quinta-feira, novembro 08, 2007

Desaparecidos

- Então a sua equipa de investigadores consegue localizar qualquer desaparecido.
- Qualquer um.
- Toda e qualquer pessoa.
- Pessoa, animal e vegetal.
- Vegetal?
- São os mais fáceis de detectar. Uma das curiosas características dum vegetal é a sua reduzidíssima mobilidade, o que facilita o trabalho dos nossos activos colaboradores. Outra característica de alguns vegetais é o facto de calharem mesmo bem numa salada. Também reagem muito bem ao vinagre. Mas isto agora não vem ao caso.
- Certo. E quantos vegetais já recuperaram, só para ter uma ideia?
- Bem, assim de repente e sem querer ser demasiado exaustivo, o alho francês do Sr. Carmildo, o molho de agriões da D. Paulina, o rabanete de estimação do Sr. Guilhermino e o Sr. Orestes, um perigoso tetraplégico desaparecido na Costa Vicentina.
- Como assim, “perigoso tetraplégico”? O que é que ele podia fazer?
- Oh, ele cuspia a longa distância e com grande precisão. Especialmente escarretas esverdeadas, as mais mortalmente nojentas. Quando o apanhámos, estava a fazer mira a um casal de turistas holandeses perto de Aljezur. Já tinha cuspido em cerca de vinte ou trinta transeuntes só numa semana. Também atropelava velhotes nas passadeiras com a sua cadeira-de-rodas motorizada. E insultava de uma forma horrenda e gratuita quem lhe fizesse frente. Não foi fácil, chegámos a ter um colaborador nosso com depressão quando tentava localizá-lo, mas finalmente conseguimos.
- E já recuperaram animais, também. Suponho que animais de companhia de luxo.
- Sim, como o São Bernardo do Sir Manfred Hurthington, o poodle da estrela de cinema Mimi Mama… e também o Dr. Tancredo Diapasão.
- O Dr. Tancredo Diapasão?
- Sim, o famoso neurocirurgião que saiu de casa para comprar tabaco e não foi visto durante meses. Ele é um terço camelo, um terço porco e um terço aparentemente humano. Poucas pessoas sabem disto. Também fomos nós que descobrimos. Apanhámo-lo num “peep show” dos Restauradores, em Lisboa.
- Certo, certo… mas aqueles casos mesmo mediáticos, que estão na crista da onda, vocês não resolveram nenhum, pois não?
- A nossa equipa de investigação é demasiado discreta para se envolver com mediatismos. Nós é mais madrugadas de Sábado na :2 e menos Jornal Nacional da TVI; mais S. Carlos e menos Pavilhão Atlântico; mais revistas subscritas por correio e menos 24 Horas…
- Uma elite, portanto.
- Estamos para além da elite, para além da superioridade viscôndica sportinguista, para além daquilo que é directamente palpável…
- Posso falar com os seus colaboradores?
- Só estou eu disponível, sou eu que dou a cara pelo projecto.
- Só você? Porquê?
- Bem… para dizer a verdade…
- Sim?
- Os meus colaboradores estão desaparecidos.
- Como?
- Eu sei, eu sei, parece parvo, mas incuti tácticas de dissimulação tão fortes neles que eles acabaram por desaparecer em busca de desaparecidos.
- Então…
- Sim, receio que tenham todos desaparecido. E quem os pode encontrar, eles que são a nata da investigação? O enorme Zé Latas foi à procura do brilhante Manel Frasco, que por sua vez estava a seguir a pista da nossa excelente Maria Aguarela, que foi vista por última vez atrás do nosso amigo e companheiro Rui Cão, que perseguia o nosso repentino Quim Martins, que andava a buscar o seu isqueiro no porta-luvas há semanas. Sobro apenas eu e a Ana Feldspato. Isto é , a Ana Feldspato também desapareceu ontem. Pelo menos hoje não veio trabalhar. Pode ter ficado em casa a tratar dos filhos, quem sabe. O mais certo é ter desaparecido como os outros.
- E agora? Parece que a sua empresa está a desmembrar-se…
- Agora é continuar a lutar e seguir em frente, há mais desaparecimentos para resolver. Há que dar o corpo às balas. Vender cara a derrota. Trabalhar desaparecimento a desaparecimento. Não colocar o pé em ramo verde. Adquirir experiência para regressarmos em força no futuro. Fazer os possíveis e os impossíveis para sair com resultados positivos. Pensar já no próximo desaparecimento. Limpar o pensamento e seguir em frente. Acreditar que é matematicamente possível dar a volta. Não chorar sobre o leite derramado. Se continuarmos a trabalhar assim, certamente que os desaparecidos aparecerão. Quer que continue com mais frases feitas?
- Não, deixe estar, acho que percebi o seu ponto.
- Ainda bem, só me lembrava de mais uma. E tinha a ver com o árbitro, não estava muito relacionado.
- Não acha estranho, o facto de profissionais da detecção desaparecerem sem deixar rasto?
- Não. Eles estão extremamente qualificados para desaparecer. O que me estranha é o facto de não reclamarem os vencimentos em atraso.
- Havia salários em atraso?
- Sim. Os fundos que lhes prometi…
- Sim?
- … desapareceram.
- Como assim?
- Foram-se. Eclipsaram-se. Foi um ar que lhes deu. Escapuliram-se. Era uma vez um saco de dinheiro… Ouça, eu podia continuar com sinónimos que enfatizassem esta situação, mas depois assemelhar-me-ia bastante ao sketch do “Papagaio Morto” dos Monty Python. Relembre-se que sou uma elite e que detesto vulgaridades e plágios baratos.
- E você sabe como o dinheiro desapareceu?
- Um mistério. Indecifrável. Apenas comparável ao da origem das espécies.
- Você não parece muito preocupado…
- É natural. Eu estou podre de rico.
- Não terá sido você a desviar os fundos para benefício pessoal?
- Alguém nos ouve?
- Nem por isso.
- Alguém nos lê?
- Só no blogue “Outra Louça”.
- OK, então estou à vontade: fui eu que gamei tudo. Mas apenas enquanto os meus colaboradores estavam embrenhados nas investigações… quando eles reparassem que lhes faltava algo, eu tencionava devolver-lhes o dinheiro… mas eles foram desaparecendo… e eu, pronto, fui aconchegando o dinheiro…
- Esta sua empresa parece-me uma grande fraude…
- É. Duma forma muito simplista, sem grandes explicações, parece mesmo uma fraude…
- E o que você vai fazer quando a bomba rebentar nas suas mãos?
- Aceitar as consequências com a dignidade intrínseca aos homens probos.
- A sério?
- Sim… e depois sou capaz de…
- Sim?
- Desaparecer. Afinal, domino a técnica…

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