quinta-feira, janeiro 10, 2008

Bingo

Dois cães a copularem na rua. O afã do macho, a passividade da fêmea, patas ao alto, línguas de fora, já está. Márcio reconheceu-se. Lembrou-se de Ludovica. De quando ela se lamentara, “nós não fazemos amor, nós temos sexo”. Pois é, somos animais. E com isto, Márcio adquiriu uma revista de computadores no quiosque, sacando da nota mais alta que tinha na carteira e ostentando-a ao vento. Que é para não haver dúvidas: era racional, era mais que um animalzeco, ao fim ao cabo. Não era um rafeiro comum. Era culto, sabia ler, tinha posses. Tudo o que não parecesse premeditado era no fundo um cálculo programado, uma manobra de diversão para incautos. Tudo era planeado, até as eventuais debilidades que se quisessem mostrar. Se as houvesse, claro. Ludovica, essa, perdera a sua vida atrás dum balcão qualquer e Márcio perdera o gosto por ela ao fim de umas poucas relações. Tinha perdido o apetite e ela começara a ganhá-lo desmesuradamente. Já não a suportava.
Se a vida é uma roda viva de emoções, então parassem-no lá em cima. Não foi ele que inventou a tecla “Insert” nos teclados. Vivia bem com isso. Das aparências à realidade vai uma bela distância. Do sexo ao amor vai outra. Da desilusão à verdade é que nem por isso. Infelizmente para alguns. Parassem-no lá no alto e deixassem-no a contemplar as vistas, que isto cá em baixo é de loucos. Alguém disse que somos turistas nesta vida, já não sei quem, mas devia ser muito bronco, e nós nunca sabemos bem se era ao certo, nunca ninguém nos dizia onde tirar as melhores fotografias e como evitar os bairros problemáticos. Lera numa revista: alguém clamara que esta vida terrena era um passeio, talvez tenha sido numa coluna do social, e, de facto, Márcio passeava-se com uma revista de computadores debaixo do braço, de bolsos recheados. Passeemo-nos, então. Mas a cidade era sempre a mesma.
As moscas teimavam em não mudar e zumbiam forte. Era um desespero. Isto afinal é mesmo um passeio, porém é um passeio aflitivo, pleno de sobressaltos e obstáculos. Márcio encalhara. Nas contradições, nas perífrases e na estupidez de recursos e figuras de estilo que só fazem falta aos poetas, mas também porque à sua frente não se andava para a frente. Reflectia consigo para não reflectir com mais ninguém e abstraía-se do resto. Márcio parara. Pessoas em linha no passeio passeavam com desdém pelos apressados, como se quisessem fazer bingo em cima do passeio.
Torneada essa canalha de pessoas despreocupadas que Márcio detestava, e invejava, por que não admitir?, voltou a esquina e pisou um pedaço de vómito. Ou seria apenas uma refeição dalgum sem-abrigo? Talvez. Dava sorte. Também diziam isso. Quem se referia muito a esta frase era a Isaltina. A Isaltina tinha um grande peito e estava sempre a pisar merda. Três-meia-volta, a Isaltina estava com os pés em cima da merda e justificava assim a sua azelhice natural. Ela desapareceu algures no passado de Márcio e esse talvez tenha sido o seu grande azar. Ou sorte. Tudo pode ter mais que uma interpretação, talvez mesmo as fórmulas matemáticas que Márcio desconfiava. Agora o peito de Isaltina estaria flácido e ela moraria num quarto alugado na baixa, contara-lhe uma amiga comum. Prostituía-se por dinheiro, pois claro, ninguém se prostitui por amor, ou por compaixão, ou por qualquer outra coisa bonita. O dinheiro pode ser bonito. Se for nosso, evidentemente. Isaltina podia prostituir-se por ser apenas uma devassa, mas não, não era uma hipótese credível. Não tinha estaleca intelectual para tanto. Márcio deplorou o sucedido e no seu íntimo insultou o sem-abrigo que fedia na esquina. Abominava pobres. Materiais e de espírito. Mas seguiu em frente. Seguiu para bingo.
Que bonita expressão. Que exemplo de movimento e proactividade. Márcio deu uma vez por si a espreitar a vizinha da frente e soltou para si “bingo!, eu bem sabia que a vaca se despia à janela”, apenas por descuido, claro, era mesmo estúpida a tipa. Ela nunca lhe passou cartão, contudo. Nem premiado nem outro de qualquer espécie. Não devia estar destinada para si, tanta era a sua ignorância. Mas a ignorância vencera, a todos e a Márcio em particular, mais uma vez. Era um resultado que já não surpreendia. Márcio não tinha como a atrair. Deu por si, sozinho com o seu belo ego , a masturbar-se com a visão dela, assumindo a derrota final – se não podia tê-la, tinha a sua mão, a formalização corporal do seu espírito naquele momento. Renúncia ao jogo no seu estado mais puro. Batotice sentimental com contornos de vício. Assim era fácil. Não custava nada, nem ao coração, nem à cabeça, a mão não se queixava. Márcio olhou para a porta. Estava fechada. No interior, pelo meio das grades, espreitou o salão. Mas ainda faltava um pouco para a abertura.
Jogar por jogar é banal. Márcio jogava a dinheiro, ia ao bingo. Assim como assim, podia estourar o dinheiro em álcool ou em sexo, mas preferia arriscar para ganhar mais. Ou podia perder tudo. Enfim, o que haveria de perder? O seu malfadado orgulho? Onde ele estaria? Talvez numa bola acertada que lhe preenchesse a linha e o fizesse soltar um grito de vitória. Pouco importa. “Ganhar mais”, isso sim, ter um motivo para se vangloriar, um telemóvel com muitas luzes, notas de 100 euros a florirem dos bolsos, um ror de exibicionismos tal que até custa pensar. Não há que pensar muito. As coisas grandes da mente vinham ter consigo naturalmente. A sua racionalidade era suficiente para proporcionar um elevado índice de espontaneidade sucedida. O que quer que isso fosse. Márcio deu mais uma volta ao quarteirão, mais um giro, mais uma revista especializada e quando chegou já a porta abrira. Sentou-se na mesa do costume e seguiu em frente, no bingo, para bingo.

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