terça-feira, agosto 11, 2009

Apenas F

Parece que não vens jantar. E desta vez até tinha preparado um molho de natas e cogumelos. Prometi que sabia fazer algo mais que fritar ultracongelados. Está visto que me enganei no timing. Assim fico sozinho e com um espírito semelhante aos últimos álbuns do Radiohead. Ou seja, muita produção e muito hype para nada, um estado de alma levemente zarolho e completamente amorfo enquanto olho para a televisão sem conseguir ver quase nada. Sou um homem sozinho, com todas as consequências parvas que daí advêm. Na MTV ensina-se a ser-se gay, pois isto da heterossexualidade é do mais careta que pode haver.
- É engraçado – disseste tu.
E não te referiste ao molho, mas sim à televisão. Eu quis acreditar que era em relação ao molho, mas naquela altura o molho já era uma espécie de água branca e fria onde boiavam cogumelos laminados e deslavados. Ninguém pode dizer que aquilo é engraçado. Mas há muita gente que acha graça aos ténis do Seinfeld e que pensa que o Markl inventou a roda da comédia, pelo que havia uma hipótese, remota, do cogumelo ferido na sua dignidade comestível ser realmente divertido. Mas não. Aquele cogumelo estava morto.
Embora ninguém diga mal de quem acabou de morrer, é verdade que nem eu consegui elogiar aquele molho. Quem morreu passou definitivamente desta para melhor, porque vai ser alvo dos mais variados elogios e na altura da morte todos os defeitos se evaporam com a alma que vai para o céu. Agora percebo essa expressão de “ir desta para melhor” e a glória de quem morre. Que no fundo é a mesma glória de quem é vivo, mas sem aquela característica tão particular de quem está morto, que é ficar quietinho e frio à espera que alguém se lembre de limpar a campa de quando em vez e encharcar o chão fofo do cemitério com lágrimas e odes lamechas. Morrer é fixe. Viver sim, é difícil e pouco gratificante.
Senti isto quando marquei aquele golo espectacular à meia-volta. Fui a correr até à linha lateral e procurei por ti nas bancadas. Depois beijei o anel e apontei na tua direcção. “Este é para ti”. Se eu estivesse morto, seria um delírio, um choro imenso, uma recordação passada em câmara lenta. Infelizmente, ainda estava vivo. Não vi grande festa. As costumeiras palmadinhas nas costas, as palmas de sempre, mas nada por aí além. Eu posso jurar que foi o golo do século, mas tu apenas a custo arrancaste um sorriso, preferindo a companhia inestimável do telemóvel. Julgo que os teus polegares já estão oponíveis a tempo inteiro, tal é o ritmo frenético com que te dedicas a mandar mensagens, a jogar paciência e a experimentar toques. Tens quatro telemóveis e levaste-os a todos para o jogo. E não foi para tirar uma fotografia ao melhor golo de sempre. Nem sequer ao marcador do melhor golo de sempre. Foi apenas para os telemóveis apanharem um bocado de ar e desentorpecerem os botões como se fossem uma matilha de animais de estimação à rasca para urinar contra um poste. Não compraste queijadas de Sintra e ficaste sentada a digitar depois do jogo ter acabado, até seres expulsa pelo próprio vendedor de queijadas, que já não podia ouvir o som irritante dos teus avisos de recepção.
- Acho que estou doente – disseste tu, e eu achei que isso era muito natural, porque já estava um cheiro nauseabundo na cozinha devido ao teu laxismo na arrumação da louça suja e alguma bactéria deve ter-te provocado uma infecção. Fiquei com pena, fiquei consternado. Não parecia ser a Gripe A, que até é uma doença porreira, por afectar também o Cristiano Ronaldo e obrigar as pessoas a lavar as mãos como se lavar as mãos fosse uma necessidade vital apenas descoberta recentemente. Parecia ser daquelas doenças degenerativas, em que a cara nunca fica a mesma, os olhos parecem cada vez mais miseráveis e os movimentos tornam-se arrastados, desastrados, desconexos. Mas não havia nada que eu pudesse fazer, apenas acreditar na ciência, nos santos, nalgum clique curativo instantâneo. Eu sempre fui mais do estilo “contem comigo para a festa mas já sabem que não tenho dinheiro para pagar a conta dos estragos”. E então convidei-te para o cinema.
