quarta-feira, maio 23, 2007

O Elixir do Tiroteio Despropositado

- Prof. N’Gonka, está aqui um paciente para atender. A cara dele não me é estranha.
O Prof. N’Gonka afasta uns quantos amuletos da sua mesa, incluindo um papagaio malawiano empalhado, disponibilizando assim espaço para apoiar os cotovelos, e abre a cortina de veludo escuro, deixando a luminosidade penetrar e iluminar o seu pequeno escritório numa zona degradada de baixas rendas em Lisboa.
- Manda o paciente entrar, Kabumba.
O paciente entra, cumprimenta o Prof. N’Gonka, que retribui delicadamente, quase sem emitir um som. Identifica-se como sendo Raimundo Retrovisor, o tal que atraía todas as maleitas possíveis.
- Não se lembra de mim, Professor? – questionou Raimundo.
- Sabe, eu comunico com várias pessoas por dia… - respondeu, vagarosamente, N’Gonka – É você o Sr. do mau-olhado lançado pela vizinha do lado?
- Oh!, se tivesse sido só isso, Professor!... No último ano, foi mau-olhado, desgostos amorosos, despedimentos, várias doenças crónicas e agudas do foro hepático, sanguíneo, nervoso, cardiovascular, pulmonar e gástrico, falta de auto-estima, problemas monetários, depressões ocasionais, macumba, vudu, cegueira, surdez, mudez, mau hálito, infertilidade, impotência, vários pneus furados por dia, obesidade mórbida, falta de fé num deus qualquer, sisudez, mongolismo, autismo, baixa responsabilidade cívica, libertação de gases em momentos inconvenientes, violações, raptos, contagem de anedotas sem graça, negação da personalidade jurídica, paludismo, escorbuto, vítima de ataques de animais supostamente dóceis, diabetes, alergia ao esparguete e à morcela, fortes odores corporais, gravação de sons obscenos em festas de aniversário de crianças desconhecidas, alcoolismo, toxicodependência, lepra, tremeliques em plataformas ferroviárias, sinusite, extrema transpiração nas axilas em pleno Inverno, esquizofrenia, personalidade bipolar, caspa, utilização imprópria de lavabos públicos, bulimia, acessos momentâneos de pedofilia nos feriados municipais, menstruação desregulada e fortes reacções cutâneas ao vinagre. O Professor curou-me de tudo! Não se lembra de mim?
- Ah, sim, claro! – iluminou-se N’Gonka – O meu úni… er, o meu melhor cliente! Como vai, Sr. Raimundo? Está melhor da constipação?
- Sim, Prof. N’Gonka. Graças às gotas óleo de rim de aborígene australiano e a duas caixas inúteis de antibiótico, consegui melhorar. Agora tenho um problema bem maior, Professor. Algo que me tem atormentado nos últimos tempos… para aí desde as 9:30 de hoje – e Raimundo, abatido, passa pelo mão no cabelo, tenuemente desesperado, expirando bofes de desagrado.
N’Gonka, algo admirado, reclina-se na cadeira forrada a pele de leopardo, junta as mãos e assume uma postura de ouvinte atento.
- Ora diga lá então o que a medicina alternativa deste humilde Professor doutorado na Universidade de Ciências Ocultas de Monróvia com aproveitamento máximo e inigualável por mais alguém pode fazer por si, Sr. Raimundo…
- Sabe, Professor… a vida tem estado muito fácil para mim. Eu quero que o Professor me arranje um mal qualquer. Um mal que não consiga sarar facilmente.
- Como? – espanta-se N’Gonka.
- Eu sinto a falta dos meus queixumes. Hoje em dia obtenho mulheres com um estalar dos dedos. Acordei como o homem mais rico do mundo por não ter feito nada. Toda a gente é amiga e compreensiva para comigo, tenho filhos inteligentes e amorosos, descobri várias fórmulas científicas que atrapalhavam os grandes cérebros mundiais a ver uma competição de pólo aquático, salvei personalidades importantíssimas da morte certa sem sequer reparar, não invejo ninguém, não tenho medo de nada, possuo uma saúde de ferro que serve de referência a toda a classe médica, cresceram-me os dois dentes da frente que tinha partido há 10 anos, fui designado o “Português do Século” sem nunca ter entrado na votação… não tenho nada para me queixar.
- Sr. Retrovisor, peço desculpa, está aqui um indivíduo a querer oferecer-lhe um avião e a sua voluptuosa filha de 19 anos por o Sr. ter segurado a porta de entrada do prédio para ele… devo deixá-lo entrar? – interrompe Kabumba.
- Não, obrigado… Diga que eu depois lhe telefono… Está a ver, Professor? Eu não fiz nada para ser tão bom, eu quero voltar a sentir algum insucesso outra vez… - comentou Raimundo, abatido pela sua sorte estupidamente imbatível.
- Estou a ver… Mas, como sabe, a minha especialidade é curar e reabilitar as pessoas… eu exorcizo o mal, afugento-o… não consigo atraí-lo – adverte N’Gonka, ajustando a sua camisa multicolorida.
- Professor! O Professor consegue! Você é um grande especialista! Curou-me de tudo e mais alguma coisa! Quem percebe tanto destes desígnios humanos, deve, com certeza, saber inverter os procedimentos de forma a causar mal… - implora Raimundo, segurando nas mão de N’Gonka. Este, incomodado, levanta-se da cadeira e põe-se a pensar.
- Sr. Raimundo, devo avisá-lo que esta situação não é normal… Tem a certeza que quer ter problemas?
- Sim, Professor! Eu não sou normal! Estou à procura de preocupações, desatinos e aflição! Por favor, faça-me algo mau! Torne-me feio! Tire-me a vontade de viver! Eu já não aguento ser tão bom e adorado!
- Hmm… deixe-me pensar – e N’Gonka afasta-se, esconde-se por detrás de uma cortina decorada com penas de pavão.

