terça-feira, janeiro 23, 2007

Pai, Eu Meti-me Na Política

Havia algo que, ultimamente, levantava suspeitas a Alcindo: o comportamento do seu filho Guilherme.
- Deixa lá, Alcindo… sabes como são os miúdos, quando eles são novos são muito esquisitos… – confortava Celeste, a sua mulher.
Alcindo também fora jovem, por isso sabia bem o que são as “esquisitices” da juventude. Uma bebedeira tramada de vez em quando, uma ou outra aventura fora-de-horas, um desgosto amoroso aqui e ali, uns pozinhos de excesso sortido quanto baste. O que se passava com Guilherme parecia ultrapassar, contudo, os limites do razoável. Mesmo que Celeste não desconfiasse, a teimosa natureza de Alcindo, o seu olhar clínico sobre o mundo envolvente, deixava Alcindo inquieto na busca de uma explicação.
- Tu viste o estado em que ele chegou ontem a casa, Celeste? – perguntou Alcindo, baixinho, não fossem as paredes terem mais ouvidos do que normalmente têm.
- Não, por acaso não reparei… mas ele acordou muito bem disposto, deu-me dois beijinhos na cara, ofereceu-me uma esferográfica e até quis dançar comigo uma música do Quim Barreiros…
- Pronto! Já sei o que se passa! Agora não tenho dúvidas! – interrompeu, exaltado, Alcindo, para espanto da sua mulher, que parou imediatamente de molhar o biscoito no galão. Alcindo levantou-se da cadeira, coçando o queixo, movimentando-se nervosamente à volta da mesa, perante uma assustada Celeste. Alcindo prometeu novidades nessa noite, uma vez que Guilherme voltasse da Faculdade.
Quando Guilherme finalmente apareceu em casa, os seus pais aguardavam-no com um tom excepcionalmente grave. Guilherme deteve-se um pouco, Celeste deixava transparecer alguma angústia nos olhares que dirigia alternadamente ao seu filho e ao seu marido e Alcindo, tomando a iniciativa, avançou para Guilherme, de dedo apontado.
- Meu filho, nós sabemos que se passa algo de estranho contigo. Por favor, senta-te aqui e conta-nos tudo.
- Mas… mas… do que estão vocês a falar? – gaguejou o surpreendido Guilherme.
- Nós vemos bem, filho – prosseguiu Alcindo – Deves pensar que andamos distraídos, mas nós percebemos bem… Esses comportamentos estranhos não indiciam nada de bom… por isso é melhor contares-nos tudo de uma vez só! – ameaçou Alcindo, com o tom de voz a elevar-se e a cara a ruborescer. Celeste começou a choramingar, deixando Guilherme ainda mais boquiaberto.
- Mas… não estou a perceber? Que tipo de comportamentos? – retorquiu um atarantado Guilherme, encolhendo os ombros, clamando inocência.
- Guilherme, Guilherme – sorriu cinicamente Alcindo – então tu achas que esses hábitos passam despercebidos…
- Mas o que foi? O que fiz? – atrapalhou-se Guilherme, estendendo os braços, com suores frios a invadirem-lhe a testa.
- Eu vou-te dizer: excesso de retórica, muitas promessas, discursos e atitudes populistas, demasiado cuidado da imagem, amigos seleccionados a dedo… diz-nos Guilherme, tu andas metido na política?
- Como?!? Política? Aonde foram buscar essa ideia? – reagiu Guilherme, abismado. Celeste já tinha puxado do lenço, os seus olhos avermelharam-se. Soluçando, requisitou sinceridade ao filho:
- Conta-nos tudo, filho. Somos os teus pais, queremos-te bem como mais ninguém… Precisamos de saber tudo e procurar ajuda… – e aqui começou a chorar a sério.
Alcindo manteve a sobriedade.
- Como é que te deixaste cair nessa miséria humana, Guilherme? Tu és uma pessoa inteligente, nunca te faltou nada cá em casa, sempre te demos toda a atenção deste mundo… Porquê, Guilherme?
- Eu… eu… eu acho que há aqui um equívoco. Não gostaria de prestar mais declarações nesta altura, a quente – tentou evitar Guilherme. Porém, sabia que a sua vida dupla tinha sido fatalmente exposta e Alcindo não estava pelos ajustes. Queria saber tudo.
