domingo, setembro 14, 2008

Olá Gatinha

As escolas preparatórias, secundárias, 2+3 ou C+S, como quiserem chamá-las, constituem um universo muito peculiar dentro do próprio universo. Ou constituíam, não posso falar da actualidade das escolas públicas com a revolução tecnológica e todas as novas potencialidades de ocupação de tempo que isso trouxe aos jovens de hoje. É claro que quando andávamos por lá a areia da ampulheta tardava a escorrer – que é como quem diz, nunca mais nos ejaculávamos, nunca mais tínhamos um bigodinho ou até mesmo borbulhas que nos pudessem guindar ao patamar mínimo da adolescência a partir do qual conquistaríamos as meninas cujas maminhas se começavam a fazer notar. Todavia, olhando para trás, todo aquele tempo que parecia infindável de mochila às costas e de leitinho com chocolate a meio da manhã ou da tarde foi fugaz como um relâmpago, embora pleno de historietas e personagens. Todos temos algo desse período que teima a ficar marcado indelevelmente nos nossos livros de memórias.
Se analisarmos bem, as personagens com quem convivemos têm muito de intrigante. Naquele tempo, éramos todos mais ou menos iguais: mais um casaco fixe ou não, um bocado mais gordos ou não, mas todos relativamente semelhantes, com os mesmos sonhos e esperanças. Hoje, se ainda mantivermos o rasto de alguns, vemos quão diferentes foram os caminhos que tomámos. E algures na linha do tempo, contudo, partilhámos espaços e tempos de profunda folia, de aventura desbragada ou de estaladas e pontapés a correr à volta do pavilhão. Esse tempo não deixou ninguém indiferente. Pelo menos, os que ainda têm acessos de nostálgica retrospectiva.
Se nos tivessem dito o que o futuro nos reservaria, teríamos ficado perplexos com quase tudo. Uns revelaram-se muito mais bem sucedidos na vida do que tudo faria supor ao tempo, de tão medianas que eram as suas notas; a estrela juvenil da altura teve uma prole de filhos prematuramente e agora mora num bairro social a viver de expedientes e a alcoolizar-se na taberna da esquina; a vedeta do futebol acabou por nunca singrar, nem no desporto, nem em nada de especial; o gajo que era tão tímido é um conceituado relações públicas que aparece nas revistas; o totó de eleição tornou-se um manequim famoso e actor de telenovela; o grande cérebro da turma é agora um obscuro funcionário público, maníaco-depressivo e constantemente desmotivado; a tipa boazona que nos parecia inalcançável está gorda que nem um pote a trabalhar numa loja de pronto-a-vestir; eu tornei-me no escritor que a professora de português suspeitou que eu seria, com o sucesso que, suponho, ela também sonhou que eu teria; e o tipo enfezado com leucemia provavelmente morreu mesmo. Surpresas houve muitas, todavia.
Seria impossível reunir todo este bando tão díspar outra vez. Pensar que houve uma altura onde fomos todos colocados juntos… onde nos falávamos com uma proximidade hoje impensável, sem saber que nos iríamos separar irreconciliavelmente. Partilhámos – eis a magia das escolas. Mas hoje nem nos atrevemos falar com o nosso ex-colega carteiro, ou temos vergonha de passar ao lado da nossa ex-colega que tem um todo-o-terreno para ir ao supermercado, ou orgulhamo-nos de dizer “este ministro andou comigo na escola”, embora secretamente reconhecendo que ele dificilmente faria o esforço de nos cumprimentar se ainda nos reconhecesse de tão velhos e insignificantes que estamos. E se pensarmos em namoradas, ou algo equivalente, então somos capazes de bater com o queixo no chão.
Nem falo daqueles trastes, que já eram uns verdadeiros trastes à época e sem grandes hipóteses de salvação, com quem trocámos uns linguados sabendo de antemão que só estávamos a passar o tempo numa estéril afirmação de masculinidade – que tudo aquilo seria para esquecer rapidamente, não só por mim, mas especialmente por todos aqueles que viessem a saber do sucedido, para que eu não fosse muito zombado. Vai daí, as tipas até se tornaram em algo decente, o que seria incrível, mas, de qualquer forma, essas nunca marcaram de forma decisiva, tal foi o esforço que fiz para as olvidar.
A gaja que me abriu as pernas pela primeira vez e que me deixou sugar os seus tenros e sinceros mamilos, naquilo que foi um feito apenas comparável à dobragem do Cabo das Tormentas, é hoje uma memória paralisada no tempo. Parece uma espécie de Jim Morrison ou Kurt Cobain, dos quais só retemos a imagem da sua juventude. Tal como eles, ela nunca passou à velhice. Para mim, ela ficou eternamente juvenil. Não sei o que é feito dela ao tempo de hoje. Se calhar, está melhor do que aquilo que estava. Se calhar, está muito pior. Não guardei nenhum contacto, nenhuma referência, nenhum cheiro particular, tenho apenas uns rabiscos no velhinho diário e uma ténue fotografia mental que se vai dissipando progressivamente e a qual surge de quando em vez, nestes assomos passadistas. Não sei mesmo nada. E se calhar é melhor não saber.
Talvez já desconfiasse do carácter meramente temporário dela na minha vida. Acertei neste caso, pelo menos. É verdade que os miúdos são bastante estúpidos, especialmente os rapazes, mas não éramos anjinhos. Lá no fundo, tínhamos uma noção rudimentar do potencial das pessoas que de vez em quando batia certo. E aquela rapariga, à altura, saiu tão rapidamente quanto entrou na minha “shortlist”: nunca acreditei seriamente no seu potencial. Nunca a vi como alguém a longo-prazo, como via os meus grandes amigos que hoje também não sei onde estão. Eu só queria dizer a alguém e sentir o que era ter estado com ela. Nunca me preocupei em saber o que eu significava para ela. Isso não interessava. Talvez ainda hoje não interesse. Quis aproveitar-me dela, sem contudo prever que agora, passados estes anos, estaria para aqui a reflectir sobre ela.
Hoje, creio, não poderíamos estar juntos na mesma cama outra vez. Já nos carregámos de conceitos, de filtros e de experiências que nos distanciaram. Apenas por acaso cósmico nos poderíamos sentir atraídos outra vez. Pessoalmente, tenho a convicção que ela terá um bigode ou que terá escalado à classe alta das intocáveis – acredito piamente que nada ficou igual, que nada nos faria tropeçar um no outro como dantes, naquela escola em que dividíamos os passos. Acho que seríamos capazes de nos embaraçar se nos víssemos por aí, na rua. Podia ser que virássemos a cara e fingíssemos não ver, até podia calhar que falássemos durante cinco minutos, mas depois iríamos à nossa vida. Esquecer-nos-íamos novamente ao virar da esquina.
Mas em tempos as nossas vidas estiveram coladas. É impressionante como nos descolámos. Desabrochámo-nos mutuamente para a vida e depois não quisemos saber mais de nós. São assim as coisas. Só temos que confiar que evoluímos e que tudo fez parte dum processo de aprendizagem onde os mais fortes sobreviveram e os outros por lá ficaram, vegetando na fila de trás à espera do toque de saída.

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