quarta-feira, agosto 29, 2007

A Terceira Geração

Cecília fotografa com o seu telemóvel como quem come um tremoço. Álvaro, à sua frente, faz-se à pose. Lá ao fundo, uma paisagem qualquer. Depois do clique, Álvaro está imortalizado em mega-pixels de alta definição. A importância subjectiva da fotografia digital é irrelevante.
Tudo é importante. Portanto, não há discussão sobre hierarquias estéticas ou temáticas. Estamos na 3ª geração. Fotografa-se tudo. Digitaliza-se ainda mais qualquer coisa. Transmite-se. Envia-se. Sublimam-se pormenores pela rede infinita. Toma lá, dá cá. Trocas e baldrocas em altas engenhocas.
Isto tudo só pode ser obra da graça de Deus.
Falamos. Ouvimos. Vemos. E não faltará muito para saborearmos ou cheirarmos. Já sentimos como ninguém. E toda uma panóplia de situações se nos revela, despida na sua essência: banhos orgásmicos proporcionados por sacrifícios sangrentos em orgias horrorosas de jet-set; bizarros golos improvavelmente auto-marcados no último minuto; estrelas moranguíticas a snifar cocaína na retrete duma churrascaria; barrigas de aluguer a pedir boleia numa estrada nacional onde embateu uma viatura ligeira com cinco passageiros, hoje fantasmas, frontal e cabalmente contra um sólido eucalipto que resseque o solo; políticos imensamente corruptos que dizem obrigado de forma quase litúrgica pela cruzinha que o velhote desamparado lhes presenteou nas urnas; enfim... Dói só de imaginar as possibilidades.
- Temos tudo – rejubila Cecília. Para ela, é imenso o gozo de poder captar desde a caganita do pássaro ao assassínio do presidente em directo. Cecília sente-se como que com poderes divinos. Ela pode estar e ser e registar e reviver e contar, tudo ao mesmo tempo. Partilhar sem reservas de espaço ou tempo as mais variadas peripécias, emoções, eventos, tudo aqui mesmo na sua mão, num pedaço de plástico envolvente de componentes semi-metálicos de tamanhos reduzidos. É este o poder, a vitória do progresso: cabe na sua mão a perspectiva de todo o mundo. Mesmo não sendo espiritual por aí além, Cecília reconhece que isto só pode ser a perfeição. Isto é Deus em nós.
- Ainda nos falta algo...– rosna Álvaro, sempre irascível e inquieto, desconfiado e descontente. Álvaro não se satisfaz com pequenos desideratos exibicionistas de trazer por casa. Mas admite, com ténue cobiça a humedecer-lhe os olhos, que já faltam poucos passos para a suprema perfeição. A tecnologia é poderosa, sim senhor, mas só isto não basta. A tecnologia faz-nos pequenos deuses em potência, é verdade, mas havia que dar o salto definitivo para nos assumirmos como todo-poderosos.
- Vamos Cecília… Temos de escolher: matar ou morrer! – impõe, duma assentada, Álvaro. Álvaro estava consciente do seu ultimato. A partir daqui, a inovação tecnológica era já um comboio sem retorno, acelerando freneticamente. Havia que escolher: ou íamos com ele ou nos perdíamos pelo caminho. Ficar para trás era impensável, era morrer. Ir em frente significava ir ter com Deus e aqui só podíamos matar, como Ele. Havia que ser poderoso como Ele, na opinião de Álvaro, embora Álvaro não quisesse ir sozinho. Álvaro advogava que Deus só destruía o que o Homem e a sua tecnologia construíam. Deus apenas concebeu e concedeu ao Homem a Natureza como teatro de operações. E a partir daí o Homem desenrascou-se apesar de Deus. Não o contrário. Houve sempre mais do Destruidor que do Criador. E não havia alternativas.
- Bolas, Álvaro… sempre tão drástico… de certeza que só temos essas saídas? – Cecília não parecia convencida. Ela, na figuração de Álvaro, estava alienada e iria sair abruptamente do comboio, entorpecida na sua felicidade. E nunca mais iria voltar ao admirável mundo novo. Iria ficar na penumbra dos subdesenvolvidos tecnológicos para sempre. Mas ela queria apenas desfrutar do hoje, ir à boleia, sem consciência dos perigos que Álvaro advertia. E escolhas nunca foram o seu forte.
- Livra, Álvaro… É tudo tão fácil hoje em dia… porque complicas?
- Eu não complico… Eu tento agir e não reagir.
- É-me tão difícil escolher… - encolhe-se Cecília, abismada com a possibilidade de Álvaro lhe retirar todo o conforto tecnológico.
- Vamos! – impacienta-se Álvaro – Temos o futuro para reconstruir e a tecnologia cabe nas nossas mãos! Temos de partir para um novo nível! - ou seja, Álvaro acreditava que todo este progresso tecnológico era inevitável e invencível, a arma do Homem para chegar a Deus e suplantá-lo. Não queria a tecnologia para mera diversão, mas para usufruí-la de forma cirúrgica. A tecnologia não era para divertir os simples nem era obra de Deus, era o inimigo de Deus, era um Satanás inteligente, pronta para usurpar o trono. Com a tecnologia redefiniria-se todo o mundo. Os detentores das rédeas tecnológicas seriam os novos deuses nesse novo mundo. A ordem actual deixaria de existir, Deus deixaria de estar no controlo das operações. E era Álvaro quem estava na vanguarda, ao leme. Ele sentia que o momento da reviravolta estava prestes a acontecer: estava tudo testado em binários e supra-binários, tinha tudo ligado em rede e todos os links possíveis e imaginários efectuados, todas as chaves e códigos e ligações a postos, tudo em standby, bastava um simples toque de telemóvel e teríamos o Novo Apocalipse Universal.
Cecília roi as unhas e pondera entre ser a nova rainha do mundo e passar os dias a falar no MSN. Necessita de uma opinião avalizada.
- Posso fazer uma chamada?
- Eu já sabia… Nunca decides nada sem Ele… Chama lá o tipo.
Ignomínia das ignomínias. A derradeira traição abateu-se sobre Cecília e Álvaro.
- Estamos sem bateria! – constata Cecília em pânico – E agora?!?
- Raios!!! – brada um zangado Álvaro – Temos de deixar tudo para depois! – e, desconsolado, Álvaro contempla o mudo aparelho que largou o seu último “bip” de falecimento na palma da sua mão. Encostou-o ao bolso, onde agora, em vez de poderoso exemplo tecnológico, era apenas um peso morto sem utilidade. Álvaro sentiu-se a minguar, parecia um pequeno meteorito apagado no chão, todos os seus projectos voaram. Mas Cecília reconfortou-o:
- Deixa lá. Estamos em casa e daqui a meia hora já temos o telemóvel com a bateria carregada outra vez.
Meia hora: uma vida inteira. O imediatismo tão característico da modernidade não se compadece com estas esperas. A Álvaro custa-lhe esta perfeição tecnológica intermitente, estas baterias que se gastam como palavras ao vento, toldando-lhe os grandes planos. Daqui a meia hora já tudo podia estar esquecido. Os cartões de memória enchem-se. As oportunidades evaporam-se. Deus ainda não deve ter entrado, definitivamente, na 3ª geração. E por isso vai sabotando todo o nosso potencial tecnológico, não concedendo a veleidade de jogarmos de igual para igual. Mas, quem sabe, um dia...

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