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A ratazana, outrora verdadeira lebre dos esgotos, morreu vai para 1 mês e por ali ficou. Deve ter sido envenenada. Examinei brevemente a sua carcaça e não dei com marcas de esmagamento ou atropelamento. Foi uma vítima não reclamada do Ratax ou de outros remédios assassinos de roedores indesejáveis. Cruel fatalidade química a quem sempre se deu bem com os refugos e despojos humanos. Provavelmente, a ratazana, avaliando pelo seu tamanho, estaria já bem madura, quem sabe prenhe de ratazanitas ou com ratazanitas por criar. Ou pode ser que já tivesse entrado na terceira idade ratazanal. Não era nenhuma criança, isso é certo. Pelo seu nariz aguçado e protuberante devem ter sido exalados odores do mais nauseabundo que possamos imaginar, repulsas do mais elevado quilate – toda uma experiência de vida que muito respeito.
Sim, eu sei que é feio e repugnante, mórbido e doentio. A ratazana está morta e isso é o melhor que podemos exigir dum animal de estimação: não suja, não come, não faz barulho, não parte, não deseja atenção. Já não se passeia. Serve para manter as pessoas afastadas. É um corpo pútrido em decomposição penosa que ninguém tem coragem de pegar.
Nem o mais valente dos homens da recolha do lixo se atreve a incomodar a sua lenta desagregação. Deixaram-na ficar. Bem sei, ela não é o Ratatouille, não tem as patinhas cor-de-rosa e o rabinho igualmente rosado e levemente ternurento, aquele tipo de ternura que leva as criancinhas a preferir um hamster a um camaleão, não foi educada no luxuriante lixo e penumbra de Paris, ficou-se pelas lixeiras municipais portuguesas e por esses pouco utilizados túneis de esgotos lusitanos, mais habituados ao esgoto a céu aberto. Aquela ratazana não conheceu, aposto, o charme de queijos Roquefort a apodrecer (NOTA: o queijo Roquefort bom é o mais apodrecido de todos), as tensões intelectuais da Sorbonne nem as reivindicações dos levantamentos populares suburbanos. Foi um simples animal, fortemente indesejado e causador de pavor em consequência da sua imponente estampa física.
Gostei do bicho. Nunca devo tê-la visto viva, a não ser, talvez, quando ela tentava surripiar o fundo do meu automóvel ou quando corria junto à margem do rio, pela noitinha, de arbusto em arbusto, fugindo das luzes. Agora, de boquinha aberta e com os dentinhos a revelarem-se, de olhos cerrados e pêlo moldado pelo vento, as formigas e outros insectos minúsculos a cobrirem-lhe o corpo cadáver, absorve o sol como ninguém. Imutável. Já lá vai um mês e ela lá está. Ninguém sequer estaciona perto. Pobre ratazana, parecem evitar-lhe mais na morte do que na vida.
E é por isso que a admiro. A bicha é duma coerência aterradora: provoca aversão tanto em vida como na morte. Dantes, senhora do submundo; hoje, dona do passeio. Nem mesmo nenhum cão vadio perturba a sua imperial putrefacção. Eu serei o seu único amigo, o único que ainda repara, a quem comigo partilha as vistas da minha casa, “ela já morreu vai para mais de 1 mês!”. “A sério?”, perguntam-me, com alguma excreção no olhar, “a sério”, digo eu, completando para que essa pessoa regurgite imediatamente a sua última refeição: “e só não a levo para casa por respeito aos mortos”.
Aguardo agora por outra ocasião: o surgimento duma ratinha viva no meu passeio, em detrimento duma ratazana morta. Não que esteja a relegar para segundo plano a minha dedicação ao animal, nada disso. Era só para variar. Acreditem.
1 comentário:
Muito bom :)
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