quinta-feira, dezembro 14, 2006

O Café e o "Café"

De entre todos os fenómenos com implicações sociológicas contemporâneas, o café será o mais enraizado. É um pretexto para inúmeros encontros, sejam eles de cariz profissional ou pessoal. É praticamente impossível discutir algo hoje em dia sem ser à mesa dum “café”, ou melhor, tasca, bar ou restaurante que foi apropriadamente renomeado como homónimo do seu produto com mais saída (e dos que mais margem comercial retribui aos donos dos estabelecimentos), como se o produto mais importante açambarcasse todo o espaço para si, desprezando outros pares como a cerveja, o tabaco, as moelas ou os pipis, só para citar alguns itens da parafernália que usualmente se encontra disponível.
- Eh pá, não estou certo que a contenção de custos passe pela reestruturação da área comercial. Não queres tomar um café para falarmos disso? – diz o director-adjunto para outro director-adjunto.
- Há quanto tempo não nos víamos! Vamos tomar um café para colocar a conversa em dia? – diz o ex-emigrante para o seu conterrâneo, ao encontrá-lo a passear junto ao adro da igreja.
Ou então no bilhetinho:
“Ronalda: gostava de te conhecer melhor. Queres ir tomar um café aqui ao café da esquina? PS: não fui eu que te apalpei no intervalo, foi o Chico Ranhoso”.
O fascínio pelo café é transversal a todas as idades, credos e estatutos sociais. Vício moralmente aceite, desperta mentes e espevita espíritos. Ganhou claramente a batalha do politicamente correcto a produtos de balcão como o tabaco e a cerveja, embora manche os dentes, contribua para hálitos imundos e esteja, consoante o gosto mais ou menos aventureiro, impregnado de cafeína. Mas o café é o café e a cafeína uma droga tida como menor. Nem sequer interessa que o seu preço generalizado tenha passado de 50 escudos para 50 cêntimos de euro em 4 anos, uma subida de 100% que nem o tabaco, que sofre de uma elevada carga tributária, conseguiu igualar – pagamos o que for preciso para sentir aquele líquido fervente a escorrer-nos pela garganta, por muito parcos que sejam aqueles breves mililitros de café. O café é um bem precioso, indispensável, é mais do que um simples prazer, não restem dúvidas.
- Então, ó Clotilde, não se trabalha? – indaga um chefe rezingão.
- Ó chefe, deixe-me tomar o cafezinho a seguir ao almoço, senão fico com tremeliques! – desculpa-se,
- Ah, então está bem. Eu aproveito para ir consigo.
A máquina de café. Altar sagrado de confraternização laboral. Por vezes, o único lugar onde se conhecem mesmo os colegas de trabalho é junto da máquina de café.
O bar que serve bicas e cimbalinos, italianas e pingados, “o café”, como é conhecido, é a maior atracção social do momento. Pululam como coelhos na planície os estabelecimentos do género. Cada subúrbio que se preze terá 10 ou 15 “cafés” na mesma rua e mesmo no interior escondido haverá um “café” central, quando não 2 ou 3. Por cada boutique de pronto-a-vestir que encerre, abrir-se-á uma loja de chineses. Ou um “café”. Toda a gente conhece, pelo menos, um gerente de “café”, mesmo que nem se beba café e só se fique pela imperial com tremoços e o cigarrinho enrolado da praxe. Já todos devemos conhecer o ritual da extracção de um café, os manípulos que há que manipular, as rodas que há que rodar, nem que seja só pela repetida observação. Todos nós nos encontramos, com menor ou maior frequência, num “café”. É lá que nos reunimos com familiares, para que não sujem a nossa casa. É lá que marcamos engate com uma mulher, convencidos do anonimato inerente a um simples casal numa mesa a beber café. É lá que nos encontramos com os amigos, porque o café que sacamos em casa não presta. Como tudo é falacioso: geralmente os estabelecimentos estão sujos, sabe-se que a gente que bebe café tem como ocupação principal espiar a mesa da frente ou do lado e o café sabe mal em todo o lado, por muito que nos tentem convencer do contrário e por muitos produtos que se adicionem.
- E suave, negro, espesso… sente-se aquela ligeira torrefacção característica dos cafés das zonas tropicais… - diz a menina do anúncio. É mentira. O café é água a ferver e suja por bagos moídos de uma planta remota e ainda por cima tem contornos aditivos. Porque não uma mania semelhante pelo chá, que também é água quente aromatizada por ervas exóticas?
- Ah, não, o chá é para meninas (Roberto, camionista).
- O chá não tem a intensidade que os grãos de cafés parcialmente moídos através de métodos tradicionais da África Central (Roberta, a menina do anúncio)
- O chá não me acorda (Rolanda, viciada na cafeína)
- O chá? Isso é para os ingleses! Café com cheirinho é que é! (Rodolfo, proprietário de um “café”).
Ah, isso é que é! Um belo bagaço, inflacionado no seu percentual etílico, despejado por cima de um líquido enegrecido e amargo, mesmo com o natural pacotinho de açúcar concentrado no fundo da xícara… uma bomba apenas ao alcance dos mais fortes. A escada natural para se alcançar um bafo respeitoso e inesquecível. Um teste de segurança ao coração.
Depois do suspiro de satisfação pelo último trago, o cigarrinho da ordem. Levanta-se um burburinho de desconforto, indignação, irritação, paternalismo e desconsolo, entre outros sentimentos residuais.
- Desculpe, não se pode fumar aqui.
- Vamos lá para fora acabar o café, que aqui a chaminé já começou a trabalhar!
- Hão-de morrer com cancro, desgraçados!
- Toda a gente sabe que faz mal, porque é que fumam?
- Estas pessoas fumam sem se preocuparem com mais ninguém! Já estou com os olhos a arder!
Se beberem um café, tudo isso passa…

1 comentário:

. disse...

O lobby do café, de Nabeiro ao Starbucks está aí para durar. O nexpresso e os cupcinos crescem como ervas daninhas e ninguém ainda se lembrou de por nos pacotes de açucar qualquer coisa a avisar quanto ao coração... Será porque nos deixa "úteis" e "produtivos" para a "sociedade"? Há as drogas "boas" (cafeína, xanax), e as outras.