domingo, abril 27, 2008

Essa Doeu

Treinador (T) – Olha para estas críticas. Estão a dizer bem de ti.
Avançado de costas voltadas para o golo (A) – Ainda bem.
T – Ainda bem o car****. Passaram a temporada inteira a dizer que não valias nada. Insinuaram que o nosso departamento de prospecção estava feito com os empresários. Só agora te reconheceram valor. Oportunistas!
A – Marquei dois golos de belo efeito, mister.
T – Bah! Tiveste sorte. Tens de mandá-los dar uma curva, Serguey.
A – Eu respondo dentro de campo, mister.
T – Já sei o que vais fazer. Vais marcar um auto-golo na próxima jornada. Só para contrariar os elogios destes jornalistas. Eles vão sentir-se envergonhados por fazeres tanta burrada depois de te estragarem com elogios.
A – Mas, mister… Isso vai afectar os objectivos da equipa.
T – Eu quero que os objectivos da equipa se fo***! A nossa vida já está difícil, de qualquer maneira. Quero é calar a canalha dos jornalistas, trocar-lhes as voltas; quero que eles sintam vergonha daquilo que escrevem semana após semana!
A – Isso parece-me contraproducente. Devemos alhear-nos disso e concentrarmo-nos nos objectivos da nossa direcção.
T – Não sejas estúpido. Nós já não temos objectivos. Nunca os tivemos.
A – Bem… Eu não sei se consigo marcar um auto-golo…
T – Claro que consegues… com a tua tremenda falta de jeito, há-de ser fácil… se não for um auto-golo, que seja uma agressão violenta ou um duplo amarelo desnecessário.
A – Bolas, mister, mas o mister acredita ou não no meu valor?
T – Sinceramente?
A – Seja sincero comigo, mister.
T – Não.
A – Oh, fo**-se! Como é que hei-de render se nem o meu próprio mister acredita no meu potencial?
T – Não me venhas com desculpas. Sabes bem que tens dois pezinhos que parecem dois blocos de cimento e uma cabeça mais deformada que um acordeão furado. O teu potencial é algo imaginário.
A – Então porque me vieram buscar, se eu estava tão bem no recato da segunda liga cipriota?
T – Estava bêbado quando vi as cassettes de vídeo. Parecias-me um tipo espectacular. Mas eu queria era contratar o nº7.
A – Não acredito!
T – Acredita, Serguey. Não vales muito. Mas também não mereces que esses pulhas dos jornalistas andem sempre em cima de ti. Era sempre “Serguey, a risota”, “Serguey mete dó”, “Serguey equivocou-se na profissão”, mas agora foi “Serguey magistral”. Sacanas! Eu sempre a meter-te a titular na esperança que marcasses um golo. E agora marcaste dois! Mudaram logo as críticas! Não aguento esses gajos! Tens de fazer mer** da grossa já na próxima jornada! E depois tens de tentar fazer o jogo da tua vida!
A – Quer dizer que os nossos objectivos passam agora por confundir os críticos?
T – Sim.
A – E o presidente, o que vai dizer?
T – O presidente já está por tudo.
A – E como é que o grupo vai reagir?
T – O grupo só espera pelo fim da época. Não vai reagir. Não vai agir. Não vai fazer nada, parece uma cambada de vegetais ligados à máquina. Temos sorte se conseguirmos fazer três passes seguidos.
A – O mister teve aulas de motivação de equipas?
T – Não. Baldei-me. Fiquei a comer presunto com melão no hall de entrada e a beber moscatel enquanto engatava a relações públicas do curso.
A – Onde me vim meter…
T – Olha lá, algum respeito! Ao menos tenho planos para ti.
A – Isto não me parece muito desportivo…
T – O futebol é tudo menos desporto, Serguey.





A – Mister?
T – Sim, Serguey?
A – O mister ainda me ama?
T - …
A – Ama-me, mister?
T – Isso é difícil de explicar, Serguey.
A – Devo depreender que não me ama mais, mister. Como deixamos que isto acontecesse?
T – Eu…
A – Sim?
T – Eu ainda te amo, Serguey. Talvez já não de uma forma tão carnal como dantes, mas ainda te amo enquanto meu pupilo.
A – Então porque me maltrata desta forma, exigindo que eu faça algo que não consigo fazer?
T – O amor é assim, Serguey, uma bola que vai à trave, um falhanço escandaloso, uma queda aparatosa na área. O amor é uma bola nova da Adidas, daquelas que nunca se sabe qual é o rumo que vai tomar.
A – Não, mister, o amor não é isso. O mister não sabe o que é amar.
T – Está bem, posso não saber. O que eu quero é que entres em campo e te lembres de tudo de bom que escreveram sobre ti para fazeres mal. E vice-versa. Que faças o possível para contrariá-los.
A – Mister?
T – Sim, Serguey?
A – Estou confuso. Dê-me um beijo.
T – CHUAC!
A – Esse beijo não teve paixão.
T – Eu não tenho paixão, acho. Tenho é uma vontade enorme de estragar a vida dos críticos.
A – É triste viver com o ódio embrenhado no coração.
T – Cala-te, Serguey. Mostra-me apenas o que não vales.
A – Não sei se consigo.
T – Só precisas de ser tu mesmo.
A – Enfim… amamo-nos?
T – Amamo-nos, Serguey.
A – Bem, deixe-me então ir treinar atrasos ao guarda-redes…
T – Sim, vai… e lembra-te: para além de teu treinador, e teu amante secreto, sou o pior melhor amigo que alguma vez tiveste.
A – Não percebi.
T – Ninguém me percebe, Serguey. Nem mesmo quando jogo em 4-3-3.

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