quinta-feira, novembro 30, 2006

Perdido na Floresta

“Isn’t it good to be lost in the woods, isn’t it bad so quiet there, in the woods?” – Syd Barrett, “Octopus”

Mapas para mim são demonstrações de resultados. Balanços. Saldos contabilísticos. Impressionantes os números dos resultados operacionais do último semestre. Gosto de me espalhar sobre as razões das dívidas de longo prazo, debitar do lado oposto ao crédito no T do relatório e contas. Trato com reverência os balancetes, venero o EBITDA quando o sinto a crescer com pujança. Não me atrapalham as siglas, sejam elas o ROA ou o IVA, nem me perco com empréstimos obrigacionistas. Procuro saber se a yield curve a curto prazo pode ser favorável. Alavanco. Acciono. Jogo com as tendências do Brent. Dou ordens de compra. Vendo a descoberto. Torno-me bilingue. Influencio índices de rentabilidade. Reinvento taxas. Oh, felicidade! O sussurro de percentagens que ecoa nos meus neurónios inflacionados pela vertigem do superávit. A cor monetária das curvas dos gráficos. A certeza tranquilizadora da fraca exposição ao risco cambial. Pesos certos em balanças afinadas como as regras da produtividade definem. Papéis verdes sobre jornais rosa. Gravatas e auriculares, portatibilidade e mobilidade.
É uma pena as coisas boas não durarem para sempre. Felizmente que a seguir ao feriado geralmente vem o trabalho.
Subsiste, porém, o senão da pausa. Inquietante é o dia fora do escritório. Seja na cidade ou no campo. Não há bússolas. Não há regras. Não há teorias infalíveis. Há bonés e sacholas. Bonés e sacholas não nos levam a lado nenhum. A selva é lá fora, no mundo real. Na floresta podia haver um javali à espreita, a colocar-nos sob alarme permanente. Mas não há nada. Os grandes não são assim tão maus nem os pequenos assim tão bons. A realidade é francamente intragável. E depois, a gente medonha que profere banalidades ultrajantes em tronos preenchidos com vácuo. Liguem-me à rede. Dêem-me a senha. Retiram-me o soro que me mantém aceso. Não há beleza num monumento grafitado, num prado verde e chilreante, num centro comercial apinhado. Há pedaços animados de carne que se movimentam sem sentido. Descubro amores loucos nos outros, olhos carregados com uma fantasia tal que me suga a noção das coisas. Perco o controlo das coisas, sinto que me espezinham a personalidade como se de nada tratasse. Isto é o nada, a vã roda-viva da vida dos estranhos à minha volta, aqueles que me rodeiam todos os dias mas nos quais nunca reparo. Não arranjo disponibilidade para sequer beber até cair. Tenho insónias a pensar no tempo que perco por não conseguir dormir. Esborracho moscas no vidro durante o fim-de-semana, descarregando a minha torpe fúria da folga naquilo que posso. Não vivo, o bicho também não viverá. Perco a fome aos Domingos. Perco a paciência. Não suporto o riso das crianças. Abomino a tosse dos velhos. Rasgo fotografias de memórias perdidas. Preservo apenas o apetite pela destruição dos que não vivem o stress. O stress não é o meu mal, é o meu sal. O condimento indispensável do refogado em que eu me tornei. Sempre a preparar qualquer coisa que me faça sentir útil para alguém acima juntar o creme por cima. O mundo não tem objectivos e eu só tenho metas. Separei-me da tal forma do comum cidadão que me metamorfoseei no seu lado obscuro. Não me interessa se estou por cima ou por baixo, eu pressinto apenas que não estou em lado algum. Dói-me sentir que os outros sentem coisas que eu não consigo sentir. É das poucas coisas que me consigo diagnosticar, esta concreta e crescente incompatibilidade com o resto. De resto, vou escavando ódios infundados em lugares recônditos da minha mente, qual passatempo diabólico, até chegar a manhã seguinte.

1 comentário:

. disse...

Ah-há!!! Como diria o Mourinho, FANTÁSTICO!