sexta-feira, agosto 14, 2009

Tudo Pelos Bebés

[Câmaras a postos, flashes incessantes, microfones espalhados em cima da tribuna, onde se vêem vários artigos dos patrocinadores expostos – Bebécar, Chicco, Playmobil e Durex, entre outros, bem como um dildo em forma de urso de peluche; algum burburinho; assessor sai detrás da cortina e senta-se na cadeira mais à direita; faz um compasso de espera e um esquadro de expectativa até que começa a falar]
- Meus senhores, quero apresentar-vos em primeira mão o novo CEO da Baby TV, Carlos Cruz.
[Burburinho cresce, flashes intensificam-se, Carlos Cruz surge detrás da cortina com um boné do seu patrocinador oficial, a vaselina Tóquentrar, aperta o cordão do roupão, ajeita a gravata e senta-se na cadeira central]
- Boa tarde a todos. Chamo-me Carlos Cruz e estou aqui na qualidade de novo CEO da Baby TV. Antes de começar a responder às vossas questões, quero afirmar que estou aqui nesta posição com todo o prazer. Tenho mesmo muito prazer em poder abraçar esta tarefa de reorganizar o conteúdo programático deste canal que me merece todo o respeito e pelo qual nutro especial simpatia. Procurarei encontrar formas mais excitantes de fazer televisão, como aliás me foi solicitado pelo corpo [pausa para beber um pouco de Capri-Sonne] de accionistas. Feitas as primeiras considerações, estou então disponível para responder às vossas perguntas.
[Algumas perguntas ao mesmo tempo, cotovelos no ar, microfones agitados; alguém fala mais alto]
- Podemos esperar mudanças na programação psicadélica nocturna da Baby TV?
- Não queria falar de temas em concreto para já, mas posso adiantar que será improvável alguma alteração nesse capítulo, porque a equipa de hippies que realiza esses clips sob efeitos de LSD, haxixe e heroína vai ser a mesma. Em equipa que se droga não se mexe. Até porque eles são extremamente nojentos e não há ninguém verdadeiramente corajoso para ir lá reclamar com eles. E as crianças gostam, é o mais importante.
- Quais os principais desafios que tem pela frente?
- Tenho ali um miúdo de três anos que se está a fazer difícil e acho que vou ter que comprar mais um chupa para fazê-lo subir até ao meu quarto, embora eu…
- Eu referi-me aos desafios no sentido profissional e não no sentido pessoal…
- Ah, bom, está bem. Como sabe, os bebés são um público extremamente exigente e se não damos o que eles querem eles partem a televisão. Ou pelo menos, partem o comando, o que vai dar quase ao mesmo. Posso adiantar o seguinte: vamos apostar fortemente no amarelo, que estava um pouco desprezado, e em patinhos a nadar de rabinho para ar, pode ser que consigamos influenciar os comportamentos.
O nosso grande objectivo é retirar prazer daquilo que fazemos. E ultrapassar o share do jornal da TVI quando falam da Casa Pia. Mas, sobretudo, divertirmo-nos.
- Vamos poder contar com o Avô Cantigas a cantar em directo ou vai ser apenas um playback?
- Depois do lamentável incidente da gala Baby TV do último Natal [quando uma animação digital corrompida do Avô Cantigas foi para o ar indevidamente, mostrando o Avô Cantigas a negociar com duas prostitutas romenas no seu Audi A4 em Alcabideche, ao minuto 1:45 da peça], a partir de agora o Avô Cantigas deverá cantar apenas em directo, mas isso é algo que ainda estamos a discutir e que terá que ser aprovado em assembleia-geral. Sei que o administrador da área das Histórias da Carochinha, o Padre Frederico, está reticente quanto a esta opção [o assessor inclina a cabeça e sussurra umas palavras ao sr. Cruz]… perdão, eu queria dizer Pedro Frederico, está reticente, mas isso vai ser discutido, e outro administrador nosso para os Crimes e Animações Violentas, o Marc Dutroux [o assessor volta a sussurrar umas palavras ao sr. Cruz]… perdão, é o irmão dele, o Tintin Dutroux… desculpem, ainda sou novo por aqui, esta é a primeira vez e custa-me um bocado acertar [engole em seco, embaraçado] nos nomes das pessoas… para finalizar, tudo se vai compor.