- Não me venhas com esses discursos evasivos de político, filho! Lá na tua Associação de Estudantes podes dizer o que quiseres, mas aqui em casa tem de haver respeito! Respeito, hã!?! Por isso, o melhor é começares a falar! E já! – ordenou Alcindo, já muito vermelho. Celeste só chorava e começava a assoar-se com frequência. Guilherme apercebeu-se que teria que desembuchar.
- Pronto, é verdade, ando metido na política. Mas só na política local, nada de grandes organizações internacionais – confessou Guilherme, extravasando sinais de arrependimento.
- Eu sabia, eu sabia! – berrou Alcindo, contente pelo seu poder dedutivo, mas assaz decepcionado com a sua descoberta. Enquanto Celeste derramava ranho, baba e lágrimas apoiada no ombro de Alcindo, este inquiriu Guilherme mais um pouco – E então, já dás nos grupos parlamentares, já fazes discursos para congressos?
- Oh, pai – desagradou-se Guilherme – pensas muito mal de mim… ainda estou na política há pouco, por enquanto só ambiciono ser presidente da junta… tive um ou outro plenário onde intervim, nada mais…
- Pois, pois… ao princípio são todos assim… quando dão por eles, já estão em feiras a dar beijinhos às velhotas, querendo ser deputado… Não tens vergonha? No outro dia, chegaste a casa todo sorridente, anunciando que irias dar um novo rumo à juventude do teu bairro e eu vi logo: “Cá para mim, já experimentou a política”. Infelizmente, não me enganei – e, prosseguindo com um tom paternalista, Alcindo quis ir um pouco mais além – Então como começaste com esse fado? Começaste a ler “O Expresso”, foi?
- Sim – anuiu Guilherme, submetido ao vexame – comecei a reparar naquelas colunas de opinião… os textos longos e sem conteúdo fascinaram-me…
- Mas eu pensei que tu, Guilherme, com formação, bem-educado, não te interessasses por isso… Isso não é um modelo, filho…
- Eu gostava daqueles fatos, daquelas gravatas e daqueles carros de alta cilindrada, pai! Quem não gosta? – irrompeu Guilherme, já um pouco emocionado.
- Ninguém gosta, Guilherme! Ouviste? NINGUÉM! São só imagens para convencer os jovens, mas no fim acabam todos esquecidos e desprovidos de cargos, sem cobertura mediática… Essa gente mete NOJO! São NOJENTOS!!! – gritou Alcindo. Celeste esparramou-se em cima do sofá, em pranto:
- Oh Guilherme… porque nos fizeste isto? A nós, que te queremos tão bem…
- Desculpa, mãe… Eu pensava que podia salvar o país… e depois de ler “O Expresso”, comecei a ter ideias para pintar o muro da minha faculdade com alguma coisa anti-América… – admitiu Guilherme.
- Ah, quer dizer que andas a comprar filosofias de esquerda, não é? – prosseguiu Alcindo com o seu exercício de inspector.
- Sim, pai. Eu juro, juro pela minha saúde!, que só tenho ideias de esquerda, não quero saber da democracia cristã para nada! Social-democracia para mim é que não! – sublinhou Guilherme, para que o seu julgamento fosse mais brando.
- Não precisas de jurar, Guilherme, isso é mesmo coisa de político – corrigiu Alcindo. Virando-se para Celeste, Alcindo disse acreditar em Guilherme.
- Eu acho que ele está a dizer a verdade, Celeste… ainda não o vi a vestir-se com fatos caros, nem a fazer força para ir a uma tourada, nem a falar como se fosse de Cascais… Isto de começar-se à esquerda é natural, todos costumam ir por aí… – e, voltando-se para Guilherme, acrescentou – Mas depois de uma fase esquerdista, vêm os tiques de neo-burguês… ou tu não sabes disso, filho?
- Sei, pai… Mas eu não ia deixar que isso acontecesse… Eu ainda só discuti um par de ideias revolucionárias, nada de moções nem nada do género…
- Bah! – indignou-se Alcindo – Balelas! Descambam todos no mesmo! – bradou, antes de continuar – Quando desses por ti, já estavas ao leme de uma associação de empresários, almoçando em restaurantes de luxo e a receber luvas por debaixo da mesa! São todos iguais, essa escumalha de políticos, essa corja de intelectuais! Trastes! – vociferou. Celeste via renascer a sua esperança entre mais um soluço.
