sábado, junho 28, 2008

A Brigada Canibal

Acabou-se o problema do sobrepovoamento das prisões. Chegou a nova elite policial, a brigada canibal.
Como o nome indica, estes agentes dedicam-se a apreciar a suculenta carne humana, em valentes dentadas nos facínoras por eles capturados. Os efeitos nos corpos dos delinquentes estão à vista de todos os que passam pelo Aleixo, Intendente ou Bela Vista.
O ex-proprietário da discoteca “Lambapiço”, um travesti com antecedentes criminais, que traficou borrachas verdes da Pelikan recheadas de cocaína e liderou de um pequeno grupo que praticava carjacking nas boxes das competições de karts, veio a terreiro acusar os meios alegadamente nada suaves infligidos pela insaciável brigada. É vítima típica da nova forma de exercer a autoridade.
“Roeram-me a perna!”, exclama num pranto compreensível; afinal, tinha-lhe sido arrancada uma fatia substancial do seu presunto sem recurso a qualquer anestesia. “Bandidos! Não há direito! Ahhhhhhh!!!!”, aflige-se o pobre travesti, agora que o sangue perdido começa a provocar-lhe tonturas e uma sensação levemente agoniante revolve-lhe o estômago quando parece ver a sua própria tíbia a sorrir-lhe à luz do dia, despida da sua cobertura de tendões e gordura dolorosamente arrebatada pela polícia canibal. Desespera por um analgésico, mas o máximo que os populares que o circundam possuem é um laxante e um rebuçado Floco de Neve. A intervenção das forças da ordem fora relampejante e apanhara de surpresa todo o bairro, entretido que este estava a incendiar contentores do lixo na via pública e a disparar inocentes tiros para o ar. A carrinha parou a escassos metros do grupo onde se encontrava o travesti e logo os membros da brigada, fulminantes, irromperam da carrinha. Consta que houve um agente corpulento que se atirou com um instinto assaz leonino à perna do incauto travesti e fincou-lhe os magníficos caninos na sua carne apimentada pelos altos e baixos de uma vida de desventuras. Qual tigre, paralisou a vítima e puxou o naco da perna do travesti, que, impotente, arregalou os olhos com choque e a extrema aflição da situação. Então, a polícia, gregária, reuniu-se e banqueteou-se com a caçada, satisfeita por ter castigado um delinquente. Também ficaram visivelmente agradados com a qualidade da carne, algures entre a qualidade da carne de avestruz e a de javali, mas mais doce. O agente Carrasqueira jurou mesmo que sentira um ligeiro travo a tomilho. Chuparam os dedos para bem aproveitar todo o resquício do sangue do marginal e sorriram, levando as suas demoníacas gulas aos píncaros do prazer. O travesti, ainda à espera das ligaduras, acusou a prática de “brutal. Isto não se faz nem a quem viola criancinhas de 5 anos”.
O comandante da divisão canibal, o tenente-coronel Salgado, fora consultor gastronómico do Burger King, mas aos 25 anos constatou que faltava algo na sua vida. E então converteu-se à antropofagia. Mas mesmo assim, Salgado sentia um vazio qualquer que urgia preencher. Inscreveu-se na polícia e logo se destacou quando mordeu o primeiro-ministro sueco no ombro aquando da sua recepção oficial. Refeito das críticas, deu o salto definitivo quando, sozinho, dominou à dentada um par de assaltantes de um banco na Baixa da Banheira. Ficou famosa a sua imagem a molhar o mindinho de um dos meliantes numa taça de mostarda. Agora, no conforto do seu gabinete, ladeado de arcas frigoríficas que conservam pedaços humanos de foras-da-lei ilustres, como os túbaros do um ex-membro da Gestapo e os tornozelos de um árabe terrorista, discorre com simpatia sobre os feitos da sua brigada. “Somos sensíveis, como qualquer pessoa. Mas gostamos de comer tripas de pessoas de meia-idade”. Não seria esta uma prática no mínimo pouco civilizada? “Não. Isso era dantes. Agora comemos tudo com sal e levamos sempre os babetes. Ninguém se suja”. Pouco dado a discutir os pontos eventualmente mais polémicos, “isso são insinuações de gente ignorante e insonsa”, o tenente-coronel prefere enaltecer os grandes méritos da sua tropa: “diminuímos em grande número as prisões domiciliárias e o grau de ocupação das penitenciárias decresceu drasticamente – lembro-me que fomos convidados para um mega festim em Alcoentre aqui há uns meses e demos cabo das alas A e B numa só noite. Enfardámos… como verdadeiros canibais! Até as cabeças chupámos! Houve uns quantos oficiais que esgotaram o stock de Água das Pedras, tal a congestão!”, lembra-nos, orgulhoso. E como é comer um vadio? “Geralmente, não como a cabeça, tem pouco conteúdo. Prefiro as miudezas e talvez uma costeletazita. Temos já um certo nível de requinte culinário. Aprecio mais os pretos, são mais selvagens e têm um sabor mais exótico. Mas o que dá mesmo gozo são os criminosos de colarinho branco. Têm mais gordura. O advogado Peres de Azevedo, aquele gatuno, era bem tenrinho. De uma vez comemos-lhe uma parte do pescoço, mas à segunda vez o roubo dele foi maior e comemos-lhe as pernas. Fizemos um grelhado maravilhoso mesmo lá na Ordem dos Advogados, espectacular, tudo pacífico, tudo perfeitamente controlado. Pelos vistos nunca mais roubou nada. O que é pena, porque acho que os braços dele também são deveras apetitosos”.
Ou seja, toda a gente parece estar satisfeita. A polícia, porque o crime não pára e motivos para uma boa refeição nunca faltaram. Os agentes estão felizes e convivem muito mais, agora que já é permitido assar um burlão no espeto. Os cidadãos sentem-se mais seguros ao ver os ladrões mutilados, coxeando ou arrastando-se pelas ruas da cidade em cadeira de rodas, desmembrados e decepados, cicatrizados e permanentemente inválidos em filas de espera dos centros de saúde ou à porta de farmácias. E os próprios ladrões, lá no fundo, sentem-se apreciados e desejados, algo que faz maravilhas à sua auto-estima. “Eu já pensei cá para mim: Nelito, tu podes tentar violar a amiga da tua filha que tudo te vai correr bem. Se conseguires e não fores apanhado, voltas a violá-la; se fores apanhado, a brigada canibal dará certamente um bom uso às tuas virilhas. Não tenho nada a perder”, declarou Cornélio Araújo, um perigoso assediador já maneta, cuja carne, garante o tenente-coronel Salgado, “promete fazer crescer água na boca de toda a esquadra. Já o imagino assado no forno com um raminho de salsa”.

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