- É agora que a Baby TV vai ensinar a fazer operações algébricas e a formar palavras como “pai”, “mãe”, “tio” e “ejaculação precoce”?
- Queremos apostar na literacia infantil, é um facto. Mas, por favor, não quero debruçar-me sobre temas polémicos para já. Sobre números não me pronuncio.
- Muitos circuitos dão como certa a contratação do Popas da Rua Sésamo para reforçar o ataque da Baby TV. Pode confirmar?
- O Popas consegue atrair muito as crianças e isso apraz-nos. Gostaríamos de atrair o maior número de crianças possível e, por isso, não nego que o Popas está nas nossas cogitações. Paralelamente, gostaríamos de contar com o Ferrão, que é muito bom para obrigar as crianças a despirem-se [engasga-se] de inibições, com a sua voz rouca e levemente ameaçadora. Popas para atrair e Ferrão para despir é um sonho nosso. Vamos ver. A Rua Sésamo não quer perder estes valores seguros, depois de ter perdido a Alexandra Lencastre para as novelas da TVI, onde ela revelou um fantástico par de seios que não havia sido suficientemente desenvolvido durante a sua estadia na Rua Sésamo. A Rua Sésamo agora quererá pensar bem duas vezes antes de libertar os seus activos.
- Qual a sua filosofia para a Baby TV?
- Muito amor, muito contacto directo com as crianças e, acima de tudo, muita honestidade na relação com as crianças: se não quiserem fazer festinhas, vão para a cama sem papinha. Vamos ser directos. Não vamos esconder a realidade das crianças. Elas têm que saber que mandar um cubo à cabeça de outra pessoa aleija, que as ovelhinhas fofinhas têm pedaços de merda agarrados na lã adjacente ao ânus delas e que aquilo não é chocolate e que “a grande bisnaga” do papá também dá leite, embora não tão doce.
- É certo que vai receber uma quantia exorbitante por este cargo?
- Olhe, eu já desconfiava que surgissem perguntas mal-intencionadas e por isso dou por terminada esta conversa. Lamentavelmente, há muita gente invejosa dos 2.500.000 € que um humilde CEO pode arrecadar num ano só por andar em almoçaradas com elementos ligados à Justiça. Por isso, despeço-me com estima e consideração por todos aqueles que me apoiam e apenas prometo uma coisa: muito pensamento no trabalho.
[Há insistências, atropelos entre fotógrafos, mas Carlos Cruz e o assessor saem de cena, torneiam a multidão e seguem directos para o sua viatura estacionada fora das instalações da Baby TV, onde um motorista lhes abre a porta. Partem a boa velocidade dali para fora, protegidos pelos vidros fumados. Carlos Cruz quer saber o que o assessor achou da sua apresentação]

- Correu bem, não correu?
- Definitivamente, senhor.
- Quer dizer… as pessoas ficaram esclarecidas, não ficaram?
- Certamente.
- E descansadas também, não acha?
- Totalmente de acordo, senhor.

- Acha que…

- Acha que eles… ficaram de certa forma intrigados por eu também me chamar Carlos Cruz?
- De todo, senhor. O público é inteligente.
- Acha que sim?
- Claro, senhor.
- Quer dizer que… quer dizer que para eles ficou totalmente claro que eu não sou o… outro… Carlos Cruz, você percebe aonde quero chegar, não percebe?
- Evidente.
- O público notou isso, não notou? Isto é, não vai pensar que eu vou para a Baby TV fazer as… “coisas”… “desse”… Carlos Cruz para lá, não é? Iria parecer… como dizer?, desajustado, não é? Eles compreenderam isso, não acha?
- Sem sombra de dúvidas, senhor.
- Sem sombra de dúvidas?
- Sem qualquer margem de erro. O senhor foi tremendamente elucidativo.
- Ainda bem, ainda bem. Se havia programa que eu detestava era o “1,2,3”.

Sem comentários: