quinta-feira, dezembro 06, 2007

Descartável e Biodegradável

Nepomuceno não se sentia confiante. O ambiente dos últimos dias tinha sido, literalmente, de cortar à faca – uma auxiliar de limpeza deixara cair uma faca de cozinha em cima do pé do director-adjunto anteontem e este fora despachado com um corte profundo para o hospital. Algo estava mal. As caras que nunca foram muito alegres tornaram-se ainda mais sisudas e já ninguém tinha paciência sequer para contemplar as pernas da secretária loura de mini-saia ou para entabular conversas sobre futebol. Respirava-se mal e não era só devido à deficiente calefetagem ou ao ar-condicionado obsoleto. Cada dia era como uma temporada na selva a fugir das feras selvagens e da trapaceira vegetação. Nepomuceno fora convidado ao gabinete do chefe.
- Nepomuceno, estive a analisar o seu comportamento e… não sei, sabe? Acho que você não está bem enquadrado aqui no seio da empresa…
- Mas, Júlio, entrámos na empresa ao mesmo tempo, há quase quinze anos…dei formação a maior parte do pessoal qualificado aqui do departamento…andámos na escola juntos e até namorámos as mesmas tipas…tu conheces-me muito bem, apesar de agora seres meu chefe…
- Oh Donato, isso para mim é irrelevante, sabe?
- Nepomuceno.
- Ou isso. Vou ser muito directo consigo: eu não gosto de si.
- Mas… mas… porquê Júlio? O que é que eu fiz?
- Olhe, a sua mãe é muito parecida com o Nuno Gomes, mas com bigode. Isso é simplesmente devastador.
- Mas, Júlio, tu nem conheces a minha mãe… ela está no exílio desde que nós nos conhecemos…
- Pronto. Você escova os dentes demasiadas vezes por dia. É perfeitamente insuportável.
- Mas eu nem sequer escovo os dentes...
- Olhe, sei lá, tenho novos planos para si.
- Vais-me despedir, Júlio?
- Vou.
- Não acredito!... Depois de tudo o que fiz por ti…
- Olhe, o melhor que você alguma vez fez por mim foi ter ficado calado na reunião da semana passada, está a perceber?
- E o rim que transplantei para te ajudar naquela crise renal aguda que tiveste em ’93, Júlio? Não conta?
- Pronto. Isso pode contar. Mas não chega.
- Não pode ser!...
- Está bem. Estava a brincar. Não lhe vou despedir.
- Então?...
- Vou reutilizar-lhe.
- Como?
- Estive a analisar a sua morfologia, Wilson. Você tem aspecto de ser descartável. Mais do que isso, biodegradável.
- Hã?
- A nossa empresa tem de apostar nas novas práticas ambientais. E tem de manter a competitividade. Isto é, dar uma imagem de preocupação social e simultaneamente reduzir custos. Os custos reduzem-se através dos despedimentos dos excedentários, não julgue que vou perder as minhas regalias, Carlitos. Se não vamos com a cara dum trabalhador qualquer, evitamos as discussões com os sindicatos, não despedindo esse imprestável, mas sim reciclando-o.
- Eu… ser reciclado?
- Exactamente, Genoveva. Você já pensou que a sua gordura pode ser utilizada em produtos de limpeza? E os seus ossos para equipamentos industriais de precisão? E os seus olhos para brindes a oferecer às crianças no Natal? Até o seu sangue pode ser recolhido e utilizado para uma futura transfusão, para quem seja hemofílico, por exemplo… olhe, a minha mulher, por acaso, até precisa do seu sangue, que é dum tipo raro… E o resto que não interessar é queimado para fornecer energia ou reaproveitado para revestimento de secretárias… Você ainda pode ser muito útil para a empresa e nós podemos conquistar uma medalha por mérito ambiental, o que faria disparar as nossas vendas.
- O quê? Júlio, estás a brincar comigo!
- Não estou, não. Desta vez não estou. Você vai ser abatido como um porco e vamos aproveitar tudo o que puder ser aproveitado de si. Mas mesmo como um porco, com um facalhão a atravessar o seu lombo para o sangue escorrer todo para dentro dum alguidar… não está a ver gastarmos electricidade com choques eléctricos, agora que implementámos um programa de eficiência energética, pois não, Bam-Chi-Wakh?
- Eu…
- Quer ter três segundos para pensar nesta oferta?
- Eu exijo…
- Já passaram. Vamos imediatamente transportá-lo para o matadouro. Você tem prioridade sobre as vacas que estavam marcadas para as cinco horas. Estou muito contente com o seu envolvimento, Bruce. Mas olhe que pessoalmente ainda não simpatizo muito consigo, sabe?
- NÃÃÃÃÃO!!!!
Pois, o ambiente estava literalmente de cortar à faca. Racionalização, contenção, sustentabilidade, substantivos modernos que rimam com sacrifício, Nepomuceno sentiu no corpo a dor que eles podiam infligir. Poucos sabem o quanto ele guinchou antes de ser congelado numa arca encravado num gancho suspenso para futura utilização. Na empresa, todos murmuravam sons macambúzios entre olhares frios e andares furtivos, remoendo o mal-estar, rezando para que fosse o vizinho do lado o próximo a ser chamado de urgência ao gabinete. Sinal inevitável dos tempos ou simples colheita do que foi semeado, alguém que se dedicasse a estudar. “É a vida”, lamentavam-se.

Sem comentários: