terça-feira, dezembro 29, 2009

Gostava De Ter Lá Estado


Gostava de ter lá estado. Aquele era o meu tempo. O passado torna-se tanto melhor quanto mais remoto. O presente é pouco interessante. O presente sofre-se, o passado relembra-se. O pretérito ainda pode ser perfeito, mas o presente apenas aspira ao indicativo. É manifestamente insuficiente. Foi aí, no passado, que se fez a festa. A partir dessa altura, nada foi igual. Naquela altura eu ainda era alguma coisa com valor. Ainda valia em escudos. Depois fui dividido por 200,482 e nunca mais recuperei. E foi uma grande festa, não há droga que apague isso da minha memória. A memória é tramada e extremamente saudosista. As palavras vinham de todo o lado e encaixavam-se como Legos para formar belos edifícios de absurdo. A gente desfazia-se em gargalhadas ao sabor do vento. Nós queríamos lá saber do piano, do fim da tarde, de olhares fixos no horizonte pardo. Tudo ainda estava por ser e tudo podíamos ainda ser. Tudo se havia de resolver. Hoje apenas persiste o enorme arrependimento de não termos aproveitado o tempo morto para aprender a tocar piano. E hoje já não é o tempo certo. Temo que esse tempo se foi e nunca mais irei encontrá-lo.

Tu bamboleavas-te ao som, blusa às riscas horizontais, contorcias as ancas em movimentos libidinosos, os mamilos a sublevarem-se debaixo dos teus têxteis e deslumbravas, pudera, com o álcool tornavas-te uma Amazonas. Eras mais uma peça do carrossel de futilidades com um prazo de validade demasiado curto. Era ali ou já não era. Não havia perguntas para fazer, havia apenas que sentir. Tinha que largar todas as fórmulas no lixo, deixar-me envolver pela espuma, tornar-me em mais um zombie. E aquele som, ah, o som, os decibéis a estalarem a noite inteira, o zumbido incessante que ainda hoje perdura quando tudo se tornou negro e a mente num remoinho que descia do tecto e aterrava na minha garganta ressequida. Tudo foi bonito até ao dia seguinte. Foi no amanhã que se precipitou o fim. O desmoronamento das ilusões foi muito mais silencioso do que previ. Quando olhei de volta já nada restava. O castelo de sonhos tornou-se apenas em mais um sonho, engoliu-se a si mesmo e armazenou-se numa lata de fermento Royal na minha mente. Perante os meus olhos, apenas uma estrada ao vento. Havia que seguir um caminho qualquer, toda a gente andava, eu tinha que mexer-me para algum lado. Avancei sem convicção, perdi a minha convicção algures pelo caminho mas não dei parte de fraco.

E então fui andando, sem grande sentido. Fazendo coisas aqui e ali, procurando secretamente que aquele tempo que não cheguei verdadeiramente a viver voltasse, qual surpresa debaixo de um calhau qualquer. Fui ficando com sono. Fui comendo a sobremesa antes do prato principal. Havia quem achasse graça, havia quem comentasse em surdina o inusitado da situação e no final todos encolheram os ombros. E os bocejos nunca mais me abandonaram. Vi gente petrificada com o seu próprio estilo de vida, imutável, totalmente convertida à filosofia do presente, exércitos dedicados à manutenção de um estado de coisas perfeitamente paralisante, porque sim, porque assim alguém fez no passado, o seu passado, aquele passado que nada tem a ver com o meu, porque no meu passado é que se fez tudo de interessante e no passado deles a vida era matizada a preto-e-branco, apenas um veículo para atingir o cinzento perfeito dos seus dias de hoje. E eles dizem que hoje é que é bom, porque já andaram tudo até aqui e tudo está finalmente a ser descoberto ao estilo de quem pressiona um botão de micro-ondas. Acham graça às fotocópias e perpetuam-nas num fervor semi-religioso. E hoje acham graça que as fotocópias estejam disponíveis de graça. Não, hoje não é hoje que será bom.

(Agradecimento ao Fitzx pelo banco de imagens que me deu a descobrir)

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