- Não tenho vontade.
Podíamos ir a casa dos nossos amigos que têm óptimas fotografias para mostrar da sua viagem a Cuba.
- Não gosto de ver as viagens dos outros.
Então e se fossemos foder como se não houvesse amanhã, sabendo que não há muitos mais amanhãs por aqui?
- Poupa-me.
Poupada andavas tu. Em termos de sexo, bem entendido, que no resto nem por isso. Passavas dias sem me dirigir a palavra embora te tenhas tornado a melhor amiga do meu cartão de crédito. Esse galã desejadíssimo já conhecia quase todas as máquinas das redondezas, era um objecto promíscuo que dava a sua banda magnética a ler fizesse frio ou calor, que aconchegava o seu chip aqui e ali, ao sol ou à chuva, sem nunca parecer cansado. Ele era roupas e jantares, gasolina e presentinhos, um daqueles dias em que apareceste noite dentro, porque fazias “tratamento específico em horário pós-laboral” quis fazer as contas totais mas parei a meio, por falta de coragem, por cansaço, porque aquela conta estava a definhar a olhos vistos. Tinhas contaminado a minha carteira com a tua doença. O que quer que ela fosse.
Mas um dia cheguei a casa mais cedo e assustei-me quando dei por ti já na cama. Não era por ti. Só não esperava encontrar a Stefany junto contigo. Entre um misto de vergonha e estupefacção tu não conseguiste dizer que não. E eu, que julgava que ter duas mulheres juntas na minha cama seria o auge sexual da minha vida, não consegui encontrar motivos para sorrir. Todos aqueles sonhos em que elas se comiam uma à outra e depois a mim, num jogo incessante de troca de saliva e de posições kamasutrenses, caíram por terra como um pénis com o inverso do Viagra em cima. Foi como ver a minha septuagenária e flácida tia não depilada a abrir as suas pernas carregadas de varizes num matadouro. Não foi engraçado. Elas não me queriam ali. A Stefany foi-se embora como um bom homem deve ir: de cabeça erguida, olhando-me com a petulância possível num caso em que a casa era minha, a cama era minha, a mulher era minha, ainda e pelo menos em termos oficiais, mas era como se eu fosse o estranho por ali. O facto de eu estar bem parecia uma afronta enorme para ti e para ela. Tu acendeste o cigarro e ficaste ali na cama, tal e qual como um homem depois do trabalho feito. Se vocês chegaram a acabar o trabalho, não sei, desconfio que não.
Mas agora tudo ficou mais claro: percebo a mudança no teu guarda-roupa, pois ao saíres tu própria do armário atiraste para fora do mesmo armário os vestidos pomposos com os quais já não te identificavas, consigo compreender as razões porque consideravas o Miguel Vale de Almeida um intelectual com pés e (muitas) cabeça(s), porque é que achavas o Denim melhor que qualquer Calvin Klein for women e porque, enfim, fui encornado mansamente este tempo todo sem nunca ter desconfiado de todas as tuas justificações para o teu desinteresse galopante. Na verdade, não se tratava de outro homem, o que seria quiçá mais enervante, mas mais facilmente resolúvel. Era apenas uma wannabe de homem, o que podia fazer? Descer ao mesmo nível? Elevar-me para outro patamar? E agora? Pensei em apresentar queixa à Autoridade da Concorrência, mas depois pensei que nada podia fazer contra duas vaginas em fricção que nada desejam de um pénis honesto como o meu. E esse pénis permanece convicto, apesar de tudo. Ele há-de resistir. Isto é tipo um fogo incontrolável na floresta em que os bombeiros apenas tentam salvar as casas – o resto, leia-se, o corpo feminino, é bonito e dá saúde, mas não havia nada a fazer neste caso. É deixá-las roçar.
E percebi finalmente que o cabelo que aparaste curto não se devia à quimioterapia. Eras apenas fufa.

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