quinta-feira, agosto 12, 2010

Sobre Uma Rapariga

Larissa acordou e despiu-se. Isto é, tirou a cuequinha de renda que lhe incomodara de sobremaneira o sono. Agora já estava mais à vontade. Livre. Esbelta, com os seus trinta quilos de silicone e uma arroba de botox. Foi ao Photoshop retocar-se e saiu para dar uma volta. Toda a gente olhava para ela e Larissa ficou apavorada. “Queres ver que me esqueci de tirar uma peça de roupa”? Mas não. Estava tudo normal. Os bicos da mama já estavam quase a rebentar com uma montra e ela desceu a mão até ao seu grelo rapado para se certificar que tudo estava como devia ser. Ou seja, nu. E estava. Seria o quê, então? Os sapatos, que estariam a tapar os tornozelos? Então descalçou-se. Sentiu-se mais livre. Mas as pessoas continuavam a olhar, os homens babavam-se, as mulheres desviavam-se para não serem atingidas pelas suas majestosas mamas – que já asfixiaram javalis adultos e abriram 50 cervejas de seguida sem um único arranhão –, as crianças pediam leite e as mamãs diziam “aquilo não dá o leite que vocês querem, só recebe o leite que vos fez”. E as crianças ficaram na dúvida, pelo menos até aos 12 anos. Larissa sorria e tentava perceber o que ia errado. “Parece que nunca viram ninguém despido”. Seria do sinal na cara? Devia ser o sinal na cara. Na televisão as pessoas nem notam, mas ao vivo é tramado. Aquele sinalzinho irritante parecia uma poeirazinha naquele universo curvilíneo de carne e plástico, mas sobressaía indecentemente e sem piedade. Larissa tinha a certeza que só podia ser aquele maldito sinal e ficou triste. Toda a gente com os olhos postos nela, só para criticar o seu inestético e horripilante sinalzinho. E então despiu-se, como protesto. Mas já estava nua e descalça. Então cortou um bocadinho o cabelo, para se sentir mais à vontade. E sentiu-se mais livre. Mas as pessoas continuavam a olhá-la.
O desconforto provocado por Larissa nas outras pessoas despertou-lhes reacções estranhas. As mulheres, enquanto a contemplavam com um misto de estupefacção, repulsa e inveja, eram atravessadas por pensamentos impuros. Que iam do “esta gaja mete nojo com o seu corpo pré-fabricado”, passando pelo “eu matava esta gaja só para acabar com as manias dela”, fazendo um desvio pelo “eu também podia ser assim, mas não quero” e acabando no “ela pode ter um grande par de mamas mas eu tenho uma mala melhor que a dela”. Os homens, vencidos e com uma enorme inércia físico-mental, pararam o que estavam a fazer. Mesmo aqueles que não faziam nada deixaram de o fazer para serem colhidos pela surpresa. Os seus cérebros bloquearam. Tudo deixou de fazer sentido, tudo convergiu para aquele corpo plastificado que atraía como um poderoso íman. Bocas escancaradas, olhos bem abertos, um fluxo de sangue a ferver pelo corpo. Paralisados, com um sorriso parvo, declararam logo rendição incondicional. O que enfureceu ainda mais as mulheres e as fez arrepender de alguma vez terem proferido a frase “o meu Felismino? O meu Felismino não é igual aos outros”. Ah pois não. E se as crianças estavam confusas com as reacções dos adultos, os gays estavam claramente indignados com a enorme demonstração de liberdade da Larissa: é que ela nem precisou de uma parada folclórica para se mostrar. Porém, como ficava mal criticá-la por fazer aquilo que eles sempre sonharam fazer e só não faziam porque não tinham tomates para fazê-lo, remoeram em silêncio a atitude desprendida de Larissa.
Pressentindo que a sua presença era demasiado incomodativa, Larissa decidiu ir para outro sítio. Foi para a praia. Mas não para uma praia de nudistas. “Não me sinto à vontade”, confessou. Mas não que achasse mal; aliás, ela já se tinha despido. De preconceitos. Há muito tempo. “Não sei, parece que há sempre um ou outro exibicionista pelo meio que estraga o ambiente numa praia de nudistas”. E na praia sem ser de nudistas ela sentiu-se mais confortável. Já nem toda a gente lhe olhava da mesma forma, habituada ao costumeiro topless aqui e ali. Ao fim de algum tempo, e após ter rechaçado um engraçadinho que queria jogar à bola com uma das suas mamas (“Vá lá, a minha bola foi para o mar… E tu também podes vir jogar, se quiseres…”), Larissa sentiu-se mesmo feliz. E então resolveu despir-se para comemorar. Mas ela já não tinha nada para despir. Como tal, ficou triste outra vez. Deprimida, vagou solitária no caminho até casa, cabisbaixa, insegura, até que descobriu uma loja de roupa. Em promoção.
Larissa adorava roupa. Embora não parecesse. Gostava de grandes casacos de pele. Sabiam melhor quando se despia, por serem mais pesados. E tinha um guarda-roupa impecável. A roupa nunca se estragava nas mãos dela. Aquilo era para usar uma vez e guardar como espécie de registo histórico. “Aquela blusa”, comentou, “vestia-a em Agosto de 2008. Depois despi-a e nunca mais voltei a vesti-la”. Tinha custado duzentos e tal euros. Era já uma peça de colecção procurada pelos seus fãs, como, aliás, todo o seu guarda-roupa. Especialmente os soutiens. Eram mais de mil, cada um adaptado à forma das suas mamas ao longo do tempo. Ela começou no tamanho 28, tinha ela 7 ou 8 aninhos, e já ia no 74. Mas como o silicone pode deprimir-se consoante a pressão atmosférica e a forma como ela dorme, por vezes veste do