quarta-feira, dezembro 20, 2006

Escusas de Tocar Outra Vez, Sam

Deleitem-se os subúrbios. Olá Brandoa, como vais Charneca?, Miratejo, tudo fixe?, props para o Bairro de Angola. O abraço mais sentido vai para Chelas, berço de personalidades ímpares na cena nacional. Creio que o próximo primeiro-ministro será de Chelas; a zona do abecedário em concreto, J, K ou L, de que ele ou ela provirá é que ainda está por decidir.
Porque se devem deleitar os subúrbios, e mais concretamente o betão colorido com graffittis de Chelas? Não, não é por causa do futuro primeiro-ministro, mas por causa de Samuel Mira e do seu novo álbum, apropriadamente acompanhado por um videoclip ultra sugestivo.
Sam, como é conhecido, estreou-se no mundo do hip-hop/ rap/ vontade incontrolável de rimar com gestos desengonçados (riscar o que não interessa; daqui em diante, designarei esta corrente artística como “YO” – para simplificar) muito cedo, daí o seu apodo “The Kid”. Tal e qual como o cowboy que lhe deve ter servido de inspiração, Sam foi intrépido e marcante logo no debute, com isso granjeando ouvidos e ouvidos que lhe deram um status privilegiado no mundo do “YO”.
Entre skates, graffittis e mais um leitor MP3 roubado numa paragem de autocarro, Sam debita versos a uma velocidade superior à da quebra dos vidros das janelas de um prédio de habitação social. É mais incisivo que uma ponta-e-mola, mais intimidador por si próprio do que quando acompanhado pela sua pandilha de aspirantes a delinquentes e mais observador que o agente policial que teima em aborrecê-lo. Ele é tão profícuo a nível lexical que os seus álbuns têm nomes que não cabem numa só palavra, tendo de as decompor em duas: “Entre(tanto)”, “Sobre(tudo)” e “Pratica(mente)”. Fabuloso. Genialidade criativa superlativa. Aposto que o próximo álbum será “Guarda(chuva)”, para aí.
Este Sam já não é a next big thing do “YO” português; ele já é a big thing. Vejam o videoclip dele. Não sei o título da música (?), nem do que ele fala (percebem-se algumas palavras soltas no meio do comboio de sons vocais que sai da boquinha afiada dele), mas suspeito que está a falar mal dos artistas portugueses que cantam em inglês e a defender os que cantam em português. Para tal, rodeou-se da sua trupe de vizinhos de Chelas, da qual nunca um bom “YO” se separa e sem a qual parece perder a faculdade de respirar, e foi assaltar uma emissora de rádio, expulsando tudo e todos do ar e transmitindo a sua mensagem de uma forma, no mínimo, um pouco agressiva. Não se coibiu de passar pelo estacionamento onde 4 personagens faziam o mesmo que eu aqui, dizer mal do mestre Sam, aparentemente à espera que o mesmo Sam fosse ter com eles e os educasse num tom ríspido – momento hilariante que recomendo. Também obteve a solidariedade, paga ou não, devidamente contextualizada ou não (quero acreditar que não, mas nunca fiando…), de Pacman, Rui Veloso, Zé Pedro e do jornalista Pedro Mourinho para a elaboração do videoclip e, eventualmente, para a tomada da estação emissora. Ecos distantes do Verão Quente, quiçá, com Pacman a dizer, num registo claramente responsável e didacta, que esse é o caminho a seguir, invadir um espaço público para impor os gostos pessoais de Sam, The Master (Formerly Known As The Kid).
Agora, permitam-me caluniar um pouco mais o Sam, já que actuo sob pseudónimo e ele já confessou não ler muito, o que me faz sentir deveras seguro deste furacão das palavras que é Sam.
O “YO” português é capaz de ser tão bom ou melhor que o “YO” americano ou francês, que nos chega ao conhecimento através desse excelente, mas levemente repetitivo, canal da grelha da TV Cabo que é o MCM. A principal diferença será que os “YO's” portugueses não conseguem arranjar carros suficientemente espalhafatosos nem mulheres deslumbrantes com grandes mamas e pequenas saias para se fazerem acompanhar. Cá não há Cadillacs abertos em Hollywood, com um clone ainda mais azeitado que a própria Jennifer Lopez dum lado e o pittbull do outro; há Citröens Saxo “tuning-ficados" a passar no Martim Moniz e as irmãs gordas do vizinho a mascar pastilha enquanto brincam com o seu novo piercing no lábio – e se conseguirem arranjar uma “dama” suficientemente provocadora, então ela tornar-se-á o objecto central do videoclip. O pittbull lá se consegue arranjar, pelo menos. Mas apesar do “YO” português estar ao nível dos demais, isso não quer dizer que o “YO” seja bom. Também não será necessariamente mau (embora para o meu gosto seja, e o meu gosto vale o que vale); é o espelho da cultura que temos hoje em dia.
E a cultura que temos hoje em dia está pelas horas da morte. Nem me refiro ao conceito “cultura” como uma forma de expressão humana; falo mesmo do estado das mentalidades contemporâneas. Particularmente num país onde reina a indiferença, o laxismo e o compadrio. Claro que Sam, e os seus amigos “YO”, se julgam virtuosos no mundo onde estão. Só que Sam e os “YO” estão apenas a aproveitar-se da degradação vigente, onde uma estação televisiva que tem como nome “Music Television” só passa, a níveis limitados, o que tem potencial comercial, por entre “reality shows” verdadeiramente execráveis importados da terra das coisas boas, os EUA, e onde o excesso de mau gosto quebra recordes emissão após emissão.
