quarta-feira, setembro 08, 2010

A Minha Terra

É claro que o lugar me traz uma certa nostalgia. Mas a minha terra, a localidade onde cresci, é feia. Nunca foi muito bonita, aliás. Podemos dizer isto friamente. Era, quanto muito, maior que as outras terras ao lado que também nada devem à beleza. E porque gostávamos de acicatar rivalidades, defendiamo-la com unhas e dentes. Sem grande razão. Era um exercício entre pobres e rotos, um duelo espúrio como tantos outros.
Hoje, demonstramos alguma pena e simpatia pela minha terra. Há quem recorde, com agrado, “no monte lá da nossa terra provém a água mais fresquinha, a melhor fruta, as melhores paisagens”. Ou “os melhores monumentos, as avenidas mais engalanadas, os melhores restaurantes”. A minha terra, porém, é um fiasco em toda a linha. Desprovida de belezas naturais. Caos arquitectónico. Lixo nas ruas. Paredes riscadas. Mármores encardidos. Mulheres sem dentes. Delinquentes que nunca mais recuperam. Carros estacionados permanentemente em segunda fila. Há uma dúzia de cafés todos na mesma rua e metade deles fecham após um mês. Mas o ciclo repetir-se-á. Velhas lojas fechadas até virem os chineses. Chineses aqui. Chineses ali. Chineses por todo o lado. E brasileiros. E indianos. E africanos. E sei lá que mais. As árvores foram abaixo. O clube desceu de divisão. As ruas à noite são mais sinistramente desertas que o cemitério. Os prédios fazem cócegas uns nos outros. Não há emprego. Já não se trabalha aqui. Quando finalmente se consegue estacionar, vai-se ver a telenovela para o maple e dorme-se. E mal, quando há desacatos e tiros nas ruas. As sirenes não param. Há alarmes a disparar a toda a hora. Ambulâncias em constante frenesim. Carros de polícia à farta. Bêbados a dormir às portas. Cartazes publicitários a taparem-nos as vistas. Muros. Pilares. Estruturas de betão no modo de reprodução automática. Alcatrão com buracos e lombas. Há tantas rotundas que um dia a estrada vista do espaço irá assemelhar-se a uma série de oitos em cadeia. Um mar de beatas de cigarros forra o passeio sujo com dejectos de cão, de homem, talvez de boi. Faz sol e a gente transpira sem sombras. Faz chuva e há inundações porque o escoamento é deficiente. E depois vendem aquele pedaço assoalhado como um pedaço de céu, mas o céu não se vê dali, só perscrutando entre os cabos eléctricos.
Pensamos que alguém há-de pensar na sustentabilidade do nosso espaço. Que também ninguém sabe ao certo o que é. Sempre foi esse o costume, projectar à toa mas a falar bem. Acreditar numa entidade superior que venha dar aquilo que já se perdeu. Ou que nunca se teve. Mas quisemos sonhar. Quando demos por nós, dizer que se vem da minha terra é quase que exibir um letreiro a dizer “sou um pobre diabo e as minhas perspectivas de vida não se comparam às vossas que vivem na Cidade”. Foi a Cidade que cresceu, fomos nós que nos deixámos aproximar, magnetizados pelo seu poder. Agora já não somos uma entidade independente, somos um agregado populacional morto-vivo. Quem não reconhece isto é porque continua a sonhar.
Bonito são aquelas casas americanas de relvado impecável e cãezinhos peludos a brincar com as crianças num dia de sol e onde até o carteiro é feliz. Devíamos ter ficado pelo videoclube. Que agora já não existe, é um local decrépito e empoeirado. E dizem-nos que isto está melhor. Quem nunca saiu de lá acredita nisso. Mas quem viu mais sabe que o máximo que fizeram foi atrasar o passo até ao estado de decadência oficial. O partido x culpa o partido y e os independentes criticam tudo. Ninguém parece satisfeito. Encolhem os ombros e dizem que podia ser pior. Podia ser pior, é um facto. Podíamos todos viver em jaulas de rato e não haver sequer um supermercado. Agora só há supermercados. E haverá sempre espaço para mais um prédio com vista para o melhor prédio, que está mesmo em cima da bomba de gasolina, mesmo perto dos transportes públicos envelhecidos, sujos e mal-frequentados. As faces antigas perdem a cor e morrem, as faces novas nada nos dizem. É claro que esta é a lei da vida. A minha terra, essa, nunca pôde ser bonita. Não tinha condições para tal. E a pouca identidade que tinha escoou-se pelo cano. Era apenas a nossa inocência que nos fazia crer que aquilo era do melhor que havia.

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