tamanho 40 ao 56 na mesma semana. “Na semana passada, comecei com um 56”, exemplificou, “mas depois de me ter entalado numa porta na 5ª feira, tive que mudar para dois 40, porque as mamas ficaram temporariamente mais pequenas e mais verticais. Mas apliquei-lhes um sifão na 6ª feira e depois regressei ao 52”. Agora, comprou outro soutien e umas cuequinhas, só para se proteger do ar-condicionado. E depois foi para a rua despir-se. Desta vez, num acto puramente hedonista. Ela já se tinha despido para protestar, para celebrar, para incentivar e até para matar – houve um tipo que morreu afogado, e feliz, no seu peito, ao que dizem foi suicídio premeditado. Mas desta vez estava a despir-se só porque sim. Porque lhe apetecia. E quando o fez sentiu-se muito livre. Como um passarinho. Ou como a sua passarinha, que respira ar puro muito melhor que certos narizes.
Depois Larissa foi comer qualquer coisinha. Um ramo de salsa, meia cereja e um sumo de alperce. Depilou-se na paragem dos táxis, que ela notou dois ou três pêlos a florir junto ao seu fértil clitóris, que se assemelhava a um berbigão gigante insuflado de botox. Era ver os taxistas a atropelarem-se uns aos outros para conseguirem ficar com aquela cliente. O mais esperto dos taxistas, uma espécie de divindade local, ganhou expectavelmente o concurso. Tentou fazer conversa com ela, enquanto ajeitava o retrovisor. Era notório um brilho nos olhos e a costumeira desatenção no trânsito aumentou significativamente; não houve vermelho que fosse respeitado e a regra da prioridade foi completamente subvertida. Como quase sempre. Mas era Larissa que estava no banco de trás, maquilhando-se com batons e pozinhos e espalhando creme anti-ferrugem nas mamas. Pelo sim pelo não. O taxista quis arrancar-lhe umas palavrazinhas. “Então, já viu este tempo”? Mas a conversa não era o forte dela. “Então, e o nosso Benfica”? Mas o futebol não era o forte dela. “Então e viu os ladrões do nosso Governo”? Mas a política não era o forte dela. “Então e aqueles tipos do programa da dança, hã? Aquilo é que é entretenimento”! E ela lá reagiu com uma risadazita parva, que coisas parvas já eram mais o seu forte. Em abono da verdade, os únicos pontos fortes da Larissa eram os seus bicos da mama e o ponto G; tudo o resto era de uma mediocridade exasperante. Mas isso nunca a impediu de ser popular. A meio da viagem, Larissa sentiu-se agoniada. Aquele sumo de alperce tinha sido demais, ela não estava habituada a ingerir quantidades de líquidos tão elevadas que não sémen. Soltou um arroto brutal. O táxi tremeu, mas o pior foi a sua mama. Não resistiu às ondas de choque e rebentou. A mama explodiu e largou uma poia de silicone bem em cima do assento. O taxista ficou pior que o seu banco, que estava estragado. E Larissa também ficou muito desconsolada.
Foi para casa chorar em posição fetal, lacrimejando agarrada aos restos da sua mama e acariciando a sua outra mama, protegendo-a de possíveis agressões externas. Apetecia-lhe despir-se, numa perspectiva de fazer as pazes consigo mesma, mas não estava em condições de se ver ao espelho. Então lembrou-se que tinha uma Jabulani que tinha trazido do Mundial da África do Sul. Procurou o pipo da bola, puxou-o para fora e introduziu a bola no buraco deixado pela sua mama desaparecida. Estava ali um belo substituto. Já podia despir-se outra vez à vontade. Para se sentir livre. E seria o que tinha feito, se não estivesse já nua. Então lembrou-se que ainda tinha maquilhagem. Despiu-se de maquilhagem. Ficou feliz. Foi vestir um soutien para tomar banho, que a água pode misturar-se com o botox e inchar e depois ela ficava tipo boneco da Michelin, como aconteceu no Natal de há dois anos, em que o pai dela ia mordendo-lhe os seios, pensando que aquilo era o peru. Mas apareceu um tipo do Círculo de Leitores e ela foi atendê-lo. Como homem que era, o tipo do Círculo de Leitores engasgou-se e foi incapaz de traduzir por palavras as recomendações do mês, apontando para fascículos de História ao calhas. Larissa não percebeu e não ia comprar nada, que ela não era dessas coisas de ler e pensar e fazer continhas com pauzinhos e bolinhas, mas percebia como poucos de cremes faciais. Para não deixar triste o tipo do Círculo de Leitores, julgou que seria uma boa forma de animá-lo se se despisse. E toca de sacar as mamas cá para fora. O bico da mama ainda boa acertou-lhe como uma bala nos olhos. E ele desmaiou. Ela riu-se e fechou a porta, concluindo que o desmaio era o derradeiro sinal de satisfação.
Já deitada no seu leito, com uma tanguinha para que nenhuma migalha perdida nos lençóis entrasse sem pedir licença em sítios impróprios, Larissa sentiu o sumo de alperce ainda a remoer-lhe no estômago. As tripas, que, como o resto do corpo, estavam debruadas a silicone, começaram a grunhir. O gás a subir. E Larissa mandou um arroto que se ouviu no fim da rua. Resultado: furaram-se-lhe as nádegas. Três buracos assim de uma assentada no seu traseiro. Ela ficou triste. E então despiu-se. Sentiu-se mais livre. Mas amanhã teria de voltar ao médico dos implantes e plásticas. E rezar para que não fizesse muito calor, senão ainda derreteria como um sorvete ao sol a caminho do consultório.

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