ACUPRE estima que os problemas psicológicos decorrentes desta crise estão a alastrar-se a todos os fabricantes de corta-unhas, existindo já cerca de 65% de administradores “com falhas gritantes de imaginação para inventar facturas falsas”.

Mantorras é o novo CEO não-executivo da Siderurgia Nacional – numa arrojada remodelação organizativa, a Siderurgia Nacional cooptou o avançado angolano Pedro Mantorras para seu novo CEO não-executivo. Uma fonte ligada à Siderurgia revelou que “esta designação insere-se na nova filosofia de marketing da empresa, apostada em adquirir uma imagem mais moderna e menos, digamos, enferrujada, junto do grande público”. Pedro Mantorras, apesar das suas fracas qualificações académicas e do seu parco poder goleador, é conhecido por ser a estrutura metálica mais famosa das imediações do Colégio Militar e pelo poder de motivação junto de franjas mais embrutecidas da população. As peças do angolano já foram avaliadas em cerca de 90 milhões de euros, mas nesta altura Mantorras deverá apenas receber uma quantia não revelada de óleo para as juntas e de dispositivos anti-magnetizantes.
Mantorras, neste seu novo cargo que foi criado especialmente para ele, não terá sequer que comparecer nas reuniões do Conselho de Administração. A mesma fonte apontou que o grande e único objectivo é que Mantorras “consiga dar uma dúzia de passos consecutivos em cada aparição pública, o suficiente para garantir a atenção de cerca de 6 milhões de pacóvios”. No longo-prazo, espera-se que “Mantorras seja reconhecido mais como produto metálico de características humanóides” do que como “um ex-avançado trapalhão”, algo que deverá garantir à Siderurgia “para além duma publicidade monstruosa e barata, o direito a um subsídio comunitário pelo investimento tecnológico, no âmbito dos Quadros da Apoio da UE actualmente em vigor”.