sexta-feira, dezembro 28, 2007

A Minha Irmã

Lembras-te da minha irmã? De quantos erros ela cometia com aqueles olhos que nunca piscavam? Não conseguia perceber. Eu juro que ela era capaz de ler a tua mente, a tua vida, as profundezas da tua alma com um rápido olhar. Talvez ela estivesse a revelar-se a ela mesma, dizendo

“Aqui estou eu, isto sou eu
Eu sou tua e tudo sobre mim, tudo o que vês…
Se pelo menos olhasses suficientemente bem…”

Eu nunca consegui.
A nossa vida era uma luta de almofadas. Ficávamos ali em cima da colcha, as nossas mãos cerradas e prontas. Ela com os seus dentes de leite, demasiado avançados para a idade, e com um canivete na mão. Ela dilacerou os pneus da minha bicicleta e eu não consegui perdoá-la.

Ela cegou com cinco anos. Íamos para junto da janela e ela fazia-me contar-lhe o que eu via. Eu descrevia-lhe as casas em frente, o pequeno pedaço de relva junto ao passeio, o portão com as suas dobradiças podres, para sempre aberto de par em par, o tal que o pai iria sempre consertar. Ela ficava ali quieta por um momento. Eu pensava que ela estava a tentar criar as imagens na sua cabeça. E então ela dizia:

“Eu consigo ver pequenas estrelas a brilhar,
como se fossem luzes de árvores de Natal em janelas distantes.
Anéis de pedras com cores berrantes
a flutuar em torno de planetas laranjas e amarelados.
Eu consigo ver enormes peixes às riscas como os tigres,
perseguindo pequenos pontos azuis e amarelos,
todas as caudas e barbatanas e borbulhas.”

Eu olhava para a casa cinzenta em frente e corria o cortinado.

Ela pegou fogo à casa quando tinha dez anos. Eu estava a acampar com os escuteiros. O bombeiro disse que ela tinha estado a fumar na cama – a velha história, pensei. O gato e a nossa mãe morreram nas chamas, então o pai levou-nos para ficar com a nossa tia no campo. Ele regressou a Lisboa para nos encontrar uma nova casa. Nunca mais o vimos.

No seu décimo terceiro aniversário, ela caiu dentro do poço do jardim da nossa tia e partiu a cabeça. Ela tinha estado a beber forte e feio. Enquanto recuperava, a sua visão reapareceu; “um acaso da natureza”, todos disseram. Foi quando ela disse que nunca iria piscar os olhos novamente. Eu dir-lhe-ia, quando ela se atirava sobre mim com os seus olhos arregalados e humedecidos, que eles lembravam-me o poço em que ela tinha caído. Ela gostava de ouvir isto, fazia-lhe rir.

Ela foi viver com um professor de ginástica aos quinze anos, todo ele músculos. Ele perdeu o seu emprego quando tudo foi descoberto e não conseguiu arranjar outro. Não naquele de tipo de cidade pequena. Toda a gente conhecia as vidas uns dos outros. Apesar de tudo, a minha irmã andava sempre de cabeça erguida. Ela dizia estar apaixonada. Eles estiveram juntos durante cinco anos até que um dia ele perdeu a paciência. Ele deu-lhe com um haltere na parte de trás do seu pescoço. Ela perdeu a sensibilidade na parte direita do seu corpo. Ele apanhou uma condenação de três anos e saiu ao cabo de quinze meses. Nós vimo-lo passado pouco tempo, estava a treinar uma equipa de futebol amadora na região litoral alentejana. Eu julgo que ele não a reconheceu. A minha irmã tinha engordado bastante por estar sentada todo o tempo. Ela fazia-me espetar alfinetes e apagar cigarros na sua mão direita. Ela ria-se como uma doida porque não a aleijava. A sua mão esquerda estava bastante boa, porém. Nós brincávamos ao braço-de-ferro, eu tinha que usar as duas mãos e mesmo assim ela ganhava.

Enterrámo-la quando ela tinha trinta e dois anos. Eu e a minha tia, o padre e o homem que cavou o buraco. Ela disse que não queria ser cremada e que queria um caixão barato para que os vermes pudessem entrar rapidamente nela. Ela disse que gostava dessa ideia, embora eu pensasse que era tudo devido ao que acontecera ao gato e à nossa mãe.
(Tradução apressada de "My Sister", dos Tindersticks)

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