quarta-feira, setembro 16, 2009

Ainda Bem Que Não Fomos Nós

"Vítimas da queda da avioneta em Castro Verde não são portuguesas" - in "A Bola" online

Na verdade, podia morrer toda a gente do mundo num acidente qualquer, desde que não os portugueses. Esses não. Esses são demasiado bons, tremendamente válidos, estupidamente jovens e talentosos para morrerem tragicamente como os outros.
A comoção instala-se quando ocorre uma catástrofe. Não é por acaso; não é por sermos demasiado impressionáveis. Não: o pavor está em saber se há portugueses metidos ao barulho. Se houver, bom, é um desastre e peras, daqueles mesmo tramados. Se não, é um alívio; de repente, toda a sinistralidade inerente à hecatombe se dissipa; estamos perante mais uma banalidade, do género daquelas múltiplas calamidades naturais que dizimam milhares na China, na Indonésia ou na Guatemala. Coisas com as quais ninguém se preocupa e pelas quais passa com a indiferença típica do zapping.
Em qualquer acidente com vítimas, há os mortos esquecíveis, que são os mortos que nasceram fora deste rectângulo e das ilhas; e há os mortos insubstituíveis, que são os nossos. Todo o português morto em acidente é lamentado numa proporção incomensuravelmente superior ao morto que jaz ao lado e que seria, por hipótese, espanhol. Mesmo se o espanhol fosse um Prémio Nobel, por absurdo, e o português um serial-killer pedófilo e toxicodependente que roubava as caixas das igrejas. Ficamos sempre com pena do “nosso compadre lusitano”.
O português desaparecido em acidente desperta nos portugueses um sentimento de perda irrecuperável. Nasce com a morte dele a necessidade de serem escritas elegias fúnebres dramaticamente poéticas, de se depositarem flores coloridas no local da tragédia, de se fazer um minuto de silêncio em sua honra, de se acusarem todas as autoridades competentes e mais algumas por desleixo. Apenas por ter sido português. E se era português, então é porque nos era muito próximo e de alguma forma privámos com ele. Sim, porque todos acabamos por nos conhecer uns aos outros. Esta proximidade, tão frequentemente desprezada no quotidiano, é-nos devastadora na hora da desgraça.
Por norma, um português que morre num desastre morre com uma dignidade insuperável. E sempre em condições que roçam o heroísmo, pelo desafio inglório face à fatalidade. Os outros, geralmente, foram apenas incautos.
Um português morto num acidente tinha sempre qualquer coisa formidável para nos oferecer e foi apenas a inveja desse malvado destino que nos privou dessa coisa fantástica. Já um português morto de causas naturais merece apenas a atenção dos mais chegados. A tragédia que nos dá uma bruta estalada nas ventas, provocando-nos uma estupefacção que nos percorre toda a espinha, é a mesma que nos apressa a elevar o estatuto da vítima ao pedestal da imortalidade. Pelo menos durante uma semana. E esse pedestal será posteriormente revisitado por um programa qualquer da SIC, onde se vasculharão os familiares da vítima passados 10 anos.

“Acidente de viação vitima família de cinco pessoas"! Consternação! “Eram todos ciganos”. Ufa, pensei que era gente a sério; antes eles do que nós.
“Furacão violentíssimo fustiga barlavento algarvio"! Horror! “Só morreram ingleses”. Ah, então foi bem feito, os tipos não sabem apanhar sol e depois lixam-se.
“Vírus poderoso arrasa população da Amadora"! Pânico! “Só foram infectados os pretos”. Então caga nisso. São pretos, e, como todos sabemos, eles não são portugueses. Que se danem.
“Godzilla despacha bairro parisiense com grande colónia portuguesa"!
Emoção! “Afinal, os portugueses estavam a trabalhar e não foram afectados”. Ainda bem. O bichinho precisava de fazer estragos e em França já há tantas batalhas campais que mais uma nem se vai notar.
“Liedson apanha gripe A e está de baixa”! Bah, brasileiro do car***o… “Selecção Portuguesa a contas com mais uma dor de cabeça”. Eh pá, é verdade, o gajo já é português e tudo… isto é deveras lamentável. Só faltava o Obikwelu também apanhar poliomielite. Seria uma machadada fatal na nossa estima.

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