segunda-feira, setembro 18, 2006

O Lado B


O senhor da foto não é Clark Kent. Mas também oculta personalidades. Senão vejamos.
De dia (lado A), o senhor é militar. Pugnando pela soberania da nação pelos quartéis de Portugal, é o exemplo dum cidadão abnegado. Tão depressa faz 50 flexões à chuva como emborca mais uma mini junto à caserna, tudo em prol do patriotismo português. Sempre comovido perante uma bandeira lusitana, exalta as nobrezas das nossas terras e gentes ao comandar o pelotão de corrida, incentivando o grupo para mais uma volta, mais umas gotas de suor. Sonha com Timor, passa pela Bósnia, dá uma vista de olhos no Afeganistão. Capacetes azuis e bivaques esverdeados, baionetas reluzentes e atacadores aprumados, este senhor domina todos os capítulos da defesa nacional e orgulha-se disso. Serve despreocupadamente e anonimamente o país. A sua grande ambição é, diz-nos um tenente-coronel dos adidos do exército, ser porta-estandarte nas cerimónias do 10 de Junho.
Mas à noite (lado B), este senhor transfigura-se. Todo o magnífico altruísmo evapora-se como éter ao sol e os resíduos que ficam são suspeitos, negros, de dúbia qualidade. Qual Drácula, a sede por sangue inocente fala mais alto. Sob os holofotes que iluminam a noite dos campos portugueses, os tais a que jura fidelidade e disponibilidade durante o dia, a sua veia demoníaca assume proporções inimagináveis. Na boca um apito. Na mão uns cartões coloridos. Dá-se início ao festim.
Quem consegue explicar? Este senhor percorre com os seus olhos de lince as bancadas antes do jogo começar. Tira as medidas do estádio, calcula quais os locais estratégicos para fugir do arremesso de objectos. Depois planeia quais os carneiros, leia-se, os jogadores ou equipas, a sacrificar. E entre tiques mais ou menos parvos de aquecimento, vira-se para os seus companheiros e sorri maliciosamente, como quem anuncia “Descansai, pupilos; hoje vamos ter um serão farto”. Mal as claques entoam os seus primeiros cânticos hostis, o senhor pensa, vingativo, que eles irão ter mais motivos no fim do jogo para vaiá-lo. Motivos de sobra. Mas será ele a sorrir no fim. Melhor, a gargalhar.
Quem diria, esta transformação do dia para a noite é mesmo perversa. Será ele Dr. Jekyll e Mr. Hyde, duas faces da mesma moeda, um caso extremo de comportamento polar? A sua autoridade militar cai por terra. A sua máscula presença física abichana-se. A sua dignidade deixa de existir. O senhor oficial do exército instrumentaliza-se perante as Forças do Mal. Não olha a meios. Se for necessário, vê o que não foi visto, olha para o lado o que devia olhar de frente, pune exemplarmente um beliscão e dá uma palmadinha das costas ao prevaricador que parte pernas e cospe insultos. Se for mesmo para levar o seu delírio ao extremo, manda o polícia identificar o jogador que se senta no banco. Utiliza, de forma cruel, aquilo que poderia ser usado em seu prejuízo em seu proveito. Abusa do poder discricionário que usufrui naquele rectângulo: naqueles momentos de jogo, a sua gargalhada maléfica ecoa mais rimbombante que em qualquer parada militar. Chamem a polícia!, brada-se de todo o lado, na ânsia que haja salvação; mas foi ele quem a chamou primeiro. Arruina qualquer ensejo de resposta. Estica os braços hirtos em direcção aos balneários e dá por findo o terror, com a saudável sensação de missão cumprida.
Depois do jogo, abertas as feridas, escorrido o sangue, discutem-se os pormenores da sua felina exibição. Ele lá admite, a um amigo, a um sargento dos gabinetes, ao recruta que faz a faxina: não tem consciência do eventual mal que fez. Diz isso de dia, regressado ao seu quartel, imbuído pelo nobre instinto de militar. Reclama-se inocente. Mas à noite a sua sombra assusta mais do que o símbolo de Batman sobre os criminosos de Gotham City. De dia, ele desconhece o facto, acha que as pessoas exigem demasiado dele, são muito injustas. Promete mais abdominais.
É sempre a mesma coisa: as pessoas têm a mania de reparar mais no lado B do que no lado A das outras pessoas.

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