quinta-feira, dezembro 21, 2006

Dedos Pegajosos

Quando chegava ao fim de mais um dia, Eurico limpava os ouvidos. Não utilizava cotonete, servia-se do próprio mindinho. Esticava o dedinho e lá partia ele às entranhas auriculares, removendo todo o tipo de aglomerações resinosas que se acumulavam na orelhinha.
Pensava ele, filosófico, para com o tecto que fitava enquanto exercitava o seu mindinho incrustado de cera amarelada – tudo isto tem explicação, todo este nojo resinoso que extraio dos meus ouvidos aparece em quantidade proporcional às conversas que ouvi hoje. Eurico retirava cera dos ouvidos todos os dias, há largos meses. Qual prisioneiro, marcava todos os dias. Os dias particularmente porcos eram aqueles quando se estava numa aula, numa palestra, numa reunião, fosse ela de condóminos ou não. E depois os dias limpinhos, especialmente aos fins-de-semana.
- Ó Eurico, o que fizeste aos dedos? Estão pegajosos!
Eurico desculpava-se por este hábito questionável do ponto de vista higiénico. Leu numa revista que podia furar os tímpanos com aquela brincadeira. Ponderava. Valeria a pena sacrificar este medidor de interesse factual de conversas humano que é o ajuntamento de cera nos meus ouvidos? Em prol da saúde? Bem, mas se eu conseguir identificar correctamente quais as conversas que devo evitar, após análise da larga amostragem que já disponho, a minha saúde será óptima! Ouço aquilo que quero e estou certo que irei viver até aos 100!
- Está bem, Eurico, eu acredito. Para a próxima diz-me que eu guardo os teus rebuçados. Não precisas de andar sempre com eles nos bolsos, depois derretem.
Eurico acreditava em si. No seu método infalível. Em vender livros, ser guru de uma nova legião. Na ponta do dedo ao fim do mundo iria, dissecando o conteúdo semântico de cada conversa pelo meio. Do café ao cinema, do grupo de amigos ao emprego, Eurico planeou criar uma base de dados de lugares e gente, sublinhando pontos de interesse e de infâmia.
- Eurico, o chefe queixou-se de si. Diz que está sujo. Por causa de si, imagine.
Quiseram tramar os instintos de Eurico. Não reconheceram potencial comercial na tese de despiste de conversas desinteressantes pela limpeza de cariz otorrinológico de Eurico. Insistiu. Persistiu demasiado na sua tese, até a um ponto em que chegou ao pé do chefe e disse que a última reunião tinha-lhe deixado com a pele gasta de tanto esfregar os ouvidos. A gota de água que se seguiu não apanhou Eurico a nadar desprevenido no copo. Estava feliz por ter conseguido manter uma posição firme, apesar de ter perdido. Animou-se. Moral, moral, eu não ligo à moral puritana e vou continuar a tirar cera dos meus coratinhos, se tal for necessário para o meu bem-estar.
- Eurico… podes descolar o teu dedo do meu cabelo?
Eurico sentia a pressão da sociedade sobre si, cada vez mais gente a criar-lhe cada vez mais cera, caíram-lhe bolas de cera dos ouvidos enquanto andava na rua, tinha-se tornado um ser ultrajante de tanta abjecção.
- Estás bem, filho? Eurico… Fala comigo.
Perdera o controlo, todo o corpo era um bloco de cera viscosa em erupção, com epicentro nos seus ouvidos. Uma lava de cera brotou em Eurico, explodiu com toda a cera dentro de si. Ironicamente, quando Eurico pensava ter a solução, tinha afinal apenas garantido as razões para a sua morte. Quando descobriu a doença já não foi a tempo de ir buscar o remédio. Não tinha sido capaz de fugir às conversas desinteressantes. Estabelecera patamares pessoais de interesse que não conseguia acompanhar. Em todo o lado eram conversas parvas e chatas. Não existiria alguém que falasse consistentemente aquilo que Eurico queria ouvir? Isto Eurico não conseguiu prever.
Eurico foi devolvido à terra e com ele toda a cera de que se iriam alimentar os bichinhos. Deixou muitas sementes connosco, contudo. Quem não conhece alguém, pelo menos uma pessoa, que não passe o dedinho pelo ouvidito? Já alguém pensou verdadeiramente no significado que essas pessoas dão ao acto? Sabem que podem estar a pisar terrenos proibidos se pensarem mesmo a sério como o Eurico? A cera levar-nos-á à rendição. Queremos ter orgulho na nossa fé, compreensão perfeita das falas humanas nos nossos ouvidos.

4 comentários:

. disse...

"Sticky fingers" é o epíteto inglês equivalente a "mãos-leves", carteirista, amigo do alheio. Com «Sticky Fingers» os Stones criaram um marco na sub-cultura britânica white-thrash dos anos 70: "o punk junkie". Heroína, morfina, racismo, masturbação, adeus 60s.

Para levantar o ânimo (se ainda for a tempo) ao pobre Eurico nesta quadra aqui vai uma ajuda - as causa médicas da ototoxicidade, vulgo, "cera nos ouvidos":
1. Alteração da função renal.
2. Altos picos séricos da droga.
3. Tratamento prolongado (principalmente mais de 14 dias) com altas doses.
4. Idade (idosos com mais de 65 anos e neonatos).
5. Combinação da droga com o ruído.
6. Hipoacusia e zumbido prévios.
7. Combinação de drogas especialmente com diuréticos.
8. Mau estado geral.
9. Presença de otites médias.
10. Tendência familiar.

Muito bom!

Rodrigues disse...

Lindo! O melhor comentário alguma vez feito a um post neste blog, no que respeita à utilidade das informações prestadas. Sem ironia.
Bom trabalho!

PS: 11. Audição de conversas desinteressantes (só para manter em aberto a tese do Eurico)

Rodrigues disse...

O teu comentário deixou-me curioso...
Quanto ao significado de "Sticky Fingers" no calão inglês, não encontrei nada a desmentir e a filosofia que descreves encaixa-se, de facto, no espírito do álbum e da época - apenas o escolhi para título do post pelo seu sentido literal em português... e por ser, provavelmente, o melhor álbum dos Stones (também em termos de design gráfico da capa e contracapa) e seguramente um dos 10 melhores álbuns rock de sempre. Fica feita a minha homenagem.
Quanto à "ototoxicidade"... Eis uma definição extraída da Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, vol.69 (espectáculo...), nº2, Mar./Abr.2003:
"A ototoxicidade é definida como a perda parcial ou total da função vestibular e/ou coclear em decorrência do uso de drogas, geralmente com finalidades terapêuticas ou por exposição a substâncias tóxicas".
Portanto, tudo me leva a crer, acreditando nestes otorrinolaringologistas, que otoxicidade não é bem o equivalente de cera dos ouvidos, pois a cera de ouvidos dá a toda a gente (acho eu...), mesmo quem nunca tomou drogas... "Cera dos ouvidos" deverá ter um nome técnico sim senhor, mas não será este. Eu também estava a ver muitas drogas naquelas 10 razões...
De qualquer forma, enriquecemo-nos todos culturalmente mais um pouco.

. disse...

Pois, sou capaz de ter forçado um pouco a combinação. Talvez seja um efeito comum, a cera nos ouvidos... Aquela da droga com o ruído então era perfeita, extrapolando a perspectiva médica para o albúm. E esqueci-me de referir a tese do Eurico (talvez porque não a tenha percebido bem), alternativa mas também apropriada!