Detrás da cortina, a salvo dos olhares de Raimundo, sussurra para o seu assistente Kabumba:
- Estou tramado. Acho que fiz um trabalho bom demais com o tipo… e agora, Kabumba? Não devia estar aqui para o mal… quer dizer, também não devia estar para o bem, só devia dançar como um maluco, falar monossílabos desprovidos de sentido, vender chás baratos como poções milagrosas e artefactos de madeira rasca como ídolos sagrados… Mas não posso desapontar o cliente, senão ficamos sem sustento para a renda e voltamos para as obras…
- É lixado, Professor – anui Kabumba – Temos de inventar um novo mal para o gajo. Já o metemos como sócio do Benfica?
- O gajo está tão bem na vida que já nem liga a futebol, vê lá…
- Hmm… e se lhe colocarmos um papão à noite no quarto?
- Qual papão, Kabumba?
- Sei lá. Olha, o Zé Tikotiko, que é grande como o caraças…
- Ó Kabumba, o Zé Tikotiko a partir das seis da tarde está a cair de bêbado, quer lá ir fazer de papão a casa de um maluco qualquer…
- Então temos de lhe criar uma doença qualquer, alguma coisa séria…
- Mas o quê? O gajo já teve de tudo! Depois de ficar doente, volta cá e eu curo-o, como já o curei!
- Tudo, tudo, Professor? Ele já teve raiva, piolhos e febre aftosa?
- Já! E já experimentou a morte súbita dos bebés que dormem de barriga para baixo… e ressuscitou! Não sei, Kabumba… - constata N’Gonka, inquieto por estar em vias de perder o seu cliente.
- Eh, pá, estes gajos só mesmo com um tiro na cabeça, de tão parvos que são!…
- É isso, Kabumba! – exalta um entusiasmado Professor – O tipo ainda não foi psicopata assassino! Temos de torná-lo num psicopata!
- Boa! Mas como?

- Ó Kabumba, não sejas parvo também! – zanga-se N’Gonka – Só temos é que fazê-lo acreditar que se vai tornar num psicopata! Ao fim de algum tempo ele descobre que não é e volta cá para arranjarmos qualquer coisa mais! Entretanto, vamos pensando noutro mal qualquer. Está bem?
- Excelente, Professor! E como vamos enganá-lo?
- Enche aí esse frasco com água e coloca uns corantes e umas folhas de louro lá para dentro – vai ser “O Elixir do Tiroteio Despropositado”. Que tal?
- Muito bem, Professor! – deleita-se Kabumba, orgulhoso por fazer parte daquela trama sinistra – O Professor é uma máquina!

