segunda-feira, maio 28, 2007

Taça é Taça

Confesso que me assolou um pensamento impuro aquando da vitória do Sporting na Taça de Portugal. Impuro por ser uma afronta ao meu coração verde e branco, um sacrilégio às minhas convicções enraizadas desde o século passado no Estádio José de Alvalade. Mas não nego que me soube bem, este meu pensamento sportinguisticamente obsceno.
Era muito simples e consistia no seguinte: na majestosa e inusitada (e, refira-se, assaz despropositada para o cariz do troféu) festa de consagração, os jogadores preparavam-se para entrar um a um no relvado de Alvalade. Estava lá tudo a postos: o brilho dos holofotes, o som dos Delfins mais o seu “Fogo do Leão”, entrecortado com o CD da Juve Leo (já com cinco anos), videoscreens com as imagens de glória verde-brancas, “barely legal” cheerleaders apetitosas, saltitantes e sorridentes com os seus pompons verdes e as exíguas saias brancas (para condizer com a cuequinha), público ansioso e delirante arremessando confettis coloridos e os incasáveis animadores de programa, sempre de microfone em punho, incentivando uma malta já de si muito animada.
Foi nesse cenário, e imaginando uma câmara de TV de frente para a saída dos balneários, que me ocorreu o tal pensamento. Passo a explicar o contexto: a câmara já lá estava, no lusco-fusco, aguardando a saída triunfal dos jogadores do balneário, para gáudio do público, até das cheerleaders impúberes. Um rufar de tambor ecoava pelas bancadas. O animador espicaçava os nervos ao alongar-se com insistência: “Eeeeeeeeeeeeeee agoraaaaaaaaa… quem vem lá com a taçaaaaaaaaaaa?... Queeeeeeeeeeeeeeem serááááááááááááááá?…”.
Deu-me para isto, não sei se pelo nome, se pelo cabelinho que pede meças ao próprio treinador, se pela angelical cara que disfarça os instintos mais ou menos violentos, normalmente escondidos no fundo de um bom central de marcação… mas lembrei-me do Tonel, diminutivo de António Leonel, sinónimo de pipa, natural de Lourosa, formado no Futebol Clube do Porto, actual número 13 do plantel. Um bom central. Filmei mentalmente esse momento fictício. O animador exulta finalmente: “Éééééééé eleeeee… aí vem ele com a taçaaaaaaa… Aí está: Toneeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeelllllllllllllllllllll!!!!!!!!!!”. Tonel surge, rápido e sorridente, com a sua carinha de menino tímido e bem comportado, subindo as escadas de taça orgulhosamente erguida, sob o brilho dos flashes e a música dos momentos de vitória. Por norma, não seria o jogador a iniciar as hostilidades, mas para efeitos desta fantasia foi ele o escolhido. As câmaras filmam tudo com uma proximidade perturbante. É aí que o caldo se entorna: Tonel, inebriado pela conquista, tropeça no último degrau de acesso ao relvado, cai desalmadamente na primeira relva do rectângulo, bate desamparadamente com a cabeça no chão e deixa cair a taça para a vala protectora do estádio. A câmara treme com o incidente e volta-se para o animador, que, atrapalhado, tenta sorrir com a situação. O estádio emudece. As cheerleaders tapam a boca de espanto e os videoscreens param as imagens. Tonel fica agarrado à boca, gemendo sonoramente e contorcendo-se com dores; tinha embatido violentamente com a cara voltada para o chão. A música volta rapidamente a ecoar na aparelhagem, mas o mal estava feito: auxiliado por paramédicos, Tonel fica a saber que partiu os dois dentes incisivos frontais e perdeu parte da língua ao trincar-se, o que explica o sangue abundante, e é provável que não volte a jogar futebol por não conseguir encarar-se a si próprio nem o gozo dos colegas no treino; a taça, essa, escangalhou-se no cimento do fosso de Alvalade e nem as fitinhas decorativas se aguentaram – ficou feita em pedaços e nem a melhor cola do mercado fará alguma coisa de razoável com os destroços. Partidinha de todo, com lágrimas de leão a servir de mortalha à sua memória. Paulo Bento nem queria acreditar. Soares Franco pensou em devolver a taça partida à Federação como retribuição pela atribuição de bilhetes para o Jamor. O sonho leonino de acabar com mais um título na sua galeria terminava assim, com a subida de Tonel ao relvado para aclamação. Houve título, mas não houve taça. Um a um, os adeptos saem cabisbaixos do estádio, após uma festa que acabou antes e muito pior do que começara. Em casa, a risota é geral, especialmente a dos invejosos vermelhos, que assim garantiram o único título da época: rir-se às custas do rival vencedor por conta dum insólito.
Eu ri-me e ri-me a pensar isto cá para comigo, num delírio perfeitamente sado-masoquista. Concluí que talvez não devesse ter tomado nada enquanto via o jogo.
Mas do que eu gostei mesmo foi da conquista da taça. O “Outra Louça” presta assim o seu singelo tributo aos vencedores.

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