- Filho, tu podes deixar a política… Ainda só és meio socialista… Vamos ajudar-te antes que acabes como aqueles desgraçados de direita… Tanta tristeza que por ali vai… – e retomou o choro, após visualizar mentalmente o aspecto de um político neo-liberal. Guilherme deu a conhecer as suas dificuldades:
- Tentem ver o meu lado… se deixar o associativismo político juvenil, perco toda uma multiplicidade de contactos que são fulcrais ao meu desenvolvimento… eu não posso perder a socialização adquirida até aqui, quando estou em franco crescimento cívico…
- NÃO ME VENHAS FALAR CARO!!!! – explodiu Alcindo, furioso, fazendo tanto Celeste como Guilherme recuarem uns centímetros – Pareces um daqueles governantes que se vêem na televisão a fazerem figuras tristes! É isso que tu queres, É ISSO QUE TU QUERES? Ver o nome da nossa família espezinhado na rua, a vergonha nas nossas caras… “Olha, aqueles são os pais do Guilherme, o político que prometeu baixar os impostos… coitados, o Guilherme deu-lhes um grande desgosto”… “Olha, aquele é o Guilherme, o político que autorizou a construção de uma urbanização em plena paisagem protegida… apetece-me bater-lhe com força, se ele não estivesse assim tão bem vestido e se eu não morasse lá… Olhem bem aquela vaidade degradante…”
- Desculpa pai. Eu posso ter ido longe de mais. Desculpa pai. Desculpa mãe. Eu vou deixar de ver o Rogério e a Clorinda – anuiu Guilherme, pausadamente, sensibilizado pelos argumentos do seu progenitor.
- Está a prometer algo, filho? – questionou Celeste, lá do fundo do sofá.
- Não, não! – emendou Guilherme, de olhos bem abertos – Eu vou tentar deixar os meus amigos.
- Assim está melhor, já é um começo – agradou-se Alcindo – E quem são o Rogério e a Clorinda?
- O Rogério é o filho do Presidente da Câmara, está a tirar um mestrado em direito empresarial, não fuma, não bebe, não faz amor e não faz praticamente nada na vida, apesar de andar sempre com grandes carros. Quanto à Clorinda, só sei que se veste bem e que vai muitas vezes ao estrangeiro. Diz que conhece muitos embaixadores e que já jantou com eles várias vezes. Também não fuma nem bebe, mas suspeito que faça amor… na verdade, acho que ela é ninfomaníaca por corpos diplomáticos.
- Ai, as más companhias, filho… – constatou Celeste, de voz embargada, enquanto secava as pálpebras.
- Não digas mais nada! – torpedeou Alcindo – Vamos já descobrir um clínica de reabilitação longe daqui e trazer-te de volta para aquilo que sempre foste: um rapaz humilde, educado, bem-formado e sem vícios ambiciosos! E é mesmo para já! – avisou, pegando na lista telefónica.
Guilherme não tinha escapatória. Abalou para uma terra perdida com vistas para o Marão na procura de uma cura para o seu problema. Aí, teria de perder o hábito de ler textos opinativos, abolir qualquer filiação partidária ou corporativa, evitar contacto visual com crachás, pins, cartazes e outros artefactos propagandísticos, abandonar a tentação por um debate e rejeitar qualquer ideologia extremista, por muito bem intencionada que fosse. Teria igualmente que largar o seu círculo de amigos e nem podia pensar em ter almoços onde se discutissem assuntos considerados de relevo. Obviamente que qualquer tipo de acto levemente corrupto ou qualquer indício de compadrio ou favorecimento por meio de amizades estabelecidas estavam rigorosamente proibidos. Os seus novos companheiros seriam os pastores que apenas conseguiam grunhir três palavras por cada frase e os animais do campo.
Essa clínica de reabilitação para a vida civil tinha muito sucesso – sendo flagrante o caso do ex-autarca de Mogadouro que agora consegue podar videiras com uma mestria assinalável e que adquiriu fobia a gabinetes e reuniões. Guilherme não podia desiludir os pais. Agarrou esta hipótese com as duas mãos. E, daquela vez, não prometeu nada a ninguém, nem sequer beijou nenhuma velhota. Não. Guilherme iria vencer aquele flagelo.

1 comentário:

. disse...

Ainda tem mais piada à segunda leitura. Lembra-me um sketch do Miguel Guilherme no Herman Enciclopédia sobre o animal político.