- Sr. Raimundo – diz, grave, o Professor, aproximando-se – isto de fazer o mal não é eticamente correcto no seio da Classe dos Grandes Mestres Curandeiros… mas, excepcionalmente, vou entregar-lhe este portentoso e obscuro elixir… o infame “Elixir do Tiroteio Despropositado”, receita secreta de tribo senegalesa… irá torná-lo num psicopata assassino, capaz de matar cirurgicamente personalidades públicas…
- Isso é óptimo! Grande ideia! – empolga-se Raimundo – Já me estou a ver todo preocupado a fugir da polícia e a esconder-me! Mas, já agora, o que seria mesmo bom era ser um genocida! Se é para me preocupar, quero preocupar-me a sério! Matar gente à grande!
- Genocida, hã? Também se arranja… Kabumba, anda cá – Kabumba chega e o Professor ordena – Reforça o elixir, se fazes favor.
- Como?
- Põe mais corante nisso – sibila ao ouvido o Professor.
Kabumba mistura mais corante à solução atrás da cortina, adiciona-lhe uma pitada de açafrão pelo sim pelo não, fazendo o elixir adquirir uma tonalidade amarela viva. Entrega o frasco a N’Gonka e este, solene, entrega-o a Raimundo.
- Cá está, Sr. Raimundo. O senhor será um futuro genocida de renome. É só tomar um colher de sopa todos os dias antes e depois das refeições, virado para oeste e sem nenhuma galinha branca por perto.
- Professor, o Sr. é fantástico! Resolve tudo! Muito obrigado! – saúda um agradecido Raimundo – Quanto lhe devo?
- Ora, 500 euros pelo aconselhamento, 175 euros pela taxa de assento no meu consultório, 76,4 euros pelo tempo, 42,32 euros pela chatice, 75 cêntimos pelo valioso elixir… são 1500 euros, por favor.
- Tome – providencia Raimundo, sem discutir – Você merece, Professor, você merece! Preocupações, venham elas!

N’Gonka e Kabumba fazem agora contas à vida. O negócio prospera. N’Gonka quase que nem acredita na ingenuidade de Raimundo. Mas aconteceu. O pequeno escritório torna-se grande na alegria.
- Sabes, Kabumba – confidencia N’Gonka – acho que vou ver um professor a sério, o Mestre Abdul Kabidelah. Acho que ele consegue saber até que ponto eu sou um grande professor. Já reparaste? Pelos vistos, curei mesmo o gajo de tudo! Quais são as hipóteses de tudo ter acontecido apenas por sorte?
- O Professor tem mesmo poderes, acredite – tranquiliza Kabumba – o Mestre Abdul Kabidelah só o irá confirmar.
- Vamos ver, vamos ver. Até logo, Kabumba. Vai pensando numas doenças esquisitas, entretanto.
Quando N’Gonka sai do consultório, encaminha-se para as escadas. No fim do primeiro lanço de escadas, encontra Raimundo parado à sua espera, perturbado, olhar furioso nos seus olhos, dentes cerrados e lábios secos, de arma na mão.
- Sr. Raimundo, então ainda por aqui? – cumprimenta, afável, N’Gonka.
- Pensavas que escapavas desta, não, macaco? MORRAM, PRETOS!!!!!!!
Com seis disparos à queima-roupa, Raimundo fulmina N’Gonka, que cai perfurado no chão de madeira, formando uma piscina de sangue. Raimundo não exibe remorsos alguns, larga uma sonora gargalhada e dá mostras de pretender prosseguir com o rasto da morte pelos subúrbios da capital. Raimundo tornara-se um genocida primário, apenas com uma colher de sopa do Elixir do Tiroteio Depropositado. Fabuloso.
N’Gonka morreu. Porém, morreu honrado, satisfazendo todas as necessidades dos seus clientes, transformando enfermos em heróis e heróis em genocidas. Mesmo que não tivesse sido esse o objectivo.

1 comentário:

. disse...

...e mais um 'Mad' pró nick? :X

E com o próximo video vão dois, qué por causa das tóçes. :D