No que concerne à música em particular, é perfeitamente hipócrita a mensagem de Sam. É claro que ele defende-se com argumentos válidos, do género “não percebes nada”, ameaçando de permeio com uma carga de porrada (sempre com os seus compinchas a apoiar), Como bem notado pelas 4 personagens no estacionamento, se Sam fosse coerente, chamar-se-ia “Sam, o Cachopo”. Mas não, foi atrás dos dogmas “YO” americanos. Se Sam fosse contra a corrente, expressar-se-ia numa forma não necessariamente na moda como é o “YO” (embora Sam, que gosta de se vitimizar, considere que o “YO” ainda é “alternativo” – será que a televisão e a rádio já chegaram a Chelas, afinal?). Se Sam fosse mesmo bom, escusava de acusar outros companheiros de vida (admitindo que ele é mesmo músico). Se Sam não fosse invejoso, não se preocuparia com o sucesso dos Moonspell.
Sam diz que as grandes influências para ele são Carlos do Carmo e Ary dos Santos. Nota-se. Até diz que ouve Marco Paulo. Isto é, só portugueses. Talvez mesmo Paco Bandeira, o Demis Roussos alentejano! Este rapaz é mesmo sectário, nem os brasileiros, que também se expressam em português, lhe interessam: apenas e só produto luso. Certamente que mesmo Linda de Suza deve ter sido samplada numa ou noutra ocasião. A questão é que o “YO”, musicalmente, é mesmo isso: apropriação do trabalho dos outros. Se noutras áreas musicais ainda podemos falar em influências, em produtos demasiadamente parecidos com outros já feitos, no “YO” só falamos em influências – pois o “YO” nunca cria nada de novo, limita-se a parasitar-se em algo já feito e adicionar umas palavras que rimam e que parecem ser muito urbanamente poéticas e sagazes. Chamem-lhe o que quiserem, mas até o Emanuel é mais criativo a nível musical que o “YO” e qualquer escritor, tipo Margarida Rebelo Pinto, deve ter mais conteúdo nos seus trabalhos que este “poeta da nova geração” que é Sam, que se limita a rimar sem restrições auxiliado por um dicionário. A própria glorificação da malta “YO” como o derradeiro bastião de divulgação da língua portuguesa é algo que me incomoda e que me dá o quadro real do estado da arte da língua portuguesa: pavoroso. É a arte entregue aos bichos, literalmente.
Cá para mim, Sam só se exprime em português porque não consegue fazê-lo em inglês. Não consegue construir frases ou versos noutra língua que não a sua, e mesmo na sua língua, que é a minha, não o consigo entender. Falta-lhe conhecimento. Falta-lhe… cultura. Ele bem que queria expressar-se em inglês como o David Fonseca, os Blind Zero ou os Moonspell, ou mesmo como os Mind Da Gap já fizeram… mas não consegue e enerva-se. José Cid queixava-se que os portugueses não passam na rádio. Agora até passam, mas isto não quer dizer que cantem em português – cantam naquilo que lhes apetece e naquilo que lhes soa melhor. Sam, qual novo Cid, reclama igual atenção. Orgulhos patrióticos à parte, até a demanda de Sam parece desajustada nesta altura. Não gostas de ouvir portugueses a cantar inglês? Muda de estação – eu já nem ouço rádio, por exemplo. Muda de país – há rádios para emigrantes portugueses que só passam o que Sam gosta. Faz-me esse favor.
Deviam os visados reagir perante a ameaça de Sam? Não, senão desceriam ao nível deste rapaz conflituoso. Deveriam eles parar tudo e ignorar o que fizeram só para ouvir Sam e perceber que no português é que está o caminho? Isso seria tão absurdo como ver os Moonspell a cantar fado. E, já agora ó Sam, porque não cantas fado, esse sim, produto genuinamente português? Porque é que fazes de macaquinho de imitação dos “YO” da terra do Tio Sam? Só virtudes, este(s) Sam(s).
O rock morreu? É capaz. Levem-me ao seu funeral e deixem-me ficar por lá. Permitam aos subúrbios rejubilar com o mediatismo do “YO” do seu Sam e protejam os vossos haveres. É um conselho pacífico que Sam parece não estar disposto a dar.

2 comentários:

. disse...

Boa, boa! É capaz de ser por não saber falar em inglês ... mas tem sentido de humor saudavelmente aberto (ao incluir lá o Gomo a gozar com ele, etc) e não se fica pelo barrismo de género. Estou como os "Gato": quero é ouvir os Moonspell a cantarem o Noddy e o David Fonseca no "After all there was another".

Rodrigues disse...

Nem sabia que o gajo do carro era o Gomo... Este corporativismo da cena musical portuguesa onde todos se conhecem e todos se apoiam... Enfim, também gosto das ideias musicais subversivas apresentadas no Gato Fedorento.
Para mim, o Sam Cachopo não tem graça nenhuma - só consegue ser ridículo. O ridículo por vezes faz-nos rir. Mas não é arte comediante.