segunda-feira, julho 13, 2009

Um Texto Sobre Nada

Não é fácil esvaziar nada do seu conteúdo. Nada tem muito que se lhe diga.

Tal quando eu te pergunto o que se passa e tu dizes “não se passa nada”, todavia eu vejo-te a babar como um cão à porta do talho enquanto vês o teu ex-namorado abraçado à tua ex-melhor amiga da maneira que tu sempre quiseste que ele te abraçasse e que ele nunca foi capaz de te abraçar, a entrar dentro do restaurante a que ele nunca te levou a comer a lagosta e que dantes lhe fazia uma enorme alergia, contigo ali a presenciares todo aquele filme de romance que já não era o teu sem seres capaz de fazer uma crítica isenta como um bom crítico de cinema, a espremeres os teus próprios lábios como um palestiniano não apertaria o pescoço a um judeu.
Tal quando eu digo que “está tudo bem, não é nada”, mas eles fracturaram o meu orgulho de forma exposta e levaram-no arrastado por duas mulas epilépticas pelas ruas em paralelepípedos desta cidade suja, para que toda a gente pudesse cuspir ácido em cima das suas feridas fundas um pouco mais, não fosse ele capaz de ressurgir de novo.
Tal quando ouvimos “não dói nada”, mas aquilo custou os olhos do nosso corpo todo e mais alguns que hipotecámos ao banco e nós nem sequer ficámos com uns pensos rápidos para camuflar os arranhões profundos da nossa inveja, nem com pasta de dentes para branquear o sorriso amarelo da nossa felicidade comprada em promoção.
Tal quando dizemos “não sei de nada” mas escondemos e conservamos o relatório detalhado de tudo aquilo que afinal conhecemos para referência futura, não vá o boomerang fazer a curva mais cedo que o esperado.
Tal quando lemos “não tenho nada contra”, mas nas entrelinhas existem chispas de sangue e olhos faiscantes de fúria demasiado evidentes, como se a tipografia se tivesse equivocado a colocar o nada e quisesse ter colocado o tudo.

Sabemos que o maior preconceituoso é o anti-preconceituoso, porque é ele quem procura o preconceito e dele necessita para sobreviver.
Sabemos que a hipocrisia é a roupa que veste o rei, nesta terra onde quem tem meio-olho cheio de ramelas já o é, e se não fosse a hipocrisia um enorme outlet acessível a toda a gente, já há muito que os monarcas dos nossos bairros iriam nus.
Sabemos que a meta-linguagem é apenas um termo bonito para andar às voltas de um abecedário e de um teclado de computador sem parar, sem concluir alguma ideia, sem nada dizer em concreto.

Mas… nada? O que é afinal o nada? Não conseguimos reduzir nada ao absurdo. Pelo contrário, tratamos nada como um absurdo. Nada serve para tudo. Tudo serve para dizermos que não é nada.
À falta de melhor explicação, nada é qualquer coisa diferente de conjunto vazio. Nada é aquilo que mói. Nada é a vergonha em reconhecer. Nada é tudo menos a insignificância que nos tentam impingir. Nada dificilmente será invocado pelo seu sentido literal numa sociedade que vive de aparências.
Mais qualquer coisa que isto e a definição do uso que correntemente atribuimos a nada corre o risco de ser nada, no sentido estritamente clássico do dicionário.

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